segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: INFILTRADO NA KLAN

 
INFILTRADO NA KLAN: SPIKE LEE FAZENDO A COISA CERTA

Dedicado a um certo capitão Rodrigo, um infiltrado
Por Pablo Spinelli
A construção de um pensamento de um intelectual pode, em muitas vezes, sofrer flexibilidades, mudanças, rupturas, reposicionamentos, aprofundamentos, autocrítica, enriquecimentos de acordo com o avançar da idade. Não é uma lei, mas é o que ocorre na maioria das situações dos escritos deixados por filósofos, escritores de ficção, poetas, pintores, cantores em geral. Um caso de uma percepção arguta, perspicaz das mudanças dos tempos, das variações de um público ao longo de décadas é da extraordinária e multifacetada Bibi Ferreira que nos deixou recentemente. Dos musicais americanos traduzidos para a nossa língua; das comédias de costumes e clássicos de nossa literatura, a atriz mais idosa até há pouco em atividade no país chegou à “Gota D’Água”, musical de Paulo Pontes e Chico Buarque que adaptava o clássico grego, a tragédia Medéia, para o Brasil dos anos de chumbo da década de  1970. Foi Bibi Ferreira que popularizou para as gerações com mais idade a vida e obra de Edith Piaff, antes do excelente filme que nos revelou Marion Cotillard.  Peça política, musicais americanos, divas – além de Piaff, a portuguesa Amália Rodrigues. E muito, muito mais.
Para além da devida homenagem para Bibi Ferreira, podemos usar – a não sem polêmicas – distinção entre “jovem” e “velho” para vários pensadores, onde geralmente, o primeiro adjetivo tem uma carga de arroubos, de insights que se revelariam mais tarde na obra madura, o jovem, como tal, seria o voluntarista, extremista na análise da vida – seja pelo excesso de otimismo da mudança, seja pela perspectiva pessimista que nada há de se fazer. Foi gasto uma energia muito grande para encontrar rupturas e continuidades entre o “jovem” e “velho” Marx, um labirinto que o filósofo Louis Althusser criou e poucos querem sair. Assim aconteceu com Hegel, Tocqueville, Sartre, além dos clássicos gregos, para citar alguns. Claro que o tempo pode gerar mudanças para o bem ou para o mal, depende de quem lê. Do idealismo para o materialismo; do liberal conservadorismo para o reacionarismo, do radical para o moderado, isso tudo fica a gosto do freguês. Há certos parâmetros que procedem. Uma dessas divisões que já é clássica na literatura acadêmica é o caso do jovem Gramsci, cheio de revolução nos capilares, que achava que a Revolução de 1917 contrariava O Capital, com o Gramsci mais velho na cadeia, onde revê seus erros naquela conjuntura, afinal, dissera que o fascismo seria breve. Algo que não viu ao passar de cárcere em cárcere pelas mãos daqueles que ocuparam o poder em 1922 e só saíram oficialmente em 1944, não pela ação do movimento da política na sociedade civil, mas pelo uso da guerra de movimento das tropas aliadas, dentre elas – como tão simbolicamente ficou retratado em A Vida é Bela – a dos EUA que ampliaria o seu americanismo e fordismo pela Europa Ocidental.
Após essa longa introdução cujo objetivo é dizer que uma obra só não sintetiza o pensamento de um autor; que a ruptura entre “jovem” e “velho” não quer dizer que seja progressiva e, em alguns casos tal distinção nem existe, e, não menos importante, identificar que muitos dos que participam com veemência da paranoia instituída por alguns intelectuais e youtubbers que Gramsci com seu “marxismo cultural” foi o patrono da destruição dos valores ocidentais, não leu um terço do que esse autor, professor de Letras, crítico de teatro, escreveu. Mas, vamos ao que interessa: o que isso tem a ver com cinema e Oscar?
Alguns autores marcaram suas obras por certas idiossincrasias a ponto de ser fácil reconhecer o diretor pelo filme. A loira de Hitchcock, diretor que já dizia quem era o culpado logo no início do filme (exceção é Psicose). O personagem Antoine Doinel, alter-ego na maior parte dos filmes de Truffaut. As questões psicanalíticas e o inconformismo monogâmico de Woody Allen. Os personagens da periferia urbana, como taxistas e gangsters de Scorsese. Os silêncios e os enquadramentos de Ingmar Bergman. O surrealismo de Luis Buñel.  O exagero circense e rabeleisiano de Fellini. A câmera na mão e as alegorias de Glauber Rocha. Hoje, alguns remanescentes do que seriam diretores-autores, são Tim Burton, Wes Anderson e Quentin Tarantino. Suas digitais estão em todos os seus filmes de forma perceptível. No caso do diretor Spike Lee, se tivermos que buscar um espaço a partir de sua trajetória, ele está mais para as mudanças entre o “jovem” e o “velho” colocadas no nosso preâmbulo, prezados leitores, do que o diretor que mantém sua marca sem abrir mão de seus conceitos visuais estéticos e de abordagens de roteiro.
 
