domingo, 24 de setembro de 2023

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 20 - ERA UMA VEZ NO NORDESTE

Leituras sobre o Brasil em Cangaço Novo

Por Vagner Gomes de Souza

 

A produção cinematográfica brasileira na terceira década do, salvo em raríssimas exceções como observamos em Eduardo e Mônica[1] e Medida Provisória[2] (resenhados nesse BLOG), tem se caracterizado por uma sequência de filmes fracos como se fossem “retratos fantasmas” de modas e conceitos fraturados. A vocação de frente democrática não se faz muito forte nesse mercado, pois a resposta do público tem sido muito e muito pequena em que a “onda streaming” e os efeitos perversos da individualização na sociedade brasileira estão derruindo em muito a estabilidade das equipes criativas. Portanto, o melhor da ficção audiovisual nossa está se apresentando em inúmeras e variados seriados como DOM, Cidade Invisível, Segunda Chamada, Arcanjo Renegado, Sob Pressão, etc.

Agora o público brasileiro foi brindado pelo seriado Cangaço Novo (Direção de Fábio Mendonça) na PRIMEVÍDEO e confirma a qualidade de roteiros nessa safra que emergem nessa década. Com criação de Mariana Bardan e Eduardo Melo, a nova produção brasileira conta com Allan Souza Lima (de A Menina Que Matou os Pais) no papel principal. A primeira temporada que agradou muito o público brasileiro e se inseriu no contexto do continente africano como se fosse uma Escrava Isaura do século XXI. A hipótese do estado de anomia em Durkheim deve provavelmente explicar esse fenômeno.

O seriado tem 8 episódios que reforçam muitas leituras sobre o Brasil que poderíamos revisitar com o compromisso de buscar novas interpretações diante dos novos sujeitos sociais que surgem em destaque nos primeiros dados divulgados do Censo de 2022. Entretanto, antes que comecemos a enumerar uma bibliografia inspirada no pensamento social brasileiro, poderíamos lembrar que há um pouco de Roque Santeiro na volta do personagem Ubaldo Vaqueiro a fictícia Catrará num Ceará muito distante dos índices de primeiro lugar no IDEB. A comparação não é pela volta de um herói, mas por causa de uma vida social em torno de uma mitologia referente ao pai biológico do personagem principal.


Contudo, ainda temos o tema do exclusivo agrário na trama por conta de uma herança de um sítio sob a hipoteca do sistema financeiro. O banco é um opressor desde momento que Ubaldo é demitido como bancário. Em seguida, ele percebe o quanto o peso das sedimentações passivas do passado ainda se faz presente no mundo contemporâneo. Então, o telespectador se vê diante de um personagem sem memória sem que haja uma explicação sobre esse fenômeno. O reencontro familiar se faz com conflitos e incertezas. Além disso, Ubaldo, apesar de sua primeira resistência a grau da violência dos “neocangaceiros”, não é um exemplo de ética e uma “sombra” ronda sobre os motivos de seu afastamento do exército brasileiro o que lhe fazia se mantiver uniformizado diante de seu pai adotivo.

A presença das forças armadas em exercício no agreste do Ceará nos anos 90 seria outro momento “turvo” desse seriado. Os pontos que aproximaram a personagem Zefa (em brilhante atuação de Marcélia Cartaxo) e o militar que seria o pai adotivo de Ubaldo Vaqueiro não se elucidaram na primeira temporada. Não seria um pouco de O sentido do tenentismo de Virgílio Santa Rosa? Muitos que comentam sobre as forças armadas na atualidade pouco têm noção sobre esse ensaio de 1933 (um nonagenário livro injustamente esquecido). Aguardemos os possíveis desdobramentos uma vez que as forças armadas em tempos pretéritos tanto tiveram setores a questionar quanto a incentivar a manutenção do exclusivo agrário no Brasil.

As leituras de interpretação de nosso país se abrem em inúmeras possibilidades nesse seriado que foi produzido entre 2021/22 apesar de vir a público nesse primeiro ano de governança da Frente Democrática. E as referências bibliográficas esquecidas até em instituições que deveriam primar pelo estudo do agrarismo no pensamento social brasileiro. Diante disso, Cangaceiros e Fanáticos de Rui Facó poderiam ser uma dessas referências, pois atribui aos fenômenos de Canudos e ao Cangaço um resultado da crise de ordem econômica e autoridade. O elemento de crise no conceito gramsciano no qual o velho já morreu mais o novo ainda não se sabe fazer presente poderia explicar assim a boa recepção do seriado mundialmente.

Entretanto, a crise da autoridade da política se faz muito presente no atrito geracional entre o Senador e seu filho que é prefeito de Catrára. Suas nuances políticas expostas no episódio “Tudo é política” marcariam o aggiornamento de Ubaldo Vaqueiro num contexto social semelhante ao que Victor Nunes Leal observou em Coronelismo, enxada e voto. O poder político nos municípios não deixam de ser ainda a base de muitas configurações políticas nacionais e muito bem sabemos que o caminho das verbas orçamentárias podem levar ao sucesso ou ao fiasco de muitas gestões administrativas. A crise fiscal é uma “sombra” em Cangaço Novo uma vez que se precisa de apoio em Brasília para a realização de uma obra pública (uma estrada) que valorizaria muitas terras ao redor. Esse é o ponto do debate político sem nenhuma máscara ideologizada.

O tema da violência, que elege muitas candidaturas que se sustentam na base conservadora do eleitorado brasileiro, é outra vez provocada pela facilidade dos canais em que Ubaldo Vaqueiro (ex-militar) teve para conseguir armamentos modernos. A modernização conservadora em todos seus significados diante de uma realidade que estudada por uma socióloga esquecida pelas assim chamadas lideranças do “Feminismo Novo”: Maria Sylvia de Carvalho Franco. Homens livres na ordem escravocrata ganha grande atualidade param se observar o crescimento da violência no Nordeste (como observamos recentemente na Bahia em suas sedimentações do “carlismo”). Por fim, sugerimos que esse é um livro que muito poderia contribuir para repensar um olhar sobre o novo país que nasce no crescimento demográfico no Centro-Oeste.




 


[1] Copie o link a seguir para ler https://votopositivo-cg.blogspot.com/2022/02/a-doce-politica-no-cinema-numero-9-o.html

[2] Copie o link para ler https://votopositivo-cg.blogspot.com/2022/04/a-doce-politica-no-cinema-numero-10.html