quarta-feira, 23 de maio de 2018

ENTREVISTAS: BRASIL 2018 - LUIZ SÉRGIO HENRIQUES


Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta. Com ampla participação em jornais e revistas associados ao velho PCB, como Voz da Unidade e Presença, na Fundação Astrojildo Pereira dirige a coleção Brasil & Itália, que trouxe para o público brasileiro livros inéditos de Giuseppe Vacca, Silvio Pons e outros. Coeditou, com Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson Coutinho, as Obras de Antonio Gramsci, lançadas pela Ed. Civilização Brasileira. Há vários anos é colaborador regular de O Estado de S. Paulo. Edita as páginas Gramsci e o Brasil (www.gramsci.org) e Esquerda Democrática (https://www.facebook.com/esqdemocratica).


1) O que observamos de diferente nesse cenário de pré-campanha para as eleições presidenciais?

A extrema dispersão das candidaturas, especialmente as do centro político, faz lembrar a primeira campanha pós-Constituição de 1988. De fato, ali também os candidatos “extremos”, Collor e Lula, se beneficiaram do afastamento tucano em relação ao velho tronco peemedebista, da existência de uma candidatura própria do partidão (Roberto Freire) e daquela de um político da tradição, como Brizola, que, fossem quais fossem seus defeitos, tinha a ideia da importância das classes médias.

Vendo o panorama agora, o quadro é ainda mais confuso. À direita não sabemos a real implantação de um candidato que defende soluções autoritárias e que, em todo caso, não convém subestimar. À esquerda, mesmo com óbvios impedimentos legais, o eterno candidato petista ainda não cedeu aos imperativos da realidade ou finge não ceder, o que dá praticamente no mesmo. Ciro Gomes tem potencial eleitoral óbvio, assim como óbvios são os obstáculos representados por algumas de suas ideias “barrocas” e pelo seu próprio “barroquismo” pessoal.

O centro, hoje, é quem mais parece se ressentir destes anos de má política, cooptação e devastação da estrutura dos partidos. Mas seus diferentes representantes já não podem botar a culpa nos outros, no petismo em particular, não em último lugar porque jamais se preocuparam em dar vida orgânica aos respectivos grupos partidários. Os vícios persistem depois de todo o desastre ou, talvez, como expressão continuada de um desastre que parece não ter fim. Por exemplo, há gente nesta área que parece ser candidato porque quer ou porque – vexame máximo! – tem dinheiro suficiente para bancar a própria campanha, embora não tenha a menor viabilidade eleitoral ou capacidade de aglutinação.

Isso para não entrar na questão da composição provável do próximo Congresso. Existe a forte possibilidade de eleição de um presidente com frágil base congressual, dada a possível predominância de partidos “médios” empenhados desde já em eleger bancadas para funcionar como cidadelas corporativas dispostas para um jogo de soma zero. Partidos sem visão nacional nem programa coerente e, por assim dizer, retalhados transversalmente em bancadas “temáticas” – a da bala, a da motosserra, a evangélica, etc. E em certos casos, ainda por cima, comandados por personagens egressos de condenação nos megaescândalos dos últimos anos, o que só se explica pela mão de ferro que impõem sobre os recursos do fundo partidário.

Em outras palavras, um cenário pré-eleitoral de tal complexidade é inédito. Temos algumas situações do passado para comparar, algumas categorias para mapear o terreno, mas não muito mais. 


2) A tática do Partido dos Trabalhadores (PT) de levar a candidatura de Lula até o limite contribui para a renovação da esquerda brasileira?

Desde o primeiro dos dois grandes escândalos da era petista, o comportamento daquele partido foi sempre linear e previsível: defendeu-se atacando. Os alvos são móveis, mas não são muitos: a mídia oligárquica, a justiça de classe, a classe média ressentida e capturada pelas “elites”. Uma cultura de confrontação, portanto, que de resto foi a marca de origem do partido e só esteve suspensa em alguns momentos, como no episódio da “Carta aos brasileiros”, de 2002. Se bem observarmos, a figura mítica e quase mística de Lula povoa o cenário desde as eleições de 1989. Uma esquerda prisioneira de um só nome há trinta anos não contribui para a renovação de si mesma nem do país. Congela a renovação dos quadros, ajuda a bloquear a imaginação política e social. E, naturalmente, acaba por fomentar o surgimento de outros mitos igualmente nocivos, transformando a arena política num cenário de fanatismos que no fundo se alimentam uns aos outros e não vivem uns sem os outros.  