Spike Lee é um diretor que começou jovem no início dos anos 1980. Começou com documentário que tratavam de forma virulenta o tema do racismo contra os negros. A questão da identidade negra está presente desde sua infância, pois nascera em Atlanta, no sul dos EUA, o mesmo Estado retratado no clássico do cinema que defendeu a causa sulista na Guerra de Secessão, “...E o vento levou”. Sua juventude foi no Brooklin, local onde a vida societária é segmentada: brancos, latinos, negros, orientais. Sua carreira deslanchou no filme Faça a coisa certa (1989) onde aponta uma metralhadora giratória para todas as etnias que teriam como denominador comum o preconceito. Seu filme mais ambicioso – herdeiro de seu início como documentarista – é o polêmico Malcolm X (1992) que foi encarnado magistralmente por Denzel Washington que perdeu para o Oscar porque havia um Al Pacino cego dançando tango. Por falar em dança, Spike Lee, admirador confesso de um cantor de cabelo afro com uma voz singular e uma dança singular, Michael Jackson, acabou por produzir um dos seus álbuns e disse que passou pela filmagem mais difícil de sua vida ao subir em uma comunidade (Dona Marta, em Botafogo) onde o tráfico garantiu a segurança de sua equipe. E assim foi feito o clipe de They Don’t Care About Us, de 1996.
Spike Lee com um cantor que estava sendo alvo de bombardeios por conta de motivos inconfessáveis não assumia sua negritude. Esse é um Spike Lee diferente da pauta da identidade, da valorização da diferença como forma de ampliar direitos. Michael Jackson acabou por ser um ponto gradativo da virada de um diretor que começou a visar os problemas políticos da política americana para além da pauta de um ou outro movimento. É o Spike Lee da frente política. Um dos filmes mais “estranhos” para alguns críticos do já sexagenário diretor é O plano perfeito (2006), estrelado por Denzel Washington, Clive Owen e Jodie Forster. Esse filme, sem querermos adiantar sua trama, é a semente que floresce em Infiltrado na Klan (2018).
A partir de um episódio real que parece inacreditável, Lee resgata a trajetória de um policial negro que consegue se infiltrar na KKK através da sua astúcia e da tecnologia da época: telefone com fio. Spike Lee começa o filme fazendo um ajuste de contas com o seu Estado de origem. Aparece Scarlet O’Hara perdida entre centenas de feridos do Sul à procura de “seus  negros” diante daquele massacre. Logo em seguida, uma homenagem aos filmes que eram tinham diretores e elencos negros (é, leitor jovem... Pantera Negra e Corra não colocaram o ovo em pé), o que foi chamado de blaxpoitation. O mais famoso deles foi Shaft (1971). A musa foi a atriz Pam Grier, a mesma que foi resgatada por Quentin Tarantino em Jackie Brown (1995).
O curioso é que ainda há um pouco do jovem e intempestivo Spike Lee no atual. Um exemplo disso foi uma polêmica onde acusou Tarantino de ser racista por conta do vocabulário que seus personagens de todos os tons de melanina aplicam aos afro-americanos. O estopim foi Django Livre (2013). Tarantino respondeu que além de ter trabalhado com Pam Grier, é notória sua relação com Samuel L. Jackson, além de ter revelado para o grande público Ving Rhames, o temido Marcellus Wallace de Pulp Fiction (1994). O resultado disso foi a provocação com mais dureza ao personagem de Samuel Jackson em Os oito odiados (2015). O ponto paradoxal é que a abertura do filme e algumas cenas e falas remetem justamente a filmes de Tarantino. Seria um indicativo da mudança do radicalismo do diretor?
Infiltrado na Klan é um filme de narrativa irregular. Tem pontos que parece documentário. Outros, drama, outros, comédia de erros (como as dos Irmãos Coen). Não deve ganhar nenhuma estatueta, na melhor das hipóteses, por conta da ardente paixão de Spike Lee, o Ken Loach americano, a de roteiro adaptado. Porém o filme tem méritos. Revela um ator que lembra aos espectadores de mais de 40 anos os maneirismos de outro ator negro (preto, afro-americano) Richard Pryor; o protagonista e herói improvável John David Washington. Um caso semelhante ao do clã Carradine e de Michael Douglas, o poder da genética: o policial que trabalha usando a lei e a política de unidade com um policial judeu contra o racismo é filho do mesmo ator que fez o ativista Malcolm X, Denzel.



O policial judeu vivido por Adam Driver nos trouxe a percepção da má condução dos últimos filmes da franquia de Star Wars. Adam Driver é ator, e dos bons, e não um genérico mal resolvido de neto de Darth Vader. No filme há a presença do ator, cantor e ativista Harry Belafonte, uma das maiores vozes contra a segregação racial no século passado. Todo o elenco de brancos racistas foi bem conduzido pelo diretor e seu roteiro. Infiltrado na Klan nos faz acreditar que Spike Lee ao ver o resultado da última eleição presidencial dos EUA se perguntou: por que perdemos? Lee saiu do Brooklin, de Nova Yorque, do Bronx. Foi para a América profunda do escritor William Faulkner, do dramaturgo Tenesse Williams. Infiltrado na Klan tem muito a dizer para o Brasil atual. Primeiro, porque uma parcela da esquerda ainda acredita que movimentos que apostam cada vez mais na diferença terão mais força do que um princípio da universalidade – quem valoriza a diferença é o extremista conservador, como os membros da Klan, os nazistas, os homofóbicos, os misóginos, como nos revelou o professor Antonio Pierucci no livro As ciladas da diferença (1999).
Segundo, porque parcelas dessa mesma esquerda ignoraram o Brasil profundo, o brasileiro das pequenas e médias cidades; os  brasileiros de Barradinho, do interior de Goiás, Tocantins, Roraima. Terceiro, assim como já fizera em o Plano perfeito, Spike Lee convoca os judeus americanos para dizerem em Infiltrado que está tudo na mesma cruz a pegar fogo. Para superar uma provável reeleição de Trump é necessário invenção na política, criatividade. Obamas e Clintons. A personagem ativista feminista seria uma jovem Michelle Obama? Mulher, negra e protestante. Por fim, mas não menos importante, será que teríamos ineptos que não perceberam que havia um infiltrado no governo que num conchavo com a maior emissora do país passava vazamentos sobre movimentações financeiras? Ou isso é cortina de fumaça para encobrir o que o público conservador adorou, foi ao delírio, quando ouviu o diretor de Marighella falar no final de Tropa de Elite 2 sobre milícias, sistema e Brasília?

sábado, 16 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: PANTERA NEGRA

 Cena do Filme Pantera Negra
PANTERA NEGRA: BLACK IS BEAUTIFUL
Por Pablo Spinelli
Dedicado à memória dos jovens do time rubro-negro carioca
A cultura pop tem canais de reflexão sobre a conjuntura política com muita maestria e sensibilidade, independente da formação ideológica. Um exemplo que vem desde os anos 1960 são os filmes da franquia 007. Outro são os quadrinhos ou em forma cult, graphic novels do mundo da Marvel, algo que está presente nas mais de duas dezenas de produções que começou com Blade e está no apoteótico Thanos, o simbolismo metafórico do desemprego estrutural vigente no mundo onde a robotização num estalar de dedos cria desempregados  e subempregados (há alguns que falam que  é uma alusão aos escritos de Malthus). A Marvel é uma editora de Centro político com viés mais Democrata de um Clinton que um Republicano de Trump; aliás, por sua vez, mais Clinton que Obama; mais George W. Bush do que Trump.
A primeira história do Homem de Ferro se passa no Vietnã. As atrocidades com Tony Stark são feitas por vermelhos, como está escrito na história original. Hulk vem do medo da guerra nuclear e das consequências nucleares de Hiroshima. Homem-Aranha foi a forma pela qual a editora viu a possibilidade de ter o retorno dos jovens aos seus gibis. Já foi questão da UERJ a relação entre os X-Men e os movimentos contra as leis segregacionistas contra os negros. Professor Xavier como Luther King e Magneto como Malcolm X (de onde saiu o “X”). O movimento negro conseguiu um personagem urbano cuja pele era o seu poder, Luke Cage. Assim foi com o leitor católico com o personagem mais barroco dos quadrinhos, Demolidor (cuja adaptação na NETFLIX é a melhor adaptação de todo o universo Marvel, em especial a última temporada). O mundo esotérico entrou em moda? Os costumes foram abalados pelos ácidos lisérgicos dos anos 1960? Aparece o Dr. Estranho. Os filmes do lendário Bruce Lee fazem bilheterias enormes? Cria-se Punho de Ferro. O mercado editorial precisa da Europa para o consumo? Thor, Colossus,  Gambit, Capitão Britânia, dentre outros, cumprem bem esse papel.
 
