quarta-feira, 15 de junho de 2011

FORMANDO OPINIÃO


               A democracia indignada


As recentes polêmicas envolvendo a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro são, na verdade, apenas a ponta do iceberg em um debate muito mais amplo e inadiável: o insustentável distanciamento entre o cidadão e seus representantes. Hoje, as grandes bandeiras, as grandes expressões de cidadania, individuais e coletivas, surgem muito mais a partir de meios

O Parlamento e mesmo os partidos já não são mais os principais núcleos de discussão e formulação políticas.
O problema, no entanto, não é a multiplicação de esferas e possibilidades de participação, muito pelo contrário, essa é a essência da democracia, cuja legitimidade, no nosso tempo, depende precisamente dessa ampliação das manifestações da sociedade.
O problema é a enorme dificuldade em dar novo significado à atuação do Poder Legislativo, adaptando-a às profundas transformações pelas quais o Brasil passou nos últimos trinta anos.
Estamos, então, diante de um desafio seminal para a democracia brasileira. É preciso reconstruir e renovar as pontes entre cidadãos e parlamentares, sob pena de vermos o Poder Legislativo perder crescentemente sua função e o seu sentido. Ao meio político parlamentar cabe assumir adequadamente a perda de protagonismo na mobilização sóciopolítica e, a partir de tal reconhecimento, se reconstruir como catalizador das diversas e renovadas maneiras de manifestação popular que agora existem. De nada adianta enviar e-mails, criar canais de TV, sites, ou utilizar redes sociais se tais iniciativas forem apenas protocolares. De nada adianta fazer a informação chegar ao cidadão, verticalmente, sem que ele possa dar uma contribuição real ao debate - e dele se cobre isso.
Ao mesmo tempo, cabe ao cidadão abandonar a fácil e cômoda condenação automática à política partidária, que decorre em semicriminalização do trabalho parlamentar. Cabe ao cidadão assumir que é dele, sim, a responsabilidade pelos atos daqueles que elege.
Que compete a ele fazer dos partidos e do Poder Legislativo espaços eficazes para pensar sua rua, seu município, seu estado, seu país. Que ele pode e deve fazer parte das organizações e fóruns que desejar, mas tais instituições não se opõem ao Parlamento, antes o alimentam, o modernizam.
Não se trata de um sonho impossível, como muitos afirmam, talvez por não conhecerem a fundo as agruras da ausência de um sistema representativo democrático. Não se trata, igualmente, do enfraquecimento das prerrogativas de vereadores, deputados e senadores, ladainha que só é repetida pelos que estão mais interessados em manter verdadeiros feudos eleitorais do que em enfrentar questionamentos e mostrar resultados efetivos.
Trata-se do desenvolvimento de uma democracia orgânica, que, ao estabelecer canais cotidianos entre o cidadão e seus representantes, se mantenha viva, criativa, forte. Se projete para o futuro.
Esse desejo, mesmo que de maneira ainda incipiente, já está claramente presente na nossa sociedade. Embora a articulação entre os diversos movimentos sociais e o Parlamento ainda engatinhe, temos visto a proliferação de diversas iniciativas que constroem justamente esse novo tipo de cidadania.
Exemplo mais notório de tal processo é a Lei da Ficha Limpa. De um forte consenso social nasceu um movimento real, que galvanizou os brasileiros e foi encampado, de maneira complementar, pelo Congresso Nacional. Foi isso o que aconteceu, também, só que em sentido inverso, na compra de carros pelos vereadores cariocas, que acabaram sendo obrigados a recuar diante da manifestação contrária da população. Em ambos os casos, evidências de que o cidadão pode, sim, penetrar esse universo que por vezes parece tão inatingível: a política parlamentar.
Em ambos os casos, da indignação nasceu a ação. Com as instituições sociais, a democracia alcança novos territórios de legitimidade.
Sem os partidos e os parlamentos, ela perde seu núcleo, sua base.
Sua alma.


Andrea Gouvêa Vieira – 14/6/2011 – O Globo


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