3) Alguns eleitores do PT nas camadas médias estão migrando para o PSOL ou PCdoB enquanto a Direção Nacional interdita o debate do “Plano B”. Esse seria o momento de renovação do ciclo de hegemonia do PT na esquerda brasileira?

Li um dia desses que a esquerda brasileira ficou mentalmente agarrada aos anos 1960. Só isso, aliás, explica o fascínio de Cuba ou da Venezuela, pelo menos antes da tragédia humanitária que se abateu sobre este último país. Evidentemente, aquela mentalidade “revolucionária” era completamente inadequada, visceralmente inadequada, como guia de ação no contexto brasileiro. O PT cresceu, elegeu prefeitos e governadores, ganhou quatro mandatos presidenciais, vale dizer, teve todo o tempo do mundo para entender como uma relação correta com as instituições democráticas, fortalecendo-as e aprofundando-as na vida dos subalternos, não só é algo valioso em si como também atende aos interesses da própria esquerda.

Mas é preciso considerar que, falando de “esquerda”, estamos colocando no singular um termo muito complexo. Sempre haverá esquerdas atrasadas, sectárias, em permanente ânsia de assaltar os céus. O importante é que fiquem na margem do quadro, sem dominar a discussão geral. E sempre haverá situações ambíguas: se é verdade, por um lado, que o PT jamais se comportou como partido revolucionário, por outro lado nunca abandonou uma linguagem desse tipo, sempre coqueteou com os Chávez e Maduros da vida, e só esse coqueteio traz confusão, obstaculiza o diálogo com as demais forças, prejudica o projeto e a ação de um governo reformista, gerando ruídos completamente fora de propósito.
Considerando o peso das ideias na ação política, que nunca é pequeno, acredito que sair do PT e aderir ao PSOL ou ao PCdoB, tais como são, é continuar na máquina do tempo. Já se passaram trinta anos desde a promulgação da Constituição de 1988, era tempo de termos aprendido. A democracia permite e até requer aprendizados longos, mas convenhamos que há algo de repetição, no sentido psicanalítico do termo, neste “novo” rumo que alguns têm tomado depois de se desiludirem com o PT. Com a palavra, Freud, de preferência a Marx.