 Martin Luther King JR e Malcom X
 
Nos mesmos anos 1960 temos um processo intenso e nada fácil de descolonização na África. A “missão civilizadora” de Tintin mostra para que veio. Imerso em guerras civis, o continente tem países novos que precisam criar uma identidade nacional, uma autoestima que tem que ser valorizada. A ideia de valorização da negritude se espalha pela América de norte a sul por conta da infeliz presença da escravidão de origem negra para esse lado do Atlântico. Nos EUA, no início dos anos 1970, após o desaparecimento violento do Dr. King e de Malcolm X surge o grupo Pantera Negra, cujas virtudes – valorização da cultura negra; teias de  solidariedade; politização das  camadas periféricas estadunidenses; uso da lei que permite o porte de arma para todos os cidadãos para intimidarem as batidas de policiais brancos aos negros que por medo, surpresa ou violenta emoção, geralmente terminava em autos de resistência -  acabaram por se perder por perda de líderes que foram substituídos por oportunistas; radicalismo; uso da  luta armada; corrupção. A Marvel, aproveitando a conjuntura e seu tino comercial incansável, acabou por criar um herói que tinha tudo para dar certo: um negro africano. Mas o etnocentrismo não permite grandes arroubos, seria um negro africano com o nome de um movimento dos EUA: Pantera Negra.
O filme Pantera Negra, candidato ao Oscar, é o filme que reúne diversos motivos para estar ali. Foi bem de bilheteria, vai trazer a juventude para a cerimônia, tem um elenco praticamente negro, um bom roteiro (que faz muita falta a todos os Vingadores) e, o essencial: é bom.
O filme usa o visual com muita proximidade ao original. O vilão branco é de origem da África do Sul do apartheid. O filme tem uma toada shakespereana muito interessante ao abordar vingança, traição, disputa por um trono. A dignidade do filme ao tirar do olhar do senso comum que a África é apenas a savana com o leão comendo a zebra ou crianças famélicas com mães desnutridas já vale a sua indicação. Por motivos de direitos autorais já resolvidos, posto que a Disney comprou tudo que tem direito, o vibranium nada mais é que o adamantium de Wolverine e do escudo do Capitão América.  Para ter garras precisa da África do Pantera.
Para as aulas de história há traços importantes que podem ajudar os alunos a compreenderem o valor da oralidade no mundo africano; que diferente do mundo europeu, sentar no trono não é vinculado à hereditariedade, mas é um espaço público e democrático aberto a disputas, sem privilégios. O filme mostra que não existe a África, mas Áfricas, sendo que uma etnia não quis se submeter aos felinos negros. O valor da ancestralidade; o papel dos griôs – o sempre competente Forrest Whitaker que já foi O último rei da Escócia. Para completar, Pantera Negra precisa de cérebros e destreza física de mulheres, seja a irmã adolescente, seja o grupo de guerreiras que o acompanha.


O enredo nos coloca em duas situações muito importantes para os dias atuais. O Brasil, no atual governo, adota uma política externa que contraria a sua tradição desde Rio Branco, passando pela presença em duas guerras mundiais contra governos autocráticos, participou de forma decisiva para a criação do Estado de Israel e Jerusalém como cidade internacional, contraria a política externa dos generais-presidentes na ditadura, posto que Geisel foi o primeiro governante a intensificar  as relações com o continente africano e prontamente reconheceu os governos liderados pela esquerda em Angola  e Moçambique, isso para não citar o Mercosul que foi erigido por Sarney e a abertura radical à globalização de Collor onde o Brasil sediou uma conferência internacional visando a conservação do meio-ambiente (ECO 92). A bandeira do antiglobalismo (sabe-se lá o que é isso em um país derivado de uma Expansão Marítimo-Comercial) defendida pelo chefe do Itamaraty é algo similar aos dilemas de T’challa. Abrir ou não abrir Wakanda para o mundo? Refugiar-se numa zona de conforto que é disfarçada pelo pastoreio e simplicidade ou permitir que sua tecnologia tenha como alvo o bem comum global? Como é estar na África sem ver os mais diversos problemas que rodeiam o continente, como o uso de crianças em exércitos e tráfico humano – como o filme apresenta em seu início – e ficar indiferente? A decisão de T’challa e o discurso final na ONU valem todo o filme. Uma demonstração que se pode falar pouco em uma conferência internacional, mas falar propositivamente, de forma democrática e inclusiva, sem abrir mão de suas tradições.
Além disso, há uma mensagem para a esquerda, negra ou não. A personagem de Killmonger, por conta de um trauma, acaba por servir aos EUA para ter uma expertise que objetiva a conquista do trono manchado de sangue. Sua política é cheia de voluntarismo, uma revolução mundial permanente para acabar com a discriminação sobre os negros nos mais diversos pontos do globo, uma referência ao radicalismo do movimento que batizou o filme. Sua proposta de usar um exército moderno e armas potentes para liberar o povo negro a partir da morte dos não-negros – seria Killmonger um  herdeiro dos malês?  - é contraposta por  T’challa, que crê ser  melhor dar um passo atrás para avançar dois. É possível se infiltrar na Klan para mostrar sua estupidez a partir de dentro ou tem que se fazer a coisa certa, matar logo e resolver tudo? O tempo pode soprar a nosso favor desde que com temperança e paciência. Pantera Negra é a resposta do Spike Lee maduro ao Spike Lee juvenil. O filme com protagonismo negro do ano passado tem que aprender com a política de T’challa: pode-se correr, tropeçar e  não mais levantar  ou caminhar de forma  ziguezagueante, mas sempre adiante, para a inclusão e democracia.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: A FAVORITA

