Luiz
Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta. Com ampla participação em jornais e
revistas associados ao velho PCB, como Voz
da Unidade e Presença, na
Fundação Astrojildo Pereira dirige a coleção Brasil & Itália, que trouxe
para o público brasileiro livros inéditos de Giuseppe Vacca, Silvio Pons e
outros. Coeditou, com Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson Coutinho, as Obras de Antonio Gramsci, lançadas pela
Ed. Civilização Brasileira. Há vários anos é colaborador regular de O Estado de S. Paulo. Edita as páginas Gramsci e o Brasil (www.gramsci.org) e Esquerda Democrática (https://www.facebook.com/esqdemocratica).
1) O que observamos de diferente nesse
cenário de pré-campanha para as eleições presidenciais?
A extrema
dispersão das candidaturas, especialmente as do centro político, faz lembrar a
primeira campanha pós-Constituição de 1988. De fato, ali também os candidatos
“extremos”, Collor e Lula, se beneficiaram do afastamento tucano em relação ao
velho tronco peemedebista, da existência de uma candidatura própria do partidão
(Roberto Freire) e daquela de um político da tradição, como Brizola, que,
fossem quais fossem seus defeitos, tinha a ideia da importância das classes
médias.
Vendo o panorama
agora, o quadro é ainda mais confuso. À direita não sabemos a real implantação
de um candidato que defende soluções autoritárias e que, em todo caso, não
convém subestimar. À esquerda, mesmo com óbvios impedimentos legais, o eterno
candidato petista ainda não cedeu aos imperativos da realidade ou finge não
ceder, o que dá praticamente no mesmo. Ciro Gomes tem potencial eleitoral
óbvio, assim como óbvios são os obstáculos representados por algumas de suas
ideias “barrocas” e pelo seu próprio “barroquismo” pessoal.
O centro, hoje,
é quem mais parece se ressentir destes anos de má política, cooptação e
devastação da estrutura dos partidos. Mas seus diferentes representantes já não
podem botar a culpa nos outros, no petismo em particular, não em último lugar
porque jamais se preocuparam em dar vida orgânica aos respectivos grupos
partidários. Os vícios persistem depois de todo o desastre ou, talvez, como
expressão continuada de um desastre que parece não ter fim. Por exemplo, há
gente nesta área que parece ser candidato porque quer ou porque – vexame
máximo! – tem dinheiro suficiente para bancar a própria campanha, embora não
tenha a menor viabilidade eleitoral ou capacidade de aglutinação.
Isso para não
entrar na questão da composição provável do próximo Congresso. Existe a forte
possibilidade de eleição de um presidente com frágil base congressual, dada a
possível predominância de partidos “médios” empenhados desde já em eleger
bancadas para funcionar como cidadelas corporativas dispostas para um jogo de
soma zero. Partidos sem visão nacional nem programa coerente e, por assim
dizer, retalhados transversalmente em bancadas “temáticas” – a da bala, a da
motosserra, a evangélica, etc. E em certos casos, ainda por cima, comandados por
personagens egressos de condenação nos megaescândalos dos últimos anos, o que
só se explica pela mão de ferro que impõem sobre os recursos do fundo
partidário.
Em outras
palavras, um cenário pré-eleitoral de tal complexidade é inédito. Temos algumas
situações do passado para comparar, algumas categorias para mapear o terreno,
mas não muito mais.
2) A tática do Partido dos Trabalhadores
(PT) de levar a candidatura de Lula até o limite contribui para a renovação da
esquerda brasileira?
Desde o primeiro
dos dois grandes escândalos da era petista, o comportamento daquele partido foi
sempre linear e previsível: defendeu-se atacando. Os alvos são móveis, mas não
são muitos: a mídia oligárquica, a justiça de classe, a classe média ressentida
e capturada pelas “elites”. Uma cultura de confrontação, portanto, que de resto
foi a marca de origem do partido e só esteve suspensa em alguns momentos, como
no episódio da “Carta aos brasileiros”, de 2002. Se bem observarmos, a figura
mítica e quase mística de Lula povoa o cenário desde as eleições de 1989. Uma
esquerda prisioneira de um só nome há trinta anos não contribui para a
renovação de si mesma nem do país. Congela a renovação dos quadros, ajuda a
bloquear a imaginação política e social. E, naturalmente, acaba por fomentar o
surgimento de outros mitos igualmente nocivos, transformando a arena política
num cenário de fanatismos que no fundo se alimentam uns aos outros e não vivem
uns sem os outros.