4) A candidatura do Deputado Jair Bolsonaro (PSL) lidera entre os eleitores jovens do sexo masculino. Ele seria o herdeiro das manifestações em favor do impeachment de Dilma?
Este nexo entre os maus ou medíocres governos do PT (e nisso incluo os de Lula, que não têm nada de extraordinário sequer em termos de inclusão social, se colocados em perspectiva comparada com países semelhantes no mesmo período de intensa valorização das commodities) e a ascensão da extrema-direita tem sido ressaltado e é sem dúvida pertinente. Mas seria um equívoco julgar que as jornadas de junho de 2013 e as manifestações pelo impeachment tivessem algum desfecho predeterminado ou inevitável. Elas não foram unívocas nem monopolizadas pela direita política, muito menos pela extrema-direita. Se tivessem sido, estaríamos numa situação ainda mais complicada: teríamos uma agressiva direita “revolucionária”, adepta de uma intervenção militar “constitucional” e com base de massas, o que (ainda) não é o caso.
Bolsonaro explora demagogicamente uma série de problemas reais para os quais o centro político ainda não conseguiu formular respostas abrangentes, como a questão da violência nas nossas cidades, que evidentemente fugiu de controle. Mas suas propostas, como a de relaxar o controle de armas e disseminar seu uso, não só são primárias como também trazem embutido o risco de um perigoso regresso civilizacional. Chegaremos a ter professores armados em salas de aula? As mulheres dispararão contra seus companheiros violentos? Será este o método preferido de resolução de todos os inúmeros conflitos interpessoais?
Faço um desvio aparente. Um lema inteligente de 2013 dizia que país desenvolvido não é aquele em que “os pobres têm o seu carrinho”, mas sim aquele em que a grande maioria, inclusive a classe média alta, usa transporte sobre trilhos. Analogamente, país seguro não é aquele que deixa os cidadãos se armarem até os dentes, o que provavelmente teria como consequência aumentar o número já absurdo de assassinatos com armas de fogo, quem sabe generalizando entre nós o tipo de crime “americano” por excelência que é a matança indiscriminada de inocentes. País seguro sabe prender bem, punindo, em primeiro lugar, os crimes contra a vida. Combate sem tréguas o domínio territorial do tráfico. Assegura para o aparelho do Estado democrático o monopólio da violência (entre outras coisas, a posse das armas de guerra), etc.
Uma constatação óbvia é que os governos petistas nada fizeram sobre segurança pública; e, gostemos ou não, um primeiro passo está sendo dado agora, no malfadado governo Temer, com a criação do sistema único de segurança. Temos de seguir neste caminho, examinando cuidadosamente, por exemplo, a experiência internacional sobre o uso de drogas, que responde por boa parte da violência urbana. Por falar nisso, há quase uma idealização de Portugal neste momento, especialmente por ser um país seguro, com índices baixíssimos de criminalidade. Bem fariam os milhares de brasileiros se, uma vez lá estabelecidos ou mesmo depois de uma simples visita, se perguntassem sobre como a moderna democracia portuguesa trata traficantes e usuários, como lida, afinal, com este imenso problema das drogas. E assim nos ajudassem a mostrar que não há Bolsonaros por lá. O caminho é inteiramente outro, se quisermos ter níveis decentes e civilizados de vida associada.    


5) Em 2002 nós vimos o “Lula Paz e Amor”. Seria possível a invenção do “Ciro Paz e Amor”, ou seja, qual o nível de abertura da campanha do PDT para o centro político?

A candidatura Ciro Gomes é muito competitiva, um dado de realidade que ninguém vai negar. Indultando ou não a Lula (só a Lula?), um Ciro presidente indicaria o ocaso irreversível do petista. Ciro passeia pelos partidos com desenvoltura mais do que preocupante, dando a sua deliberada contribuição pessoal para a miséria do sistema partidário; no entanto, o fato de ter sido governador e ministro, além de estar ocasionalmente alojado no PDT (com sua cultura trabalhista residual e retórica), alerta-o instintivamente para o papel das classes médias, que só uma esquerda muito precária demoniza ou ridiculariza. Mas Ciro, como também já demonstrado abundantemente, pode pôr tudo a perder com uma declaração desastrada e até um gesto grosseiro, ou uma combinação em série de falas e gestos destemperados. Ademais, ele tem este lado “decisionista” declarado, que certamente o levaria a tentar superar eventuais impasses com o Congresso apelando à manifestação direta do “povo”. O risco, aqui, é a emergência de uma perigosa democracia plebiscitária, em que o controle da política “pelo alto” se mascararia com a participação manipulada da população. Nada muito empolgante, portanto. Além do mais, também não se sabe o que seria a politica econômica de Ciro. Um nacional-desenvolvimentismo próximo dos governos Lula II e Dilma? Neste caso, dada a quebra generalizada do Estado brasileiro, poderíamos ver reencenado o “estelionato eleitoral” que vimos em 2014/2015. Ciro, por tudo isso, é muito mais parte do problema do que de uma solução razoável.


6) Geraldo Alckmin (PSDB), Álvaro Dias (PODEMOS) e Rodrigo Maia (DEM) ensaiam atrair partidos fisiológicos do chamado “Centrão”. Quem leva vantagem até a campanha eleitoral? Marina Silva (REDE) não poderia ser o Macron das eleições presidenciais de 2018?