 
A FAVORITA ou “Sabe com quem está falando?
Por Pablo Spinelli”
Dedicado ao grande mestre Ilmar R. de Mattos

Durante cerca de um século, uma frase que foi criada e popularizada entre as elites do Império brasileiro no II Reinado foi muito usada, a ponto, como se percebe pelo recorte temporal, de chegar à República. Essa frase sintetizava um olhar sobre os dois partidos do Império até 1870 (depois foi fundado o Partido Republicano): o Partido Conservador e o Partido Liberal. Em cada um desses partidos havia um núcleo dirigente que mantinha a hegemonia sobre os demais membros do partido (seria bom, prezado leitor, saber que sempre houve, há e haverá disputas internas dentro de um partido político, correntes diversas que são capazes de agredir mais a si mesmas do que o adversário do outro campo, tal marca fez parte da história do PCB, do MDB, do PT, da ARENA, do PSOL e, agora, o partido da hegemonia do nosso atual governo federal, o PSL, reforça tal observação, como no caso do labirinto que os filhos fazem ao General, este à Casa Civil, esta à Câmara dos Deputados etc. etc.)
Voltemos à frase. “Não há nada mais parecido com um Saquarema (núcleo dirigente dos conservadores) do que um Luzia no poder”. Essa frase serviu para a genialidade de Oliveira Vianna afirmar nas primeiras décadas da República que os partidos eram todos iguais, tinham o mesmo plano de governo, que o partido da oposição fazia no poder a mesma política daquele que acabara de sair. Dentro dessa visão, Oliveira Vianna seduz seu leitor para a seguinte reflexão: para que partidos no Brasil se todos são iguais e não representam a sociedade? Daí, um pulo para a criação da ditadura do Estado Novo de Vargas em 1937.
Coube a Ilmar Rohloff de Mattos escrever em sua monumental obra “O Tempo Saquarema” que as coisas não eram assim, como afirma Oliveira Vianna. Além das nuances que essa frase explicita, Mattos faz uma defesa da democracia ao se defender que por mais que seja duro entender, os partidos não eram ou são iguais, podem ter polos invertidos, pontos tangenciais, mas ao se afirmar uma igualdade se defende a sua anulação.
Para que toda essa introdução? Usamos essa frase para dizer que em política é capaz de fazermos a política do “outro” sem percebermos. Não é importante saber quais são as diferenças ou semelhanças dos atores políticos, mas quem tem o controle do tempo, da direção, quem tem a hegemonia.
O filme A favorita, indicado para 10 Oscars, incluindo filme, atriz, atriz coadjuvante (no caso, duas), edição, dentre outras indicações, é uma produção que pensou em fazer uma coisa e acabou por dar como produto, outra. Esse é o nosso entendimento. Mas antes de explicar nosso argumento, creio que o espectador que vá ver ou rever a película tenha a atenção para a linguagem e o roteiro do filme. Ele é um mosaico rico da cultura inglesa tanto na literatura como no cinema. Vai do citado no filme Jonathan Swift até Monty Python, como fica claro na corrida de gansos. Há por todo o filme a influência de vários diretores e seus estilos. Salta à vista a presença de Stanley Kubrick, especialmente quando usa luzes naturais para os interiores, como Kubrick fez em Barry Lindon (1974). A presença da loira fatal é uma homenagem ao fetiche de Hitchcock em seus filmes. Ao privilegiar a perspectiva aristocrática seguiu a extraordinária adaptação que Stephen Frears fez sobre um triângulo amorosa na Corte francesa pré-revolucionária, em Ligações Perigosas (1987). A escolha pelo tom quase farsesco, picaresco dialoga com algumas comédias de Shakespeare e termina com uma cena cheia de coelhos que muito lembra a abertura e encerramento do filme Tudo que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar (1972), de Woody Allen, cujo primeiro episódio é na corte medieval inglesa. Para os amantes da literatura ou do cinema (especialmente os vinculados à “alma inglesa”) é um prato cheio.

 
Nos últimos anos, Hollywood tem dado um tom sobre políticas afirmativas. Esse tom se tornou mais retumbante após a surpreendente (para os moradores de Los Angeles, de Nova York, não para os desempregados do “cinturão do aço” ou moradores do Meio-Oeste) vitória de Trump. As cerimônias do Oscar, suas indicações, seus discursos, suas premiações são o ápice do “Sim, nós queremos”. Começou pela salutar reivindicação da presença negra nos filmes; passou pela equivalência salarial e cotas para mulheres nas produções e, diante de um muro no caminho, a celebração do México a partir dos diretores que foram premiados nos últimos 5 anos.
Assim, o filme A favorita tem uma motivação que é um desejo do corpo feminino hollywoodiano há décadas: bons personagens para mulheres. Em um filme onde os homens são acessórios, afetados, agressivos, molestadores, fracos, quase invisíveis (tal qual as camadas subalternas que fazem a roda girar) coube a um naipe invejável de atrizes fazer o navio seguir seu rumo. Olívia Colman – uma atriz de 44 anos que consegue transmitir um peso da idade maior que sua personagem exige – faz uma Rainha Anne mimada, alienada, ranzinza, autoritária e ao final, vingativa, com maestria. Uma personalidade que difere da outra rainha que interpreta, a atual Rainha Elizabeth a série The Crown. As duas oscarizadas Rachel Weisz e Emma Stone fariam o que a mediocridade da mídia diz, uma “disputa pela atenção da Rainha” que daria sentido ao título do filme.
Enquanto que Rachel Weisz usa de artefatos, porte e presença mais masculinizada em sua personagem que – em tese – seria manipuladora dos interesses da burguesia que abria espaço na Inglaterra contra a aristocracia agrária que não queria sustentar uma guerra que interessava financeiramente aos comerciantes e manufatureiros; Stone usa e abusa dos seus olhos e expressões faciais para perceber como são as regras do jogo a partir  do momento que a Fortuna (como diz Maquiavel) poderia lhe gerar uma fortuna se soubesse usar a virtú com a Rainha Anne. Eis aí um breve resumo: o mundo do interesse egoístico. A Rainha seria o canal pelo qual as aspirações da cortesã e da decadente-que-quer-voltar-à-Corte seriam cumpridos.