3) Alguns eleitores do PT nas camadas
médias estão migrando para o PSOL ou PCdoB enquanto a Direção Nacional
interdita o debate do “Plano B”. Esse seria o momento de renovação do ciclo de
hegemonia do PT na esquerda brasileira?
Li um dia desses
que a esquerda brasileira ficou mentalmente agarrada aos anos 1960. Só isso,
aliás, explica o fascínio de Cuba ou da Venezuela, pelo menos antes da tragédia
humanitária que se abateu sobre este último país. Evidentemente, aquela
mentalidade “revolucionária” era completamente inadequada, visceralmente
inadequada, como guia de ação no contexto brasileiro. O PT cresceu, elegeu
prefeitos e governadores, ganhou quatro mandatos presidenciais, vale dizer,
teve todo o tempo do mundo para entender como uma relação correta com as
instituições democráticas, fortalecendo-as e aprofundando-as na vida dos
subalternos, não só é algo valioso em si como também atende aos interesses da
própria esquerda.
Mas é preciso
considerar que, falando de “esquerda”, estamos colocando no singular um termo
muito complexo. Sempre haverá esquerdas atrasadas, sectárias, em permanente
ânsia de assaltar os céus. O importante é que fiquem na margem do quadro, sem
dominar a discussão geral. E sempre haverá situações ambíguas: se é verdade,
por um lado, que o PT jamais se comportou como partido revolucionário, por
outro lado nunca abandonou uma linguagem desse tipo, sempre coqueteou com os
Chávez e Maduros da vida, e só esse coqueteio traz confusão, obstaculiza o
diálogo com as demais forças, prejudica o projeto e a ação de um governo
reformista, gerando ruídos completamente fora de propósito.
Considerando o peso
das ideias na ação política, que nunca é pequeno, acredito que sair do PT e
aderir ao PSOL ou ao PCdoB, tais como são, é continuar na máquina do tempo. Já
se passaram trinta anos desde a promulgação da Constituição de 1988, era tempo
de termos aprendido. A democracia permite e até requer aprendizados longos, mas
convenhamos que há algo de repetição, no sentido psicanalítico do termo, neste
“novo” rumo que alguns têm tomado depois de se desiludirem com o PT. Com a
palavra, Freud, de preferência a Marx.
4) A candidatura do Deputado Jair
Bolsonaro (PSL) lidera entre os eleitores jovens do sexo masculino. Ele seria o
herdeiro das manifestações em favor do impeachment de Dilma?
Este nexo entre
os maus ou medíocres governos do PT (e nisso incluo os de Lula, que não têm
nada de extraordinário sequer em termos de inclusão social, se colocados em
perspectiva comparada com países semelhantes no mesmo período de intensa
valorização das commodities) e a
ascensão da extrema-direita tem sido ressaltado e é sem dúvida pertinente. Mas
seria um equívoco julgar que as jornadas de junho de 2013 e as manifestações
pelo impeachment tivessem algum
desfecho predeterminado ou inevitável. Elas não foram unívocas nem
monopolizadas pela direita política, muito menos pela extrema-direita. Se
tivessem sido, estaríamos numa situação ainda mais complicada: teríamos uma agressiva
direita “revolucionária”, adepta de uma intervenção militar “constitucional” e
com base de massas, o que (ainda) não é o caso.
Bolsonaro
explora demagogicamente uma série de problemas reais para os quais o centro
político ainda não conseguiu formular respostas abrangentes, como a questão da
violência nas nossas cidades, que evidentemente fugiu de controle. Mas suas
propostas, como a de relaxar o controle de armas e disseminar seu uso, não só são
primárias como também trazem embutido o risco de um perigoso regresso
civilizacional. Chegaremos a ter professores armados em salas de aula? As
mulheres dispararão contra seus companheiros violentos? Será este o método
preferido de resolução de todos os inúmeros conflitos interpessoais?
