O Homem Irracional em Coringa: para
ler Keynes nos dias atuais
Dedico ao meu pai e ao
NEAG
O colaborador desse blog que
assina esse texto vez por outra tem insistido na necessidade de relembrar e
discutir sob a luz da atualidade filmes que hoje são considerados clássicos
modernos, especialmente os dos anos 1970 e 1980. A motivação vem de um livro
escrito por um dos melhores autores do século passado, chamado “Por que ler os clássicos?”; de Ítalo
Calvino. Aqui vamos reforçar; porque assistir a clássicos? A resposta é clichê.
Porque eles sempre têm algo a nos dizer.
Na resenha anterior falamos de
Taxi Driver, dirigido por Martin Scorsese. Foi abordada também a singularidade
de parcerias entre diretores e atores – que também incluem fotógrafos, figurinistas
e músicos (procure na internet quantos filmes de Steven Spielberg o compositor
John Williams foi o responsável pela trilha). O objetivo era escrever depois
sobre um filme dos anos 1970 com um ator que foi um dos ícones dessa década, Al
Pacino, chamado “Um dia de cão”. O
filme fala sobre um assalto de uma dupla de ladrões medíocres que acaba
supervalorizado pela mídia e os marginais acabam sendo a voz de uma sociedade
americana cheia de problemas pós-trauma do Vietnã. Ainda falaríamos que esse
filme é uma vanguarda para as questões de gênero, pois o motivo do assalto era
para o custeio de uma operação de mudança de sexo do amante do personagem
vivido por Pacino. Como sabido, um filme que a esquerda dita moderna esqueceu,
mas o seriado “Mindhunter” que está na Netflix, não. Basta ver o primeiro
capítulo. Em dias que a morte de um sequestrador tem a presença “imediática” de
um governador em plena ponte Presidente Costa e Silva, o filme mostra seu
vigor.
A proposta dessas resenhas é
principalmente falar com o público jovem, seja sob qual ideologia que diz
professar ou defender. Caso seja de esquerda, esses filmes americanos dos anos
1970 e 1980 têm muito a nos dizer sobre o processo de americanismo que vigora
no mundo; além de temas de gênero; do esfacelamento do Estado pela lógica
privatista; os abusos de imprensa e magistrados; os personagem à margem da
sociedade. Caso seja de matriz conservadora; pode-se ver o esfacelamento da
família; os questionamentos éticos e morais de uma época e, o caso seja fã das
falas e analogias de Olavo de Carvalho; contrarie o elitista filósofo da Escola
de Frankfurt (Carvalho deu um tempo para Gramsci respirar), Theodor Adorno, que
segundo Olavo foi parceiro dos Beatles, e caia de cabeça na indústria de
comunicação de massa. Caso você não se identifique com nada, continue a ler
essa resenha, pois o personagem principal diz que é igual a você: não tem nada
a ver com a política.
Coringa é o filme do ano. Em uma
hora de projeção você se pergunta como que o diretor da trilogia “Se beber, não
case” conseguiu fazer esse filme. Greve (real) de lixeiros; ratazanas gigantes
(analogia a políticos e empresários); abandono de pessoas portadoras de
problemas mentais e de idosos; subemprego; violência urbana; humilhação de
pessoas comuns em programas de televisão; dependência de remédios
antidepressivos; violência policial; exploração da pornografia no cinema (basta
ver os letreiros); uso indiscriminado do porte e uso de armas; o politicamente
incorreto (representado na gigantesca figura do anão; o único a ter empatia com
o personagem principal); um milionário que quer entrar na política franzindo os
olhos e ridicularizando quem pensa diferente dele chamando a todos de palhaços;
movimentos de ocupação contra o sistema sem política ou programa; a comoção com a morte de três homens de bem
que assediavam uma mulher e espancavam um homem supostamente indefeso. Esse
caleidoscópio está aos nossos olhos. Mas o filme se supera.
A cena que Arthur Fleck é avisado
que houve cortes orçamentários e que o serviço de assistência social que recebe
será extinto é a lembrança que a virada dos anos 1970 para 1980 marcou a onda
neoliberal com o governo Ronald Reagan. A pergunta que ele faz e não tem
resposta é a de qualquer cidadão do Brasil ao saber de contingenciamentos para
poder pagar juros da dívida pública: “Mas como vou conseguir os meus
remédios?”. Seria o “Eu, Daniel Blake” americano. Sem poder ter acesso aos
medicamentos, os abandona por ter sido abandonado. Antes que um adepto da
religião do século XXI, a meritocracia, diga que ele poderia trabalhar, basta
ver que ele tentou. Fleck estava entre as crianças com câncer no melhor estilo
“Patch Adams”, um público que ria sem julgar. Mas a sua inabilidade para portar
uma arma o deixa desempregado.