Diferente de Moulin Rouge (outra inspiração) onde os personagens usavam de artimanhas para o bem comum, dentre eles, o amor, as personagens de Weisz e Stone seriam aquilo que um ex-governador de nosso Estado chamou de “partido da boquinha”. Uma quer a conservação do que tem. A outra, a conquista do que poderia ter tido se não fosse pelas agruras que seu pai a envolveu. Bem, aí voltamos ao ponto inicial. O filme era para ser de um tom onde a mulher fosse o centro, as excepcionais atrizes duelam por conta do protagonismo desejado pelos movimentos feministas mundo afora. Eis o nó górdio.
Sem fazer spoiler, pois em 20 minutos o que será descrito é apresentado ao espectador, a Rainha Anne, após 17 frustrações maternais por gestações interrompidas ou com filhos que não vingaram acaba por ter como escape para suas dores emocionais e físicas o contato carnal com a cortesã de Rachel Weisz. Diante dessa descoberta, Emma Stone corre atrás dos seus interesses e disputa com valentia e amoralidade a cama da Rainha. O duelo é de alcova. O que seria um problema. A Rainha, manipulada pelos desejos carnais sobre uma guerra contra a França, acaba por se tornando exatamente aquilo que os movimentos feministas não querem: a objetificação do corpo numa completa ausência da política. Uma Rainha alienada, mimada, que cria coelhos como filhos ou que se permite ao masoquismo permite a leitura de que a falta do papel de ser mãe cria neuroses, paranoias e obsessões, como se afirmava nos séculos XIX e XX. Os humores da monarca dependem da forma introdutória que as duas personagens usam para criar a felicidade. Não há aqui espaço para um terceiro vértice nesse triângulo (como é explícito no título).
Em um filme que se permitiu uma leitura pop e contemporânea sobre um passado (como fez Moulin Rouge) é algo deveras conservador pensar como Highlander: só pode haver uma, o que soa esquisito para um filme de pegada antenada com seu tempo. Sua mensagem está a léguas de distância de um Bertolucci e Ettore Scola. E o mais curioso: ao se propor que a Rainha é uma alucinada como a eternizada por Lewis Carrol em Alice no país das maravilhas, acaba por reforçar na última cena do filme o poder real, a soberania majestática que coloca de forma uma súdita de joelhos de forma vil uma súdita num famoso sabe com quem está falando? (em pleno terreno anglo-saxão!!! Roberto DaMatta deve ficar horrorizado com isso).  Um filme que desabonaria a monarquia mostra ao final quem tem o cetro nas mãos. Um filme que propôs o protagonismo feminino acabou por repetir clichês machistas sobre a mulher. Um filme que quis ser Luzia e acabou por ser Saquarema.

domingo, 27 de janeiro de 2019

OSCAR 2019 - Como nasce uma estrela

 
Nasce uma estrela: otimismo de uma vontade
Por Pablo Spinelli
Dedicado aos meus alunos e à memória das vítimas de Brumadinho
 