Faço um desvio
aparente. Um lema inteligente de 2013 dizia que país desenvolvido não é aquele
em que “os pobres têm o seu carrinho”, mas sim aquele em que a grande maioria,
inclusive a classe média alta, usa transporte sobre trilhos. Analogamente, país
seguro não é aquele que deixa os cidadãos se armarem até os dentes, o que
provavelmente teria como consequência aumentar o número já absurdo de
assassinatos com armas de fogo, quem sabe generalizando entre nós o tipo de
crime “americano” por excelência que é a matança indiscriminada de inocentes. País
seguro sabe prender bem, punindo, em primeiro lugar, os crimes contra a vida.
Combate sem tréguas o domínio territorial do tráfico. Assegura para o aparelho
do Estado democrático o monopólio da violência (entre outras coisas, a posse das
armas de guerra), etc.
Uma constatação
óbvia é que os governos petistas nada fizeram sobre segurança pública; e,
gostemos ou não, um primeiro passo está sendo dado agora, no malfadado governo
Temer, com a criação do sistema único de segurança. Temos de seguir neste
caminho, examinando cuidadosamente, por exemplo, a experiência internacional
sobre o uso de drogas, que responde por boa parte da violência urbana. Por
falar nisso, há quase uma idealização de Portugal neste momento, especialmente
por ser um país seguro, com índices baixíssimos de criminalidade. Bem fariam os
milhares de brasileiros se, uma vez lá estabelecidos ou mesmo depois de uma simples
visita, se perguntassem sobre como a moderna democracia portuguesa trata traficantes
e usuários, como lida, afinal, com este imenso problema das drogas. E assim nos
ajudassem a mostrar que não há Bolsonaros por lá. O caminho é inteiramente
outro, se quisermos ter níveis decentes e civilizados de vida associada.
5) Em 2002 nós vimos o “Lula Paz e
Amor”. Seria possível a invenção do “Ciro Paz e Amor”, ou seja, qual o nível de
abertura da campanha do PDT para o centro político?
A candidatura
Ciro Gomes é muito competitiva, um dado de realidade que ninguém vai negar. Indultando
ou não a Lula (só a Lula?), um Ciro presidente indicaria o ocaso irreversível
do petista. Ciro passeia pelos partidos com desenvoltura mais do que
preocupante, dando a sua deliberada contribuição pessoal para a miséria do
sistema partidário; no entanto, o fato de ter sido governador e ministro, além
de estar ocasionalmente alojado no PDT (com sua cultura trabalhista residual e
retórica), alerta-o instintivamente para o papel das classes médias, que só uma
esquerda muito precária demoniza ou ridiculariza. Mas Ciro, como também já
demonstrado abundantemente, pode pôr tudo a perder com uma declaração
desastrada e até um gesto grosseiro, ou uma combinação em série de falas e
gestos destemperados. Ademais, ele tem este lado “decisionista” declarado, que
certamente o levaria a tentar superar eventuais impasses com o Congresso
apelando à manifestação direta do “povo”. O risco, aqui, é a emergência de uma
perigosa democracia plebiscitária, em que o controle da política “pelo alto” se
mascararia com a participação manipulada da população. Nada muito empolgante,
portanto. Além do mais, também não se sabe o que seria a politica econômica de
Ciro. Um nacional-desenvolvimentismo próximo dos governos Lula II e Dilma? Neste
caso, dada a quebra generalizada do Estado brasileiro, poderíamos ver
reencenado o “estelionato eleitoral” que vimos em 2014/2015. Ciro, por tudo
isso, é muito mais parte do problema do que de uma solução razoável.
6) Geraldo Alckmin (PSDB), Álvaro Dias
(PODEMOS) e Rodrigo Maia (DEM) ensaiam atrair partidos fisiológicos do chamado
“Centrão”. Quem leva vantagem até a campanha eleitoral? Marina Silva (REDE) não
poderia ser o Macron das eleições presidenciais de 2018?
