terça-feira, 29 de junho de 2021

NOTA SOBRE ARTUR XEXÉO


                                                                       Adeus, Xexéo

Aos 85 anos de Oduvaldo Vianna Filho (in memorian)

Por Pablo Spinelli

O jornalista, dramaturgo e amante do cinema Artur Xexeo nos deixou no início dessa semana, dia 27 de junho. Pertencente a uma geração de jornalistas forjada na Ditadura Militar, Xexéo fez da cultura e da cidade do Rio de Janeiro a sua trincheira de luta na transição do regime. Crítico sem sectarismo à televisão, ele muito contribuiu para a análise da transição da televisão dos anos 1980 aos 1990 onde imperou os realities shows e uma decadência da qualidade das produções televisivas.

Porém, a maior contribuição das colunas dominicais de Artur Xexéo com os seus “17 leitores” e a “Dona Candoca”, personagem alter ego que era uma senhorinha crítica de TV, reside no tema da memória. Entusiasta - pela formação e contingências familiares, como escreveu em várias colunas, - dos anos 1950 e 1960, Artur Xexéo de certa maneira dialogava com dois grandes cronistas da cena carioca que o antecederam – Sério Porto e Antonio Maria, mais o primeiro do que o segundo. Cronista do cotidiano dessa época, Xexéo mostrou como o Rio de Janeiro era uma cidade amante do cinema, onde Cinelândia era um nome com a sua razão de ser por conta de mais de uma dezena de cinemas na região, assim como Copacabana que serve, dentre outros motivos, como termômetro da decadência da cidade a partir do fechamento das salas do cinema Roxy, algo que Xexéo provavelmente escreveria, ainda mais como morador do bairro.

O jornalista sempre teve como grandes referências da memória cultural as mulheres como Bibi Ferreira, Hebe Camargo, Janet Clair, Sonia Mamede, Wanderléa, dentre outras. A sua análise de filmes, mesmo que discordante em vários pontos com esse signatário, era importante pelo uso da linguagem coloquial chegar ao grande público e por ter como referência uma indústria do cinema que tem que ser mantida pela memória, algo similar ao que fazia Rubens Ewald Filho.

Coube à história uma ironia. Artur Xexéo se foi no mês que se comemora o cinema brasileiro. Uma data difícil de comemorar quando se percebe uma política de sucateamento e destruição da memória a partir do fechamento da Cinemateca em São Paulo cujo acervo tem mais de 10 mil filmes que incluem longa-metragem, curta-metragem, cenas do Canal 100 e da participação dos bravos soldados da FEB antes e após a vitória sobre os fascismos. Segundo o jornalista do UOL, Ricardo Feltrin, funcionários que foram demitidos – a Cinemateca está sem funcionários e os filmes sem manutenção, o que pode gerar um incêndio pior do que o do Museu Nacional ou ainda, a deterioração natural dos filmes – relataram que já perdemos cerca de 600 a 1000 filmes pelos motivos expostos. A Cinemateca, que ia ser dirigida por aquela que foi sem nunca ter sido, agora está sendo malhada a ferro frio pela indigência mental que ocupa a cadeira mais importante da área cultural no governo federal. A nossa torcida é que as crônicas de Xexéo sejam lidas pelo resgate da memória da cultura nacional pelo viés da democracia.

domingo, 27 de junho de 2021

A POLÍTICA FORA DA QUARENTENA - NÚMERO 22


 Foto Raquel Freitas/G1

Que fazer no Brasil?

Vagner Gomes de Souza

 

As instituições democráticas foram sempre questionadas pelos defensores da livre iniciativa individual e suas identidades articuladas pelo consumo. No mundo do seja uma pessoa que compre, aos poucos, muitos se atomizaram num processo de fragmentação. O campo democrático se faz no terreno do “Nós”, porém a carnavalização de algumas atitude valorizaram o mundo do “eu sozinho”. A individualização enfraqueceu o mundo do fazer a política. Assim, os atores políticos se encontram sobre um grande teste nessa onda de questionamento da globalização.