 
Bradley Cooper e Lady Gaga em cena do filme 
 
Nos dias atuais não é costumeiro usar uma resenha crítica de um filme para tergiversar sobre política. Nem sempre foi assim. Muitas resenhas sobre teatro, literatura e cinema sempre tiveram grandes intérpretes que faziam analogias entre as obras e a conjuntura da sua época, a trajetória do diretor, do escritor; a escolha e o método dos atores; os enfoques e sutilezas de um roteiro;  a escolha de cores num figurino ou de um ângulo da câmera ou ainda, a presença (ou ausência) da trilha sonora.  Assim foi com os famosos críticos franceses que viraram cineastas como Godard e Truffaut; com uma crítica na Itália com forte presença em periódicos de onde se destacou um Bertolucci; assim também o foi do Leste europeu socialista a uma New Yorker, revista considerada vanguardista nos EUA e, no caso brasileiro, há o exemplar caso de Paulo Emílio Sales Gomes, dentre outros.
A partir dos anos 1980, seja por mudanças nos cursos de comunicação social, seja por questões mercantis onde o espaço de uma folha de jornal tinha como meta o anúncio, a propaganda, as resenhas críticas – e aqui me fixo nas de cinema – caíram de qualidade tanto de analogia com a conjuntura política e social, quanto na capacidade de intertextualidade, salvo exceções como a do crítico Rodrigo Fonseca e o decano Ely Azeredo. O que o leitor se acostumou a ver foi a posição de bonequinhos, a quantidade de estrelas ou coisa que o valha. Bonequinho em pé, sinônimo de fila cheia. Uma estrela, condenação ao cadafalso do esquecimento. O valor do filme passou a ser meritocrático obedecendo a critérios subjetivos como excesso de explosões, currículo do diretor, pancadaria demasiada, ator carismático ou canastrão, dentre outros. Isso é muito pouco para qualificar uma obra.
Se assim o fosse, Sergio Leone jamais teria sucesso nos dias de hoje por escolher um ator com tão poucos recursos cênicos como Clint Eastwood para fazer a trilogia mais famosa sobre o faroeste americano, assim como Laurence Olivier poderia ser criticado pelos seus maneirismos teatrais levados à tela ou um Marlon Brando que parecia grunhir ou mastigas as palavras. Da mesma forma, a obra de Chaplin seria jogada ao lixo por conta do seu envolvimento com as atrizes de tenra idade ou Elia Kazan seria considerado um diretor menor por conta do seu apoio espontâneo ao macarthismo nos anos 1950.
 Dessa forma, colocamos que seja pela visão rasa determinada pelos espaços de informação, seja pelo subjetivismo político que torna o olhar da crítica muito reducionista e limitado por questões de natureza política, as resenhas viraram as costas para uma tradição belamente construída desde os anos 1920, para não ir além.
Longe de dizer que somos monopolizadores da forma correta de análise de um filme, não somos os únicos e  nem temos essa pretensão. Há blogs bons, mas a maioria se concentra no filme em si de forma primorosa, como o Adorocinema ou Omelete, mas pecam por não abranger mais a sua interpretação. Não podemos criar uma superinterpretação, ir para além daquilo que a obra nos proporciona ao olhar, sentir, dialogar. Mas, como nos ensinou Umberto Eco, podemos ter olhares sobre uma obra que o diretor não imaginou ou se imaginou, não publicizou. A obra de arte pode ser apropriada pelo espectador para dialogar com o seu tempo. Não só pode, como deve, pois se assim não o fosse,  a arte estaria condenada a ter mais e mais fatias de bacon e ser consumida como um sanduíche num fast food.
É muito comum ouvir os espectadores mais jovens falarem: “gostei”, “legal”, “chato”, “nada a ver”, “um porre, não entendi nada, muita viagem”. Não se pode subestimar o público. Claro que uns terão mais sensibilidade, outros menos. Há todo um capital simbólico de cada um, mas independente da formação prévia de quem vê um filme – e no caso do público jovem atual há poucas nuances de percepção e de expressividade como a colocada acima, independente das classes sociais ou gênero – o que se pode deduzir é que desde os anos 1980 e, principalmente, nos anos 1990 (quando o cinema brasileiro foi quebrado pelo governo do primeiro presidente eleito após a ditadura militar) e 2000 houve a falta de uma pedagogia molecular das massas para ver um filme a partir dos mais variados itens já expostos: trajetória do diretor; o que estava acontecendo no momento de sua produção e do ano de seu lançamento; as escolhas dos atores por aquele papel ou filme (nem sempre é o cachê); fotografia, música etc. etc. Isso não quer dizer que essa pedagogia tenha como compromisso fixar  o olhar para um determinado viés político ou ideológico, mas ao contrário, quanto mais olhares e interpretações mais a obra fica rica e ganha relevo e perenidade. Essa educação do olhar não é algo de um campo da esquerda. Começou nos vitrais da Igreja Católica do mundo medieval em uma sociedade iletrada, logo, acima de qualquer suspeita de marxismo extemporâneo, algo que se faz mundo nos dias atuais.
Essa longa digressão tem como objetivo mostrar o que permeará  nosso trabalho acerca não só dos filmes indicados ao Oscar, parceria iniciada no ano passado, mas também sobre séries e outros filmes que virão. Escolhemos para começar nossa conversa com vocês, prezados leitores, o filme “Nasce uma estrela” (2018), dirigido por Bradley Cooper.
O filme ganhou notoriedade pela ousadia e certo oportunismo do diretor de pegar uma história que já ganhou três versões no cinema (1937, 1954, 1976) e colocou uma cantora de grande sucesso para atuar. E conseguiu uma dupla proeza. Não só Lady Gaga atuou bem – o que não quer dizer que sempre o fará – como o próprio ator conseguiu sua melhor atuação (bem superior aos filmes que fez como Sniper Americano,  Trapaça, O lado bom da vida). Cooper deu ao seu cantor pop star decadente por conta de sua dependência de álcool e drogas uma voz que propositadamente imita ao do ator que faz seu irmão, o veterano e sempre bom Sam Eliott, uma rouquidão de uma vida cansada do estrelato, das turnês, da solidão e de um passado onde criou um mito que  desmorona ao longo do filme. Cooper já demonstrara em Guardiões da Galáxia o seu talento vocal. O seu bronzeamento artificial para algo californiano vindo de um cantor que veio do meio-oeste americano é uma demonstração do rótulo que a indústria produz.
Esses fardos fazem da sua vida um ritmo sem sentido, que acaba por ter sua epifania quando encontra uma  garçonete em um bar de drags queens cantando Edith Piaf e, com otimismo da  vontade, afirma que “a vida é rosa”. Aqui, o diretor homenageia uma das  mais importantes cantoras do século passado não só pela música como pelo ambiente com que Piaff começou sua carreira: cabarés, baixo meretrício, rodeada de meretrizes e cafetões. Lady Gaga é a Piaff do século XXI com melhor fortuna (em todos os sentidos). Sobre a Lady Gaga, há outra referência interessante no roteiro quanto às determinações estéticas da indústria, quando se refere ao nariz como obstáculo para uma carreira no show bussiness. Propositadamente ou não, a atriz que encarnara a então última versão de Nasce uma estrela, Barbra Streisand, sofreu muito por conta do seu nariz – referência para a criação da porquinha dos Muppets. Curiosamente, o filme rivaliza com outra película, que o vocalista de uma banda inglesa tinha dentes completamente fora dos  padrões  de mercado do entretenimento.
A história de amor dos protagonistas vai lenta como uma balada, mas segue adiante. Cooper não quis privilegiar o sentimento de posse que permeou as versões anteriores ao optar por um distanciamento agravado pelo escracho público, algo que podem destruir carreiras antes de um julgamento e de uma sentença, como o caso do duplamente oscarizado Kevin Spacey que se viu envolvido em um “Spotlight” para atores, que pode ser o primeiro passo para uma onda neoconservadora de costumes que os democratas não percebem que são os criadores dessa “marolinha”.
A partir dos dilemas da política dos EUA onde um ator do porte de Robert DeNiro foi ameaçado de morte de forma efetiva, qual a solução democrata para a reeleição de Trump? Paralisar o serviço federal ou dar estatuetas para mexicanos (como A Forma da Água ano passado ou Roma, esse ano) é muito pouco para uma nova política. Mas o filme de Bradley Cooper é provocativo para o caso dos EUA e para o nosso. Após Obama não se pensou na sucessão, em novas lideranças, na pedagogia cívica, na superação da crise econômica pela política, mas tão somente pela economia. Assim, a estrela que sobrou pode ter sido “a Estrela da Morte”, como adoram os  Siths. Porém, num viés do otimismo da vontade como já apontado por um cientista  político brasileiro, as novas estrelas estão por aí, podem estar num bar de drags, nas escolas públicas ou privadas, num combalido sindicato, numa ONG, num rapper, numa roda de samba. Nasce uma estrela permite a leitura de uma velha política que se vai – e vira uma estrela presa em uma constelação, não mais do que isso – e a nova política que vem  pelo mundo do interesse, do desejo, onde com treinamento, paciência virtuosa, disciplina, encantamento, pode nos dar a chance de novos pontos brilhantes aqui e alhures. Basta querer achar e fazer estudar o mundo das coisas reais. O filme é o misto do otimismo de uma vontade transformadora com o pessimismo da razão dos fatos da vida, mas essa, tal qual um rio, segue seu curso e cabe a velhos e novos marinheiros quererem dirigir as embarcações, mesmo que se esteja à beira de um precipício, como alude a bela (e possivelmente oscarizada) canção do filme.
 


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Balanço Político de 2018 - Entrevista com César Maia

 
César Maia
 

O BLOG VOTO POSITIVO fez contato com o Vereador César Maia (DEM) que está em seu segundo mandato na Câmara Municipal do Rio de Janeiro para um balanço político do ano de 2018. Numa entrevista de rápida leitura, apresentamos uma pauta de três temas que projetam sobre o futuro dos cariocas. Nesse espaço temos intenção de abrir um amplo diálogo com as referências políticas da tradição democrática nas suas diversas vertentes além de trazer intelectuais para ajudar a pensar sobre o momento político atual.

Balanço das eleições de 2018
 
1) A vitória eleitoral do Deputado Jair Bolsonaro, com uma estrutura partidária nanica, lhe surpreendeu? 
R- Não. Faz parte da ciclotimia democrática. 
 
