sábado, 18 de setembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/NÚMERO 5 - HARRY POTTER E O BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA


 

                                                  Lord Voldemort e nós

Por Marcio Junior

 

Fenômeno curioso, a literatura costuma ser marcante, por muitas vezes, para o leitor durante toda a sua vida. Alguns personagens são fonte de admiração e sentimento afetivo por muitos no mundo, principalmente se produções vendidas em larga escala, tendo sido conhecidos por leituras feitas em diversas línguas. Por vezes, alegorias e metáforas trabalhadas por autores fazem parte do arcabouço formativo de parte significativa de uma geração, inclusive com adaptações para o cinema.

Vejamos um exemplo: a jornada do vilão Lord Voldemort, construída por J. K. Rownling em Harry Potter e disseminada em boa parte do mundo, inclusive no Brasil. Ao saber que um menino poria em risco a sua busca pela imortalidade, resolve matá-lo, e, ao fazer a tentativa após assassinar seus pais, não tem sucesso e é reduzido à apenas uma parte ínfima de criatura humana e mágica que é. Mais do que isso, termina preso em laço profundo ao menino, que virá a ser o herói em sua jornada (laço este vai sendo descoberto pelo leitor ao longo da saga), sendo formado continuamente para enfrentar o desafio de enfrentá-lo quando estiver pronto, o que põe em evidência a figura do professor. Os próximos anos de “vida” do vilão, assim, são marcados por descobrir e tentar recuperar seus atributos físicos, inclusive o próprio corpo, para dar continuidade na expansão de seu domínio de tudo e todos, enquanto muitos acreditavam erradamente, inclusive, que seu destino fora a morte, libertando o mundo da ameaça maligna. Seu nome, inclusive, não é dito em voz alta.

            O fato é que mesmo a literatura de gênero fantasia, se de qualidade, tem os pés fincados no chão do mundo real, e não há a mágica que encanta a vida sem nosso esforço, sobretudo quanto a resolução dos nossos problemas. Para além dos problemas de longa data, como a imensa desigualdade que podemos ver a olho nu, estamos em apuros e não chegamos à toa neste estado de coisas, resultado de nossos próprios erros.

Tivemos formação social peculiar, fruto de um processo de colonização complexo e estudado em alto nível por intelectuais do Pensamento Social Brasileiro. Não é de pouca diferença, sobretudo quanto aos países vizinhos a nós, nossa face moderna, fruto da proximidade antropológica entre escravas e patrões, por muitas vezes violentas, mas que forneceu equilíbrio aos antagonismos daqueles que vieram de vários territórios do planeta e habitavam os espaços da colônia, a casa-grande, a senzala, a capela, o engenho, o canavial. Demos ao mundo um novo tipo social, o brasileiro: criatura mestiça, indefinida, plástica, emotiva, de guerra e de paz. Um povo.

Sendo assim, dada a pouca idade do país (faremos 200 anos em 2022), refletirmos sobre o futuro é pertinente, porém complexo. A título de exemplo, Sérgio Buarque de Holanda se dedicou, em Raízes do Brasil (1936) a dissertar sobre, entre outras coisas, as perspectivas para o país no capítulo Nossa Revolução, último do livro.

A despeito deste e de outros estudos, desviamos, porém, a rota. O século XX, por exemplo, foi momento de importantes marcações quanto a evolução política do país, como a Semana de Arte Moderna e a fundação do Partido Comunista Brasileiro, ambos em 1922, fenômenos de animação da sociedade no sentido de reivindicar para ela o papel de protagonista no enfrentamento de nossos problemas. Com a Revolução de 30, o Estado elencou para si esta responsabilidade, sendo bem sucedido principalmente na formação do mercado de trabalho do país, fenômeno paradoxal da nossa história.

Já sob a Constituição de 1988, principalmente nos governos do Partido dos Trabalhadores, fez-se leitura próxima: o PT, fruto de animações sociais iniciadas nos parques industriais do ABC durante o regime militar e crítico do fenômeno do Estado enquanto protagonista da vida, cedeu à esta lógica, instrumentalizando os movimentos sociais e os fazendo perder a luz própria, sujeitando-os à política de Estado. Sendo assim, estava aberta a via para as afirmações de interesses, inclusive patrimoniais, e as movimentações da sociedade foram impregnadas pela lógica mercantil em seus modos de operação.

            Assim, a sociedade brasileira cedeu molecularmente à cultura do indivíduo, resultado de experiências outras, na qual a vida social seria determinada pela construção e afirmação da própria identidade. Esse exercício, puramente individual, seria a via de superação das mazelas do passado, sobretudo as desigualdades e diferenças de cor e outras. A partir desta formatação e com a cultura identitária se tornando hegemônica, constituiu-se na sociedade um tribunal da história, a pretexto de, como que em exercício de laboratório, separar o que é “bom” e o que é “mau” e, sob este pretexto, excluindo das salas de aulas das academias grande parte do conhecimento produzido do Pensamento Social.

            Nesse sentido, na conjuntura da condução de Bolsonaro à Presidência da República, a atuação de Paulo Guedes como Ministro da Economia se justifica e se põe como sintomática de um problema maior. Não há direita ou esquerda em Guedes, assim como, na prática, não há nos coletivos que se multiplicam principalmente nas favelas cariocas, havendo somente o indivíduo a se afirmar, principalmente no mercado. Feita a constatação, as dificuldades que estamos enfrentando se mostram mais complexas, de maior duração. Mesmo com a derrota de Bolsonaro no pleito de 2022, muitas dificuldades conjunturais permanecerão, sobretudo educacionais e de formação das crianças e jovens.

Sendo assim, retornamos ao exercício de J. K. Rownling, que pode nos servir de lição: não é porque o mal possivelmente sairá de cena que ele estará morto. Ele pode estar vivo e invisível aos olhos, mas, mesmo combalido, agirá nas sombras, esperando a hora de retornar. A saída, como construiu a autora, deverá ser professoral.

           

2 comentários:

SAMUCA ARANTES disse...

Jamais imaginaria uma comparação entre a saga de Harry Potter contra Voldemort e a história do Brasil independente.
Parabéns pela demonstração que é possível tirar lições de determinada ficção ao compará-la com fatos reais, históricos.

marisa sempre com você disse...

O seu artigo está perfeito!