Não há Macrons à
vista no horizonte. Aproveitando o tema Macron, é preciso dizer que esta
questão do “centro” deve ser mais bem explicada. Não se trata de apontar uma
posição intermediária e supostamente mais sensata e razoável. Não é questão de
fazer graça com coisa séria, mas o padrão stalinista de ação política
consistia, exatamente, em apontar uma direita “traidora” dos princípios e uma esquerda
aferrada radicalmente a estes mesmos princípios, de modo que o grande líder
sempre aparecia como detentor da chave mágica de leitura do mundo real: dele emanava
a “linha justa”.
O centro não
pode ser isso. Tem de falar para além das cercas do mundo político e buscar
sólidos apoios na vida social, nos empresários, nos trabalhadores, no mundo da
cultura. Não pode ignorar esta dramática “questão dos intelectuais”, não de
hoje radicalizados à esquerda e, agora, para espanto geral, à direita. Os
líderes do centro devem se mostrar inteiramente solidários com a massa de
brasileiros desempregados, subempregados ou em desalento. Não é questão só de
buscar obsessivamente os caminhos do crescimento, mas também de demonstrar profunda
simpatia humana e sentimento de solidariedade, de passar a sensação de
“proximidade” com o sofrimento da gente comum. Nada disso é pieguice, comiseração
ou paternalismo anacrônico. É algo qualitativamente diverso, é uma expressão do
princípio republicano da fraternidade, que deve se juntar à liberdade e à
igualdade formalmente garantidas na Constituição.
É preciso ter
audácia para resolver problemas reais, concretos. Recordo um episódio bastante triste
destes últimos anos, que muitos ainda terão na memória. Vimos o presidente
Temer e os ex-presidentes Lula e Dilma “brigando” pela paternidade das obras de
transposição do São Francisco, inclusive da parte que foi concluída no governo
Temer. Sucederam-se discursos e antidiscursos, inaugurações e anti-inaugurações
oficiais. No entanto, audácia política, ali, seria apontar para o grande problema
das águas do São Francisco e dos nossos cursos d’água de um modo geral. Isso
abriria espaço para a discussão de políticas públicas efetivamente radicais,
como o saneamento, a despoluição, a proteção do território. E, diga-se de
passagem, abriria espaço também para a mobilização de saberes, muito
particularmente das universidades e suas áreas humanas, hoje muitas vezes
perdidas em bizantinismos ideológicos, incapazes de incidir produtivamente no
mundo real.
O centro,
portanto, não deve ser o lugar de infinitas e inconclusivas mediações no
interior da “classe política”, mediações que fazem a alegria de quem, como nós,
gosta da atividade política mesmo em restrito sentido palaciano. Deve ser bem mais
do que isso. Sem negar minimamente o papel da mediação política e, antes,
exaltando-a, o centro é o lugar móvel, dinâmico, de onde se podem descortinar
os problemas essenciais do país e, ao mesmo tempo, apontar os rumos para sua
solução, as forças que é possível convocar, os consensos que se deve promover
em cada caso para obter um equilíbrio de forças mais avançado. O esquerdismo
pseudoradical mostra-nos o paraíso e suas quarenta mil virgens, esquecendo-se “apenas”
de indicar o roteiro viável para chegar até a beatitude. Ao contrário, todos os
nomes indicados acima, nesta última pergunta, estão desafiados a reconstruir
esta ideia de centro progressista e reformador, mostrando ao mesmo tempo o gato
e o guizo.
Diria, para
terminar, que a renovação da esquerda passa exatamente por este ponto. Sob pena
de continuar a ser meramente uma força de protesto, “um bolsão sincero, mas
radical”, uma esquerda de novo tipo, sem deixar de ser ela mesma e de cumprir
os compromissos sociais que definem sua identidade, deve ser um fator de
ativação do centro político. Neste caso, ela, esquerda, não se perderia em
anátemas tolos contra uma “classe média” egoísta e sempre igual a si mesma em
toda a história do país, entravando miseravelmente o suposto bonde da história
e outros bondes. Diria ainda que esta é uma grande questão de hegemonia no
sentido alto e nobre da expressão, longe de qualquer fanatismo e de qualquer
reducionismo. Há muitos momentos em que parecemos não estar coletivamente à
altura do desafio, mas isso não significa que tenha de ser assim
indefinidamente.