O Brasil é mais um caso em que as veias abertas do discurso autoritário se faz em muitas teias que mais fragmentam as lutas políticas o que permitiu a emergência de um “self made zé ninguém” ao qual muitos ressentidos com a prática da política se reconheceu. Não há polarização nas fontes do sectarismo, pois convivem num universo de não reconhecimento do papel de mediação das instituições democráticas na sociedade. Por exemplo, forças progressistas atuam no legislativo como se fosse o espelho de seus eleitores exclusivos ao contrário de se imaginar como representante de todas e todos.


Foto: Silvia Izquierdo/AP

A sociedade se deixou contaminar por pela cultura política do espelho, ou seja, eu só busco diálogo como aquele que é meu próprio reflexo. Muitas fakeanálises da conjuntura animadas pelo individualismo político nos quais os partidos políticos são colocados no cenário num “efeito carona” do contexto eleitoral. O liberalismo eleitoral ficou mais forte uma vez que não há uma política de Estado de Bem Estar Social que oriente o universo da política. A Democracia foi perdendo seus defensores enquanto ganhou força as narrativas dos mosaicos das falas.

  As manifestações de 2013 fez emergir a pluralidade de cartazes e reivindicações. As multidões traziam menos corpo político ao debate. Todos se permitiam a ter seu lugar de fala e ninguém centralizava essas falas. Portanto, a grande política não se fez presente de forma clara. Foram manifestações que não formaram novos quadros para a política nacional. Não se exercitou sua intenção de renovação política no Congresso Nacional como se observou no perfil dos congressistas eleitos em 2014. Havia um “mal estar” com a Democracia, pois ela impõe a necessidade da universalidade republicana a cada identidade individual. 



Foto Raquel Freitas/G1

Diante desse processo mais apropriado ao mundo do empreendedorismo, a política foi ao fundo do posso com os movimentos liberais e conservadores daquilo que chamam de “lavajatismo”. Os Saquaremas “moral” eram os luzias do “liberalismo econômico”. Havia um consenso contra a prática e a análise da política. Muitos não fazem uma análise política sem fazer referência a cálculos eleitorais. As pesquisas eleitorais como “cocaína” da análise de conjuntura no universo dos atores políticos. Uma vez que nem tudo é disputa eleitoral, a formação de quadros políticos para atuar na sociedade ou na vida publica se fez no ativismo dos “influencers”. Não há mais o voto de opinião. Também não há mais o debate do programa político. E um militante político é um constante ativista eleitoral ao redor de seus parlamentares eleitos sob a guarda moral de uma “bandeira qualquer”.


Foto Rafael Sampaio/G1

Afinal, o programa político de natureza democrática e republicana exige a articulação de interesses num movimento político maior que impõe muita reflexão sobre o Brasil. Então, 2018 foi o derretimento da prática de fazer política num universo no qual explodiu o ressentimento de muitos que não se sentiam acolhidos por esse mundo individualista. O individualismo na política gerou uma reação que aprofundo esse individualismo com um recorte autoritário, pois a Democracia presente na Carta de 1988 não estava presente nos debates dos ativistas políticos. Foi a ameaça do “atalho golpista” do Presidente da República que inseriu a defesa da democracia no discurso de muitos sem que observemos ainda as suas consequências no reagrupamento do ator político e da necessidade de lideranças políticas como referência para a negociação.

Um trabalhador não entra em greve para a eternidade. Por isso, os dirigentes sindicais desde o primeiro dia articulam os canais de negociação. A sociedade brasileira não pode ficar considerando que o Impeachment seja o tratamento precoce para a natureza retrógrada presente no Brasil. Então, que fazer? Os partidos políticos precisam construir um programa mínimo de enfrentamento da pandemia e de suas consequências econômicas nas classes subalternas. A imunidade contra o autoritarismo se fará numa longa duração a partir de uma vitória do campo democrático em 2022 (que não está assegurada, pois há cálculos das “feiras partidárias”). A moderação não significa renúncia da política de enfrentamento. Na verdade é outra forma de assegurar não só um palanque para vitórias sucessivas, mas também a garantia de uma melhor transparência na gestão pública. Não nos deixemos cair na tentação do negacionismo de fazer a Grande Política. A vitórias das Diretas Já (1984) só ocorreu por causa da participação no Colégio Eleitoral (1985).


