Uma revolução passiva na terra prometida
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Obama, Barack. Uma terra prometida. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 751 p.
764 f.
Barack Obama é um grande escritor. Sua fama como
tribuno sempre eclipsou a do escritor. Mas ao dar azo a prosa de sua memória
(toda passível de documentação), o magnífico dos lugares, os detalhes do vívido,
permite sempre um deleite da leitura, frases por frases, quando recorda, por
exemplo, ter guardado, também em foto, com afeto cada momento que passou com Michelle
e as filhas Malia e Sasha na visita à estátua do Cristo Redentor, no Rio de
Janeiro, revelando-se mágica. E este é o primeiro volume e começa com sua vida
pública, traçando o passo a passo de suas campanhas políticas e termina com um briefing
no Kentucky, onde ele é apresentado às equipes SEALs (sigla SEa, Air, e Land
derivada de sua capacidade para fazer operações no mar, no ar e em terra) envolvidas
no ataque a Abbottabad no Paquistão nos primeiros dias de maio de 2011 que, como
ele conta ter sido a primeira e única vez que, enquanto presidente, testemunhou
uma operação militar que aconteceu em tempo real.
Sua abordagem é mais pública do que pessoal, mas
quando escreve sobre os seus é com uma beleza que beira a nostalgia. Os momentos
estão enraizadas na tradição oral de contar histórias como havia nos mostrado
Joaquim Nabuco (1849-1910) e Gilberto Freyre (1900-1987), com vários sentidos
figurados que a acompanham. Sua linguagem não teme sua própria riqueza
imaginativa. Uma freira sorrindo lhe dá uma cruz de prata com um rosto tão sulcado
como um caroço de pêssego. Os jardineiros da Casa Branca são os sacerdotes de
uma ordem boa e solene. Há um espírito romântico, uma corrente quase
melancólica - que Leandro Konder (1936-2014) consagrou entre nós - em sua visão
da escrita. No momento em que se prepara para ir ao jantar após receber o Prêmio Nobel da Paz em Oslo, seu
assessor Marvin Nicholson pede que olhem pela janela para ver uma multidão de
pessoas com suas velas em chamas bruxuleando na noite escura.
Aliás, o que é esse Prêmio Nobel da Paz? Ele tem plena consciência de que sua imagem pública é superestimada. Uma terra prometida é uma reflexão, sobretudo de sua trajetória política, e nele Obama está aberto também ao autoquestionamento. É justo dizer que existe a memória de Sócrates (470 AEC - 399 AEC): a vida não deixa de ser examinada para Obama, pois só assim vale a pena ser vivida. Mas quanto disso é uma postura pensada? Essa tendência parece ter nutrido nele algo de caridade, uma percepção planetária sadia, uma generosidade profunda. E assim ele é pródigo em perdão e louvor, e dá o benefício da dúvida mesmo para aqueles que mal o merecem. No último dia de George W. Bush na Casa Branca, ele está irritado com a visão dos manifestantes e acha ”deselegante e desnecessário" protestar contra um Presidente nas horas finais de seu mandato. Uma bela postura. E ao ler essas passagens não há como deixar de indicar o belíssimo livro 18 dias (Objetiva, 2014) do Matias Spektor, que conta a história de como Fernando Henrique Cardoso (que também versa sobre no seu quarto e último volume dos Diários da Presidência) e Lula e trabalharam juntos para a aproximação com o governo Bush logo após as eleições de 2002.
Mas, e a questão da raça? Ele escreve sobre raça tendo
junto de si As Almas do Povo Negro do
mestre W. E. B. Du Bois (1868-1963), Martin Luther King Jr. (1929-1968), Toni
Morrison (1931-2019) entre tantas outras e outros, e estando muito ciente de
que será lido por pessoas que podem se imaginar sendo ofendidas. Entretanto,
ele mostra que as situações de racismo convivem sempre com outros exemplos que
mostram ostensivamente a sua complexa circunstância.
Todavia, Obama reconhece que durante sua campanha
à Presidência, que as políticas de interesse direcionadas – por grupos étnicos,
fazendeiros, entusiastas do controle de armas, entre outras e outros – não fazem
parte da sociedade politica nos Estados Unidos, mas desses movimentos que os
promovem por sua conta e risco. Concentrar-se nessas questões como supostos direitos
ou qualquer outra coisa é arriscar se embrenhar entre as árvores e perder de
vista a floresta.
Assim, Obama é um político que se
observa a si mesmo, curiosamente puritano em seu ceticismo, virando-se para ver
todos os ângulos e possivelmente insatisfeito com todos, e ciente de que além
de ser incapaz de ser um ideólogo, não nesse terreno que se faz a cultura
prometeica.
A história seguirá no próximo volume,
mas Barack Obama já iluminou um momento crucial de como os Estados Unidos da
América e o mundo mudaram enquanto também conservaram.
19 de fevereiro de 2022