2) Após 30 anos da Constituição de 1988, as eleições de 2018 marcam o declínio definitivo do PT, PSDB, MDB e DEM que seriam partidos identificados com a questão democrática da Nova República?
R- Definitivo ?  De forma alguma.  Lembro que comparando com 2014 o DEM teve um forte crescimento. 
 
3) Diante resultados eleitorais no Estado do Rio de Janeiro, como avaliar que o “populismo brizolista” se transformou gradualmente num eleitorado com tendências autoritárias?
R- Tenho dificuldade em qualificar politicamente o governador eleito. 
 
Perspectivas do Futuro da Democracia
 
4) Poderemos confiar na gradual moderação da ação política do futuro Presidente? 
R- Certamente. A Constituição garante isso 
 
5) A Democracia está em risco? Como pensar em enfrentar a crise da representatividade nos dias atuais?
R- Certamente não está em crise. Lembro que na Câmara de Deputados nenhum partido se aproxima dos 20% há muitos anos. 
 
6) Qual sua opinião sobre o artigo do ex-PresidenteFernando Henrique Cardoso “Paciência histórica” (O Estado de São Paulo, 04/11/2018) no qual ele defende um Centro Radical? O DEM poderia fazer parte desse “campo político”?
R- Achei muito bom o artigo. O DEM de certa forma inaugurou o centro radical. 
 
A Gestão do Prefeito Marcelo Crivella
 
7) O Prefeito Marcelo Crivella tem praticamente dois anos de gestão. No que tem acertado e no que tem errado?
R- Prefiro esperar o início do terceiro ano. Por enquanto me parece um tanto lerdo. 
 
8) Em sua opinião, a gestão das contas públicas da Prefeitura do Rio de Janeiro está sendo bem feita?
R- Perderam um ano todo e agora tentam recuperar em 2018. 
 
9) O Prefeito Marcelo Crivella tem condições de ser reeleito nas próximas eleições municipais sem se aliar com o “clã Bolsonaro”? 
R- Todos tem. Muito cedo para avaliar. 

domingo, 4 de novembro de 2018

CULTURA DEMOCRÁTICA - Sobre o filme Bohemian Rhapsody

 
Uma Ópera pela Democracia

Por Vagner Gomes de Souza

A cultura democrática é uma forma lírica de fazer oposição ao retrocesso no campo das ideias. As manifestações culturais não estão na pauta dos programas governamentais, pois a saída pelo “mercado” impossibilita o reconhecimento da pluralidade. O stablishment dos meios de comunicação de massa programa um “darwinismo cultural” no qual o “mais do mesmo” sempre é a melhor para as forças conservadoras.  Fazer a crítica ao senso comum é a tarefa política dos ativistas no novo cenário cultural mundial. O pensamento racional e laico está sob pressão de ideias fundamentalistas que se contrapõe a abertura de um diálogo.

As versões histéricas da postura autoritária tem seu marco fundante na reação mundial ao pós – 11 de setembro sob o comando dos EUA. Em seguida, uma Guerra foi iniciada contra o Iraque como resultado de um “Fake News” diplomático, ou seja, a denúncia de que Saddam Husseim teria um “Kit de Armas de Destruição em Massa”. A publicidade do medo justificou muitos meios de cultivar o ódio ao redor do mundo ao ponto do terrorismo islâmico contribuir para iniciativas restritivas da democracia na Europa e outros países (seria interessante acompanharmos o debate no Congresso Nacional da nova redação da Lei de Antiterrorismo).
 
  A globalização das finanças mundiais fortalece essa superestrutura conservadora nas manifestações, mas há espaço para que as forças do campo democrático se articulem de forma também globalizada. O reconhecimento do risco deve ser compartilhado por todos os segmentos democráticos do mundo. A cultura precisa ser sempre a força da liberdade e enfrentar as forças do autoritarismo requer unidade. Portanto, o filme “Bohemian Rhapsody” vai além de ser um marco na cinebiografia como sugere uma leitura atenta da letra da música que dá título ao filme.
 
Rami Malek interpreta Freddie Mercury
 
Destacamos esses versos: “Eu sou apenas um pobre garoto e ninguém me ama/Ele é só um pobre garoto de uma família pobre/Poupe sua vida, desta monstruosidade” (“Bohemian Rhapsody”). E verificamos que o filme é uma verdadeira ópera para refletir esses tempos em que o voto de ódio está alimentado pelo desamor e revanchismo social das classes dominantes contra os serviços públicos. Freddie Mercury fez carreira no contexto da unidade na banda Queen em tempos de ensaios do neoliberalismo na cultura anglo-saxônica (Inglaterra e EUA). Um jovem imigrante que tinha uma aparência muito apropriada para sofrer “Bullyng”. Além disso, a sua vida privada foi assediada pela chamada imprensa sensacionalista por causa de sua sexualidade.
 
O filme faz uma narrativa que condenaria o hegemonismo e protagonismo. Assim, as forças democráticas no Brasil e no mundo recebem um convite para que sejamos mais modestos em nossas escolhas. As mobilizações democráticas para o futuro devem se alimentar de um compromisso com os círculos culturais junto com a juventude pela democracia. Além disso, é urgente a globalização da luta pela defesa da democracia com a convocatória de um Fórum Democrático Mundial com eventos culturais que poderiam ter sua primeira edição na cidade do Rio de Janeiro.
 