Quentin Tarantino fez um filme
para si, algo que Fellini fizera em “Amarcord” e, recentemente, Cuarón, em
“Roma”. Um filme marcado de memórias, difícil para os jovens que esperavam um
ritmo como o de Kill Bill ou Bastardos Inglórios (o que não é verdadeiro, pois
há nesses filmes vários momentos longos e lentos; muitos diálogos) e viram uma
nostalgia aos filmes e seriados de televisão dos anos 1950 e 1960. Coringa
seria de forma mais implícita uma elegia, um hino de amor aos filmes que
Hollywood fazia antes de Velozes e Furiosos e Transformers. A escolha pela
logomarca da Warner de “Laranja Mecânica”; “Todos os homens do presidente” e o
já citado “Um dia de cão”, mostra isso. O filme de 2019 é um filme pela
fotografia, figurino, maturidade, atuação, roteiro, um belo filme dos anos
1970.
A New York de “Coringa” é suja e
cinzenta como a de “Um dia de cão”. A ideia de um suicídio ao vivo na televisão
é de “Rede de Intrigas”. A relação entre mãe e filho insanos nos remete ao
filme clássico de 1960, “Psicose”; os corredores claustrofóbicos do prédio em
ruínas nos transporta pelo posicionamento da câmera a “O Iluminado”. O
espancamento na ruas é o mesmo que Alex passa após seu tratamento em “Laranja
Mecânica”. Arthur Fleck e a sua vizinha/musa
fazem um gesto com os dedos na cabeça numa homenagem ao mesmo gesto feito por
Travis Bickle em “Taxi Driver” , pois como o enredo de “Coringa” se passa em
1981, o Fleck viu o filme. Aliás, como sabemos que se passa em 1981? Pelo
letreiro do cinema aonde dois filmes que foram lançados nesse ano estão
expostos: “Blow out” e “As duas faces de Zorro”. O primeiro filme no Brasil
teve o bom título “Um tiro na noite”, com John Travolta. Tudo relacionado com a
trajetória da família Wayne. Já “As duas faces de Zorro” é a alusão a um herói
mascarado mais antigo que será revivido pelo homem-morcego que nascerá à
fórceps nesse ano, segundo o filme em uma cena que homenageia o primeiro Batman
de Tim Burton.
A relação entre Arthur – que não
é um milionário, mais uma referência a um clássico da comédia romântica dos
anos 1980 – e o apresentador de televisão vivido por Robert DeNiro (sim, o
Travis Bickle de “Taxi Driver”) é uma simpática e mais macabra alusão ao enredo
de um dos filmes mais subestimados de Martin Scorsese, “O Rei da Comédia”.
Nele, um homem que quer fazer stand up (novamente DeNiro!) não consegue o apoio
de um comediante veterano e apresentador de talk-show vivido pelo eterno Jerry
Lewis. Aqui, em “Coringa”, estamos com programas televisivos que esculhambam o homem
comum em nome do riso fácil e da audiência, algo que os mais velhos no Brasil
já viram em “O povo na TV”; “Aqui e Agora” e temos hoje um mercado amplo de
Ratinhos e Datenas; passando pelo ET de Gugu; o sushi erótico de Faustão e a
misoginia de “Pânico”. Diante desses usos e abusos, parafraseando um personagem
ícone do cinema brasileiro, diante das câmeras, Arthur Fleck é o c****, meu
nome é o Coringa!
Jovem, não busque fazer
comparações entre o Coringa de Heath Ledger e o de Joaquin Phoenix. Eles não
são opostos, se complementam. São contextos diversos. Ledger surge do nada para
o caos e fazer o Batman ser aquilo que seus autores queriam nos anos 1930: um
ícone fascista para os EUA; o homem providencial. O carinho a Ledger é tamanho
que a cena de Phoenix na janela do carro policial é uma lembrança daquele
respirando ar puro. Ambos mostram o quanto foi equivocada a interpretação de
Jared Leto.
Phoenix mostra que a
desesperança; a falta de cooperação; de empatia (o anão agradece) e o declínio
do homem público, da ágora moderna, pode levar à perda da política, da sanidade
individual e social. Um Coringa que em meio a uma multidão em uma anomalia
selvagem que aceita qualquer liderança, faz de um louco o seu poder constituinte para que a tire do
estado das coisas que está, que dança tal qual um Mick Jagger sobre um carro da
polícia; onde a simpatia pelo diabo que surge quando as instituições falham é
fatal para uma juventude órfã; a sociedade desce escada abaixo para os círculos
do inferno de Dante como Arthur desce os degraus e surge o Coringa. Phoenix
vira uma Fênix. E das negras.
Quando se celebra os 80 anos de
Batman com o Coringa – muito superior a qualquer filme da Marvel que
gradativamente infantilizou seu público- percebemos como as coisas estão
trocadas e diversas aqui e alhures. Há esperança? Há. Temos Chaplin. Smile.