terça-feira, 22 de junho de 2021

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DO CIDADÃO CARIOCA - 6


Desconstrução do Eu

Por João Sem Regras

 

Eu falo para vocês que não muito fácil aceitar que não estava mais no meio da realidade. Na verdade, nunca estive presente na vida real e nos seus debates de forma concreta. Fui alimentando meu ego na medida em que se foi passando o tempo. Tentei seguir a carreira militar, pois tinha me inspirado num Ministro do meu país. Ele ficou um bom tempo respondendo pela Saúde sem nada compreender sobre esse tema. Achei que eu poderia desempenhar essa ou outra bela função de Estado com essa característica de evasivas constantes.

A sociedade adoeceu antes mesmo que eu pudesse perceber de meu desencarnar. De meu desconstruir. Todavia, não fui aprovado na avaliação médica ao Colégio Militar, pois tinham descoberto que eu era daltônico. Para mim o mundo era todo vermelho e só as cores verde e amarela de nossa bandeira que eu conseguia distinguir. O diagnóstico foi uma frustação em meus desejos em nada continuar fazer algo pelo meu país. Meus sonhos frustrados foram alimentando mais e mais outras iniciativas empreendedoras. Na fase da rebeldia juvenil fui um forte debatedor nas redes sociais. Tudo deveria ser destruído nesse sistema podre mesmo que tivéssemos que escolher um carro que se descarrilhe em direção ao abismo.

Não sei muito bem mais se era opinião, porém dizia ser minha liberdade. Ser livre era pensar só em mim e no desejo de estar aninhado em alguma função no qual eu seria o menos capacitado a exercer. Para isso, era simplesmente necessário se aproveitar do  profundo desprezo dos concidadãos pela leitura e aprofundamento do conhecimento. Nada como as teorias simples para se fixarem nas mentes das pessoas.  Falar em liberdade como se fosse se defender de minha incompetência em ter argumentos. Só dizer que a liberdade estava sendo ameaçada porque outros queriam ter a chance em sobreviver.

Fui muito bem acolhido por uma legião de ressentidos. “Esse é o meu país.” “Todos são canalhas!” “Aqui é mundo dos espertos.” Eram frases que repetia em meus comentários políticos para, aos poucos, naturalizar todas as escolhas políticas que eu fui assumindo. Meu narcisismo alimentava um ódio na política e pela política. Nada de democracia, mas sempre era bom citar sobre as instituições que estariam vendidas ao sistema. Tudo sob controle das “forças ocultas”. Não é novidade na história de meu país o uso dessa retórica. Não assumi nenhuma função no “Gabinete do Ódio”, pois esse sentimento já estava naturalizado em mim pelos inúmeros reveses em minha vida que depois percebi que foram frutos por não me dedicar a estudar.

Eu tinha um profundo ódio quando alguém citava Machado de Assis que deveria ter sido bruxo em vida. Como entender um país que tivesse um escritor como referência de uma época distante. Novas tecnologias. Escrever num Twitter era minha poesia. E teve um momento de meu desempenho na assessoria em que sugeri para um Senador a fazer uma emenda com inúmeras palavras sem uso da vírgula simplesmente para dificultar a possibilidade do chamado veto parcial. Essa postura me valeria uma cadeira na Academia Brasileira dos Canastrões. Então, foi muito difícil perceber que a compaixão estaria desconstruindo meu mundo. E fui aos poucos me dedicando a reações mais nervosas e mais destemperadas. Até que sucumbi no chão em plena via pública.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

A POLÍTICA FORA DA QUARENTENA - NÚMERO 21


Vista da hidrelétrica de Itaipu, em Foz do Iguaçu, Brasil
Imagem Paulo Whitaker/Reuters

                                     A Política para Evitar o Apagão

Por Vagner Gomes de Souza

 

Nesse momento a MP 1031/2021 sobre o tema da privatização da ELETROBRÁS retorna para ser apreciada na Câmara de Deputados sem tempo hábil para amadurecer as modificações aprovadas no Senado Federal. Todavia foi o Poder Executivo que fez essa temerosa opção de fazer uso de uma Medida Provisória para a desestatização de uma empresa de importância estratégica na política pública de acesso a energia elétrica para as populações de baixa renda e na construção da retomada do crescimento nacional. A tramitação via Projeto de Lei pode ser mais longa, mas permite ao representante eleito melhor condições de analisar a situação que se agrava com os novos relatórios sobre a eminência de uma crise hídrica no país. Estamos sob a possibilidade de um apagão da energia elétrica num momento crucial para tentar criar empregos.

