Ensaio
sobre a Melanina
Para o amigo
José Manuel Blanco que tem um pouco de Santiago Blanco.
Por Vagner Gomes
de Souza
Nesse ano de 2022 celebramos
o centenário de nascimento do escritor português José Saramago. Esse foi um
escritor que colocou a literatura de seu país num contexto de universalização
uma vez que nele observamos a compreensão da contribuição dos mouros na
formação desse complexo mundo ibérico como se observaria na leitura atenta de História do Cerco de Lisboa.
Foi Saramago que
imaginou uma diáspora ibérica em seu realístico e imaginária livro A Jangada de Pedra. Nessa obra se
observa que se distanciar do iberismo tem suas consequências sociais. Além
disso, entre tantas obras instigantes, o escritor português nos brindou com o
livro Ensaio sobre a Cegueira, que se
trata de uma distopia muito necessária para a leitura nos dias atuais. Nesse
livro há uma pandemia que causa a cegueira de todos ao redor o leva a inúmeras reflexões
sobre a solidariedade e a postura do ser humano quando se vê nos limites de seu
estado de natureza. Nessa obra a mulher é a heroína e ponto de equilíbrio
contra as possíveis radicalizações.
Seria diante dessas
lembranças que o filme “Medida Provisória” nos permitem entender a ameaça a
democracia que está a rondar a sociedade brasileira. A reparação social pelos
séculos de escravidão seria feita pela deportação dos detentores de “melanina
acentuada” para a África. Uma lembrança curiosa de como a via americana
concebeu a fundação da Libéria desde a chegada dos primeiros escravos libertos
norte-americanos há cerca de 200 anos.
O filme está com uma
recepção positiva de muitos articulistas, pois não podemos nos deixar
contaminar pelas cegueiras da radicalização. Nas palavras do cineasta e
acadêmico Cacá Diegues, o filme “Medida provisória” de Lázaro Ramos pode se
inscrever como um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos[1]. Essa
foi sua primeira impressão ao assistir ao filme que está nas salas de cinema
com um sucesso muito atribuído a propaganda do “boca a boca” de um filme que
faz um original roteiro a partir da inspiração da peça “Namíbia, não” de Aldri Anunciação[2].
O filme demonstra que Lázaro
Ramos desponta como um cineasta que se destaca na direção da atuação dos
atores. Seu Jorge, no personagem André (seria uma referência ao André
Rebouças), está muito bem distante da atuação caricata de Marighella uma vez
que a dramaticidade do filme estaria muito bem suavizada por alguns momentos de
humor. Aliás, André é o típico personagem macunaímico em seu ativismo político
na defesa dos cidadãos de “melanina acentuada”. Faz uso do BLOG AFIRMAÇÃO para
sobreviver diante da crise da imprensa.
De volta aos
comentários sobre “Medida Provisória”, Cacá Diegues reapresenta o programa do
Cinema Novo e demonstra o quanto o filme estaria presente nesse contexto de
reinvenção da cinematografia como se fosse o impacto de Levantado do Chão no conjunto da obra de Saramago[3]. A
atenção de Diegues, que dirigiu Bye Bye
Brasil, se faz num esforço de compreender a cultura como um terreno aberto
a afirmação da unidade sem sectarismo. O ilustre imortal rememora as palavras
de Mano Brown no comício de Fernando Haddad em 2018 que merece uma total
citação com nossos grifos: “O que mata a gente é o fanatismo e a cegueira.
Deixou de entender o que o povão quer e diz, já era”.
Então, o filme serve
também como um alerta para aqueles que consideram que passaremos por uma
campanha eleitoral sem “solavancos”. E mais importante ainda, seria reconhecer
que há uma ameaça de não reconhecimento dos resultados das urnas. Por isso, não
podemos agir com os nossos adversários enraizados na história do autoritarismo
brasileiro reproduzindo seus gestos e discursos como se estivéssemos num
espelho. Eis que Tais Araújo deixa isso muito bem claro na sua fala no
AfroBunker uma vez que temos a personagem Capitu que reinventa o sentido da
paixão como gesto heroico de ir ao encontro de Antonio Gama que está na
interpretação de Alfred Enoch (que assim como Machado de Assis, já foi um Bruxo
só que na cinematografia). Essa é a inspiração diversificadora da cultura heroica
que nos deixa como inspiração o filme de Lázaro para que a República e Democracia
não vá para a tumba.
[1] Diegues, Cacá – “As suçuaranas da cultura”. O Globo. 17 de abril de 2022.
Disponível nesse link https://gilvanmelo.blogspot.com/2022/04/caca-diegues-as-sucuaranas-da-cultura.html
[2] O
texto da peça foi acolhido na Alemanha em 2014 a partir da tradução do prof.
Dr. Henry Thorau que seria uma espécie de Dr. King Schultz do filme Django
Livre.
[3]
Em “A Cultura das Suçuaranas”, Cacá Diegues aprofunda seus comentários sobre o
filme “Medida Provisória”. O artigo é de 23 de abril de 2022 e se encontra em O
Globo.