domingo, 21 de outubro de 2018

TEATRO E FRENTE DEMOCRÁTICA


Confissões de um Diálogo Necessário
Vagner Gomes de Souza

Em tempos de falsas polarizações no cenário político brasileiro, as manifestações culturais são mais lúcidas que muitas articulações políticas. A peça “Confissões de um Senhor de Idade” permite que os segmentos democráticos da esquerda trilhem um caminho de diálogo com os religiosos. O autor/ator principal escreveu o texto antes da emergência eleitoral de uma “onda conservadora” favorável a busca de uma supremacia religiosa da chamada “Teologia da Prosperidade”. Entretanto, os diálogos entre o personagem Flávio e Deus ganham uma nova conexão com os novos tempos.
Chegamos ao momento político em que a peça ganha uma vida própria para além das intenções de seu criador. A peça ganha um livre-arbítrio na leitura do público.  Assim, o personagem Flávio estaria a redigir sua autobiobrafia após 63 anos de carreira como ator e recebe a visita de “Deus”. Nesse encontro inesperado há uma proposta de “Pacto” no qual “Deus” deseja ser hegemônico, porém, aos poucos, o incrédulo personagem vai expondo sua vida e seus motivos de reflexões sobre a espiritualidade.
No desenvolvimento da peça o expectador tem a oportunidade de conhecer um pouco de Flavio Migliaccio num depoimento em que expõe o quanto a cultura poderia enfrentar as dores humanas. A infância depoimento/peça é uma versão brasileira do filme italiano “A Vida é Bela”. O “Deus” faz a partir daí um julgamento sobre o nosso personagem sem fé ao mesmo tempo em que é dialeticamente confrontado com sua existência diante da humanidade.
Há fortes inspirações filosóficas no texto teatral, porém não deixemos de destacar seu impacto na sociologia política contemporânea. As bancadas religiosas ganharam força após a “Era Collor”. O discurso de modernização liberal extremado se conectou na sociedade e a crise do Estado de Bem Estar Social permitiu que denominações religiosas consolidassem a “Teologia da Prosperidade”. A mobilidade social em favor de uma falsa “Nova Classe Média” foi a “alavanca” sociopolítica desse novo olhar sobre a religião. Aos poucos, o conservadorismo político se transformou no ator político dessa metamorfose social.
Diante dos mais politizados, a peça demonstra que a morte da “Teologia da Libertação” é um fenômeno que deixou um vazio no diálogo da esquerda com as classes subalternas. Longe de lançar uma solução para essa fratura, a peça resgata o discurso do Amor presente no cristianismo primitivo. Agora, o texto tem o desafio de ser “testado” nas periferias das grandes cidades onde o neopetencostalismo e setores neoconservadores da Igreja Católica transitam num processo de “novos intelectuais orgânicos” do autoritarismo ultraliberal.
A peça é didática ao estilo das escritas nos tempos do CPC da UNE. Os atores políticos não podem estar ausentes dessa reflexão para que haja a coexistência democrática entre fé, conhecimento científico, liberdade cultural e tolerância. A política do charlatanismo está manipulando a fé das camadas populares. No campo do marxismo, Gramsci foi um estudioso sobre essa relação religião e política e testemunhou a ascensão do fascismo sob o silêncio de muitos religiosos. Essa seria uma interessante leitura para esses novos tempos além de ir ao Teatro.


segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A Literatura na Ruptura do Silêncio - ENTREVISTA


 
A sociedade brasileira vem reconhecendo, a cada momento, o seu passado relacionado a memória dos esquecidos. Um importante segmento foram os negros. O silêncio sobre a escravidão está se rompendo aos poucos. Na literatura contemporânea há vários títulos que permitem esse novo olhar.
 
O BLOG VOTO POSITIVO fez uma entrevista com a escritora Eliana Alves Cruz sobre seu trabalho O Crime do Cais do Valongo (2018). Confiram a seguir.


 
 
 
 
A autora no Programa Trilha de Letras
 
1)  Seu primeiro romance (Água de Barrela) relata a trajetória familiar desde o século XIX. Trata-se de um esforço pela memória das camadas populares silenciadas? Como foi a elaboração desse romance?
 
Ele é fruto de histórias orais, entrevistas, documentos, imagens familiares e, principalmente, da convivência da vida inteira com muitas daquelas pessoas. Elaborar o romance foi um trabalho prático de pouco mais de cinco anos complementando todas as informações com pesquisas em arquivos públicos e estudando a história do país no período abordado no romance com os nossos olhos, ou seja, o das camadas que foram silenciadas por tantos séculos.
 
2)  Esse ano, O Crime do Cais do Valongo, ganhou grande repercussão nos meios de comunicação. Como você avalia esse momento da literatura brasileira?
 
Avalio que a repercussão do romance é uma consequência da busca por mais diversidade na literatura tanto em quem a produz quanto em seu conteúdo, ou seja, autores que reflitam a pluralidade da narração e com histórias que quebrem a narrativa elaborada a partir de uma única perspectiva. Creio que estamos vivendo um momento especial onde finalmente autores negros e negras, indígenas, LGBTQI, periféricos, enfim, a população brasileira se sente livre para também produzir literatura e não apenas o perfil elitista que sempre a dominou.
 
 
O livro
 
3)  O Crime do Cais do Valongo seria sua visita ao gênero policial pelo caminho do romance histórico. Qual o viés crítico do romance?
 
Eu quis me utilizar de diversos gêneros para que este pedaço tão importante da nossa história pudesse ser captado pelo leitor da melhor maneira possível. Um romance policial, histórico e com elementos fantásticos que traz muitos aspectos que estão na nossa formação, mas que são pouco explorados.
 
4)  A concentração de renda na sociedade brasileira poderia ser entendida a partir de nossa raiz escravocrata. O Crime do Cais do Valongo também teria essa inspiração social?
 
Sim. Não há como contar esta história sem fazer uma profunda crítica a nossa elite, que desde sempre busca manter fechado em um círculo diminuto as riquezas nacionais produzidas, na verdade, por pessoas que foram totalmente excluídas.
 
 
J. M. Rugendas (1802 - 1858)
 

5)  Nas suas pesquisas para elaborar o romance, o que de interessante ou curioso você descobriu e que poderia motivar um novo olhar sobre a escravidão no Rio de Janeiro?
 
            Descobri que não existe uma história da escravidão. São “escravidões”. Esta instituição foi muito diferente nas diversas regiões do país e também distinta dentro do Rio de Janeiro. Descobri que o país inteiro tem o DNA de pessoas que aqui entraram e isto faz a história do Valongo ser crucial não apenas para a cidade, mas para o Brasil inteiro e para o planeta. Muitos dos que por lá passaram foram diretamente para a mineração em Minas Gerais, por exemplo. Há inclusive um quadro de Rugendas que retrata comerciantes mineiros barganhando em mercado de escravizados no Valongo. Uma em cada grupo de quatro pessoas que vieram escravizadas para as Américas desembarcou no Brasil e deste contingente, cerca de 60% pisou em primeiro lugar no Rio de Janeiro. Se o tráfico transatlântico foi o maior da humanidade, isto faz da cidade do Rio o maior porto de escravos da história humana. Entender isto muda tudo.
 
6)   O atual momento da literatura brasileira tem contribuído em que sentido para pensar num país mais democrático e justo?
 
 Quando os personagens que nunca tiveram voz ganham uma dimensão humana e protagonismo, finalmente é conferida dignidade, que é a base do respeito. Sem respeito às diversas visões de mundo não existe democracia e justiça possível.