Não se pensava numa crise hídrica mais severa que a vivida pelo país há 20 anos quando a MP foi apresentada  em fevereiro desse ano. A situação política modificou de uma forma em que aqueles deputados federais que votaram SIM em maio desse ano precisam estar cientes que estão recebendo praticamente uma Medida Provisória com a variante do atraso energético. Essa variante do atraso poderá levar milhares de brasileiros a conviver com a escuridão diante de custos que recaem no orçamento familiar em tempos de uma Pandemia que apresenta tamanha resistência. Muitos que votaram pelo SIM em maio pensando numa “modernização da economia” agora estão sob a pressão do tempo diante de modificações que devem a agravar nossa capacidade de operação política no enfrentamento do Apagão sem precisar do impopular racionamento. 
                                 

Não são vozes de esquerda que apresentam a proposta da MP como um fiasco. Políticos do centro liberal já alertam para os custos aos consumidores e analistas de economia alertam para perdas para os cofres públicos como se o Estado fosse Investir na Privatização. Seria o mesmo que reformar um carro ao dobro de seu valor de mercado para vendê-lo em seguida. Esses alertas devem se somar aos custos políticos de estarmos sob a pressão da bandeira vermelha. As contas de energia aumentam nesse faixa o que está pressionando uma escalada inflacionária acima da meta desse ano. O perigo do Apagão é um motivo para que a política se imponha diante dos cálculos dos tecnocratas uma vez que não podemos sobreviver dos restos como se fosse o essencial na vida humana.

A MP simplesmente pode “caducar” (não ser apreciada no prazo) e permitir que um Projeto de Lei seja apresentado e Audiências Públicas sejam realizadas para analisar se esse seria o melhor momento para privatizar a ELETROBRÁS diante dos problemas aqui expostos. Os Deputados não pode se votar num “cheque em branco” sobre um tema complexo numa conjuntura que exige muita moderação nas decisões. O crescimento econômico com justiça social é o que alimentará nossa população a partir de fontes energéticas limpas. Precisamos fazer do exercício da política um “ponto de equilíbrio” que evite um passo adiante que empurre o Brasil para as trevas do Apagão.


segunda-feira, 14 de junho de 2021

A POLÍTICA FORA DA QUARENTENA - NÚMERO 20


Uma proposta de Reforma Política – Voto para Senador

Por Vagner Gomes de Souza

 

Acompanhar a CPI da COVID19 é um exercício para aqueles que demonstram muita imunidade para alguns discursos retrógrados de senadores que poderiam ser apelidados de Bancada dos Músicos do Titanic. Uma referência a cena do filme ganhador do Oscar de 1998 em que músicos tocavam enquanto o navio se afundava. Acrescentaria que o gesto dos músicos não significa que eles negavam a situação de calamidade, mas buscavam aguardar de forma resignada um desfecho para a situação.

Na versão atual da Bancada dos Músicos do Titanic com ilustríssimos senadores Marcos Rogério (DEM - RO), Eduardo Girão (PODEMOS - CE), Luís Carlos Heize (PP - RS) e Marcos do Val (PODEMOS - ES), na ausência de botes e coletes salva-vidas, eles estariam distribuindo algum remédio de tratamento precoce. Tamanha negação da ciência expõe o medievalismo dessa “ponta” de Iceberg de um mosaico de políticos que emergiram num momento eleitoral para negar a política das instituições democráticas. Percebemos neles o discurso comum de muitos brasileiros que não acreditam na democracia política e valorizam o “atalho” da centralização. A defesa da liberdade dos antigos é muito forte para defender o direito em explorar a classe dos trabalhadores. Eles são o retrato do embrutecimento do debate político ao ponto de achar que perguntas sobre Ciência apresentadas pelo Senador Otto Alencar (PSD-BA) teria sido feitas para agredir uma médica. Desconhecem a Ciência e assumem essa postura, pois são agressivos e apoiam um Presidente que uma vez afirmou que não estuprava uma Deputada por ela não merecer. Seriam adeptos de o cinismo desconhecer essa polêmica de 2014 ainda mais se decidiu ascender ao Senado da República.