Não há Macrons à vista no horizonte. Aproveitando o tema Macron, é preciso dizer que esta questão do “centro” deve ser mais bem explicada. Não se trata de apontar uma posição intermediária e supostamente mais sensata e razoável. Não é questão de fazer graça com coisa séria, mas o padrão stalinista de ação política consistia, exatamente, em apontar uma direita “traidora” dos princípios e uma esquerda aferrada radicalmente a estes mesmos princípios, de modo que o grande líder sempre aparecia como detentor da chave mágica de leitura do mundo real: dele emanava a “linha justa”.

O centro não pode ser isso. Tem de falar para além das cercas do mundo político e buscar sólidos apoios na vida social, nos empresários, nos trabalhadores, no mundo da cultura. Não pode ignorar esta dramática “questão dos intelectuais”, não de hoje radicalizados à esquerda e, agora, para espanto geral, à direita. Os líderes do centro devem se mostrar inteiramente solidários com a massa de brasileiros desempregados, subempregados ou em desalento. Não é questão só de buscar obsessivamente os caminhos do crescimento, mas também de demonstrar profunda simpatia humana e sentimento de solidariedade, de passar a sensação de “proximidade” com o sofrimento da gente comum. Nada disso é pieguice, comiseração ou paternalismo anacrônico. É algo qualitativamente diverso, é uma expressão do princípio republicano da fraternidade, que deve se juntar à liberdade e à igualdade formalmente garantidas na Constituição.  

É preciso ter audácia para resolver problemas reais, concretos. Recordo um episódio bastante triste destes últimos anos, que muitos ainda terão na memória. Vimos o presidente Temer e os ex-presidentes Lula e Dilma “brigando” pela paternidade das obras de transposição do São Francisco, inclusive da parte que foi concluída no governo Temer. Sucederam-se discursos e antidiscursos, inaugurações e anti-inaugurações oficiais. No entanto, audácia política, ali, seria apontar para o grande problema das águas do São Francisco e dos nossos cursos d’água de um modo geral. Isso abriria espaço para a discussão de políticas públicas efetivamente radicais, como o saneamento, a despoluição, a proteção do território. E, diga-se de passagem, abriria espaço também para a mobilização de saberes, muito particularmente das universidades e suas áreas humanas, hoje muitas vezes perdidas em bizantinismos ideológicos, incapazes de incidir produtivamente no mundo real.

O centro, portanto, não deve ser o lugar de infinitas e inconclusivas mediações no interior da “classe política”, mediações que fazem a alegria de quem, como nós, gosta da atividade política mesmo em restrito sentido palaciano. Deve ser bem mais do que isso. Sem negar minimamente o papel da mediação política e, antes, exaltando-a, o centro é o lugar móvel, dinâmico, de onde se podem descortinar os problemas essenciais do país e, ao mesmo tempo, apontar os rumos para sua solução, as forças que é possível convocar, os consensos que se deve promover em cada caso para obter um equilíbrio de forças mais avançado. O esquerdismo pseudoradical mostra-nos o paraíso e suas quarenta mil virgens, esquecendo-se “apenas” de indicar o roteiro viável para chegar até a beatitude. Ao contrário, todos os nomes indicados acima, nesta última pergunta, estão desafiados a reconstruir esta ideia de centro progressista e reformador, mostrando ao mesmo tempo o gato e o guizo.

Diria, para terminar, que a renovação da esquerda passa exatamente por este ponto. Sob pena de continuar a ser meramente uma força de protesto, “um bolsão sincero, mas radical”, uma esquerda de novo tipo, sem deixar de ser ela mesma e de cumprir os compromissos sociais que definem sua identidade, deve ser um fator de ativação do centro político. Neste caso, ela, esquerda, não se perderia em anátemas tolos contra uma “classe média” egoísta e sempre igual a si mesma em toda a história do país, entravando miseravelmente o suposto bonde da história e outros bondes. Diria ainda que esta é uma grande questão de hegemonia no sentido alto e nobre da expressão, longe de qualquer fanatismo e de qualquer reducionismo. Há muitos momentos em que parecemos não estar coletivamente à altura do desafio, mas isso não significa que tenha de ser assim indefinidamente.

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