Todavia, lá eles chegaram porque as forças progressistas aparentemente consideravam que em 2018 as eleições seriam tranquilas. Contribuíram com o ressentimento ao votar e no lançamento de uma variedade de candidaturas que fragmentaram o campo democrático. Então, os senadores acima citados forma eleitos com o seguinte percentual de votação: Marcos Rogério, 24,06%; Eduardo Girão, 17,09; Luís Carlos Heinze, 21,94% e Marcos do Val, 24,08%. O último foi eleito numa sigla que tinha Socialista na nomenclatura e depois migrou de Partido. Observamos que nem 1 em cada 4 votos eles tiveram porque a fragmentação partidária aumentou muito desde a Constituição de 1988 que não prevê a eleição de Senador em dois turnos.

 Essa deveria ser uma urgente Reforma Política, ou seja, a eleição para o cargo de Senador em dois turnos uma vez que é único cargo majoritário que não exige uma votação mínima para se ocupar o cargo. Imagine-se o aprofundamento da fragmentação das eleições ao Senado no futuro com a vitória de Senadores com menos de 15% dos votos. O Senador da República representa o Estado da Federação. Ser eleito com menos de 50% dos votos do Estado o aprisiona mais ao grupo político que o elegeu ao contrário de forçá-lo a ter uma visão mais ampliada para lhe qualificar o cargo. Menos representante da República e mais “chefe de facção” esse é o perigo caso não se pense nesse item como Reforma Política.

 

sábado, 5 de junho de 2021

LIÇÕES DE POLÍTICA E HISTÓRIA - NÚMERO 1

                                               Combate a epidemia de Cólera em Hamburgo 


                               Pandemias, Democracias & Repúblicas

Em memória do meu filho Ricardo Góes Magalhães Marinho (1988-2017), vítima de outra pandemia.

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Cólera, a despeito de algumas discussões entre nós historiadores, é geralmente aceita que foi uma doença inteiramente nova no século XIX, pelo menos para a Europa e a América. Tendo sida identificada em Bengala desde a Antiguidade e observada nas campanhas de Alexandre, o Grande e depois por outros viajantes para a Índia. Mas só veio para a Europa como resultado da abertura de novas rotas comerciais através do Afeganistão e da Pérsia após a conquista britânica do norte da Índia, saindo assim de Bengala em 1817.

Logo, em meados da década de 1820, foi interrompido o suposto cordão sanitário militar estabelecido pelos russos, mas o comércio seguiu crescendo na região e em 1827 a cólera estava movendo-se ao longo do Volga e chegando a São Petersburgo e daí para Alemanha em 1831 e Grã-Bretanha e França em 1832.

Assim que chegou à Europa, a cólera rapidamente se alicerçou em outro aspecto decisivo da sua expansão no século XIX. A industrialização ajudou a mover a cólera rapidamente de um lugar para outro, primeiro ao longo dos rios e canais que eram as principais artérias de transporte nas décadas de 1820 e 1830, e em seguida, ainda mais rapidamente ao longo das linhas ferroviárias que começaram a ser construídas em toda a Europa a partir da década de 1840 em diante, esse processo que seria brilhantemente sintetizado num famoso texto de 1848 que expressou o sentimento de que tudo que era solido desmanchava no ar.

A coincidência dessas grandes epidemias de cólera com períodos de guerra, agitação e revolução é muito óbvia para ser ignorada e foi observada em uma variedade de maneiras pelos contemporâneos. Em 1848-1849, ela seguiu as forças da ordem, incluindo mais uma vez as tropas russas, que ajudaram a derrotar a Primavera dos Povos. A coincidência não passou despercebida aos contemporâneos, que compararam a grande limpeza da Europa após a epidemia com o retrocesso da maré revolucionária pelas forças da reação, lideradas pela Prússia e pela Áustria. A epidemia de 1854-1856, que de forma semelhante varreu a Europa da Rússia ao Ocidente, foi também o único que se espalhou pela Europa de Ocidente a Oriente, levado para a Turquia, Bulgária e Oriente Médio por tropas britânicas e francesas que lutaram na Guerra da Crimeia. As epidemias de 1866 e 1871 foram espalhadas pelas guerras de Bismarck para a unificação alemã. Em 1892, a cólera chegou ao oeste e depois para a Europa Central com uma onda de migrantes em fuga da perseguição, em particular a perseguição antissemita, na Rússia e à procura de um novo lar na América, através do porto marítimo alemão de Hamburgo. Portanto, mais uma vez, como na historia da Peste Negra, tanto a guerra quanto o comércio levaram as doenças a novas vítimas.

O miasma, como era conhecido, naturalmente apelava aos interesses de qualquer estado que estivesse particularmente preocupado com os efeitos econômicos da quarentena, e nada mais do que a cidade-estado autônoma de Hamburgo, no norte da Alemanha, o maior porto marítimo do continente europeu e o mais rico do mundo depois dos de Londres, Liverpool e Nova York.

O Conselho Médico de Hamburgo, sob a poderosa influência das famílias de comerciantes, garantiu ao longo das décadas de 1870 e 1880 que nenhum médico fosse nomeado para um cargo oficial, a menos que fosse adepto da teoria do miasma sobre as doenças e sua transmissão.

Em 1890, as opiniões do médico bacteriologista Robert Koch (1843-1910) haviam conquistado o Império, refletindo a virada do governo alemão de 1879, para uma maior intervenção na economia e na sociedade, e Berlim estava oficialmente apoiando a teoria do contágio da cólera, colocando em prática planos para quarentenas e medidas de desinfecção caso a doença surja em qualquer parte da Alemanha. Mas os poderes do governo Imperial sobre os estados federados eram limitados, tal qual numa república democrática. Berlim não poderia forçar Hamburgo a aceitar seus pontos de vista. Em agosto de 1892 a doença chegou a Hamburgo via Rússia em um trem de migrantes. Logo atingiu o ponto de captação de água da cidade, espalhou-se através dos reservatórios e foi bombeada para as casas de toda a cidade antes que as autoridades médicas viessem a tomar quaisquer medidas para diagnosticar a doença nas primeiras vítimas e/ou tomar providenciais para combatê-la ou alertar as pessoas de sua presença. Logo as vítimas estavam sendo recolhidas aos milhares em lares infectados e levadas ao hospital, e em 50% dos casos nunca mais voltaram.

A legitimidade da administração do Estado de Hamburgo foi severamente atingida pela epidemia. Koch foi enviado pelo governo nacional a Hamburgo para impor quarentena, desinfecção e outras medidas, incluindo a distribuição de água não contaminada e gratuita e instruções aos cidadãos para ferver toda a água antes de usá-la - medidas que tiveram algum impacto para o fim da epidemia. Hamburgo foi forçado a reformar seu sistema de administração e nomear os adeptos das teorias de Koch para postos-chave no serviço médico.

Foi notável em 1892 que as pessoas comuns em Hamburgo não levantassem objeções às medidas tomadas por Koch. Mas as classes trabalhadoras da cidade apoiaram esmagadoramente o Partido Socialdemocrata da Alemanha, que, como movimento político progressista de massa, acreditava na legitimidade da ciência moderna e cooperou plenamente com Koch e as autoridades no combate à epidemia. Os efeitos políticos da epidemia não foram encontrados em protestos estéreis contra A ou B, mas na lembrança constante desse desastre pelos socialdemocratas que apontaram, além disso, a pilhagem da administração do estado para servir aos interesses de uma minoria rica e negligenciar a saúde e a seguridade do cidadão comum. Nas eleições nacionais de 1893, todas as cadeiras do Reichstag da cidade foram para os socialdemocratas.

Essa é a lição que nos vem dessa experiência para que não fiquemos perdidos em agitações estéreis (de rua ou não só), sem repararmos que eppur si muove, que o movimento da Terra que traz consigo a mudança das estações, que não sentimos, na frase famosa de Joaquim Nabuco, mas este movimento de intelectuais-massa que aí está não dá para não perceber.

Niterói, 5 de junho de 2021



[1] Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi.