segunda-feira, 16 de outubro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - LIÇÕES DA POLÍTICA DE FRENTE DEMOCRÁTICA AOS HERMANOS

A Argentina no Divã

Dedicado ao trabalho de Edward Said e Amós Oz

Por Pablo Spinelli


Sugerimos que assistam ao vídeo antes da leitura.

Torna-se raro nos dias atuais encontrarmos uma produção escrita de forma leve para temas complexos e do mundo das coisas reais. É assim que lemos o livro ¿QUE PASA, ARGENTINA?: História, política, manias e paixões dos nossos hermanos, Editora Globo, 2023, da jornalista Janaína Figueiredo.

Como destaca a autora, os brasileiros acham que conhecem a Argentina tal como supõem que sabem falar espanhol. Ledo engano. O prefaciador, o embaixador Marcos Azambuja, tece loas à grandeza do país, seus recursos naturais, o nível educacional e cultural do povo, um país com cinco Nobel, dois Oscar, logo, a pergunta: por que a Argentina não deu certo? A capa com figuras míticas do país em plena desordem é uma pista.

O livro vai tratar dos problemas, das manias, dos acertos, dos descaminhos argentinos pelo olhar de uma pessoa que desde a infância convive no país, tem laços familiares e de profunda paixão com a Argentina, mas que não evita um olhar distanciado e crítico numa obra de uma filha apaixonada pelo pai e seu trabalho, o grande jornalista Newton Carlos. O objeto do livro é consequência da importância desse país que nos faz fronteira, carregado de tradições em comum – com adaptações locais – especialmente, no sul brasileiro, nosso terceiro parceiro comercial. Como o livro explicita, o que acontece em um país, reverbera no outro.

Ao olhar para a Argentina, o Brasil também se vê. Somos filhos do Iberismo que nos fundou a partir do herdeiro da Coroa Portuguesa. No caso argentino, há um Estado marcado por conflitos sangrentos entre unitaristas e federalistas, incessantes guerras civis num processo que se pacificou a partir da intervenção brasileira na região. O americanismo argentino foi duro, a discussão federalista muito difícil e custou muito sangue dos povos nativos, em especial da região da Patagônia, cristalizando um racismo bivalente que atribui à mestiça cantora Mercedes Sosa o título de “la negra”.  

A autora buscou em entrevistas com acadêmicos e representantes de governos diversos explicações para o país. Um país que é rico em grãos, carnes, gás e lítio e que convive com hiperinflação de décadas, calotes, desconfiança com o sistema bancário (similar ao que tivemos no Plano Collor), falta de créditos internos e muita, muita dependência de dólares combinada a uma política protecionista que subsidiou um parque industrial que está anacrônico e produtores rurais que preferem os dólares do mercado externo com o desabastecimento do mercado interno.

General João Batista Figueiredo (Brasil) e General Jorge Raphael Videla (Argentina): tempos da Ditadura

A autora nos permite um paralelo entre as transições democráticas em cada país. Generais foram julgados em 1985 no governo da transição de Raul Alfonsín, sendo que o mesmo presidente, pressionado, fez uma ampla lei que impossibilitou julgamentos posteriores; além disso, o nosso processo de transição não teve uma Guerra das Malvinas (evocada no filme “Um conto chinês”) que solapou a imagem dos militares com um banho de sangue argentino. Eis a pergunta: a falta de guerras civis sangrentas, uma quase anomia, uma guerra internacional com uma potência europeia (que levou a Argentina para uma derrota política, econômica e moral), faz da nossa história – a da ação, reação e transação; da revolução passiva – uma história menor e envergonhada? É bom lembrar que enquanto o General Videla estava no banco dos réus, no nosso cangote estava o General Leônidas Pires Gonçalves[1].

O livro não se furtou de falar de grandes problemas argentinos contemporâneos – o desgaste do peronismo (é uma bela introdução para entendermos que o peronismo tem muito mais a ver com uma igreja multifacetária do que com uma ideologia); o cansaço da sociedade com os partidos políticos; a perda de jovens para fora do país ou para as redes de criminalidade que crescem no país; a desvalorização da educação que trouxe a perda da memória do terrível legado que a ditadura militar (1976-1983) trouxe para os argentinos. Tal conjuntura leva a jovens e “descamisados”, termo eternizado pelo mito Evita Perón (que jamais disse “não chores por mim, Argentina”) a acreditar em uma figura que mistura vulgaridade, ressentimento e messianismo que é Javier Milei.

Milei é a encarnação da antipolítica, inspiração para o pastor presidente da série “Vosso Reino”, segundo a roteirista; o ataque tresloucado à “casta política”, a mesma que quer participar. Pelo livro de Janaína, vemos um país que tem seus aeroportos ocupados por desabrigados (pág. 35), cena impensável há três décadas. Milei é um fenômeno catapultado pelas redes sociais e que encontra força nos grupos da periferia da Grande Buenos Aires que passa a ser “contra tudo o que está aí”, e da elite econômica que, paradoxalmente, quer a dolarização de um país que já é dolarizado. A autora resgata que não é algo inédito na história do país quando destaca o que foi o Governo Menem, o peronismo mais à direita e de perfil neoliberal que vigorou naquele país. O livro traz à memória o menemismo e seus efeitos danosos para a Argentina.

O retrato de um país que vive no divã por conta da obsessão por terapia acaba por dizer que seu povo entende como de sua responsabilidade a cena contemporânea. As escolhas subjetivas são importantes, mas não respondem pelo cenário econômico e social argentino, pois lá como cá, não enfrentou a questão agrária e o Estado optou por assistencialismo ao trabalho, flertou com o fascismo antes, durante e após a guerra – com a criação do Dia da Lealdade Peronista - um típico labirinto de Jorge Luís Borges.

Ao mesmo tempo, após lermos sobre Maradona, Evita, Perón, Cristina, Néstor, Darín, Cavallo, Messi (que se recusou a abraçar Macri), cabe ao Brasil responder a uma pergunta: “como vamos ajudar a Argentina a passar pelo olho do furacão?”. O livro não explicita, mas há um norte. Esse sendero está na construção de uma Frente Democrática (como fizemos no calor da hora) com um programa de governo (que não tivemos) que inclua a juventude (que abdicamos, mas há uma Secretaria Nacional da Juventude a nos sorrir por aqui) e com uma pitada inglesa cuja presença está nos nomes dos times de futebol: “nada lhes prometo, a não ser sangue, suor e lágrimas”. Para o país do tango, nada como dançar sobre esse drama e dar um drible desconcertante na extrema-direita, nem que se ganhe por una cabeza, como nos lembra a canção feita por um argentino com um brasileiro.



[1] O general Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015) foi nomeado Ministro do Exército pelo presidente eleito Tancredo Neves. Com a morte de Tancredo, foi quem garantiu a posse de seu vice, José Sarney, contrapondo-se ao que desejavam certos setores do exército, que pretendiam dar posse ao Presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães. Sua fala famosa foi: "Quem assume é o Sarney". O senador do PMDB, Pedro Simon perguntara a Ulysses porque aceitara tão rapidamente a tese de Leônidas. O Sarney chega aqui ao lado do seu jurista. Esse jurista é o ministro do Exército. Se eu não aceito a tese do jurista, a crise estava armada’

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

VAMOS AJUDAR NÚMERO 001 - SOMOS PELO CESSAR FOGO AQUI E ACOLÁ - EM DEFESA DA PAZ


 SAARA (Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega) - RJ
 SAARA é um centro comercial a céu aberto que se formou na convivência entre árabes e judeus.

Os conflitos aqui e acolá

Marcio Junior[1]

 

Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron

Rimos com as doces meninas sem sair do tom

O que fazer chegando aqui?

As camélias do Quilombo do Leblon brandir

 

Caetano Veloso e Gilberto Gil

As Camélias do Quilombo do Leblon

 

As responsabilidades do Brasil frente ao prosseguimento do conflito Hamas-Israel e vice-versa, espaço de história complexa e cuja boa compreensão passa pelo retorno também há tempos longínquos, possuem grande importância haja vista a nossa tarefa ao presidir o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Essa mediação, mesmo com a sua temporariedade, não deixa de ser oportuna para o avanço da civilização em direção à paz, principalmente se nossa resposta for, como está sendo até o momento da escrita destas linhas, alinhada aos valores da nossa República e da nossa Democracia, corroboradas por, como bem diria o nosso Gênio da Raça Gilberto Freyre, um novo tipo social ainda em formação, cuja plasticidade resultante de sua miscigenação fornece a este povo um possível caminho do meio, dotado de maior equilíbrio e moderação, que apareceu com maior visibilidade também em experiências recentes e fundamentais, como na confecção da Constituição cuja promulgação completou 35 anos no dia 5 deste mês de outubro. Experiência singular nesta Rússia Americana, de Guerra e Paz.

A aproximação antropológica que permeou a nossa formação em seu início, marcada inclusive pelo sexo, constituiu o ponto primordial da nossa abertura à modernidade. Não se tratou de cancelar os nossos antagonismos, mas de equilibrá-los; criamos aqui condições de amortecer, em muito e/ou em pouco, o choque entre eles. Assim, não é estranho para o mundo, como não é para nós, a formação de uma sociedade pautada por elementos antagônicos, cujo equilíbrio que aqui compõe nosso processo formador foi investigado pelo nosso pensamento social. Outras sociedades não tiveram a mesma sorte, e em outros espaços não há, dentre os aglomerados humanos que ali vivem e a sociabilidade que estanque o permanente conflito. Talvez haja, pelo contrário, incentivos internos e externos para seguir em sentido contrário e quiçá piorá-lo.

Porém, como um dia salientou Caio Prado Junior, esse sentido da nossa experiência nessas terras somente iria desabrochar com o tempo, e o conflito permanece, mesmo o Brasil sendo um lugar onde sabemos evitar certos conflitos que outros países de experiências análogas não conseguiram evitar. Dentre as várias pistas, próprias de um país ainda em início de formação (só temos 200 anos), a violência não nos é estranha; seja em ambientes urbanos, como é visto a olhos nus principalmente no Rio de Janeiro e na Bahia, seja em ambiente agrário. Os nossos antagonismos permanecem assumindo formas outras, sempre complexas, no crime, na religião, nas classes. Ainda estão em curso, lentamente como recordou Caetano ao musicar Nabuco, as correções das marcas que a escravidão deixou entre nós.

Com a chamada à guerra por todos os cantos, inclusive aqui pelo crime organizado e grupos extremados na política, o pessimismo da razão nos mostra um futuro dificílimo, que vai se podando as saídas civilizatórias. Por mais que tenhamos lufadas de ar fresco, problemas específicos como o abandono da educação por nós mesmos (e por muitos que deveriam zelar por ela) apontam que estamos descendo o rio em direção ao Coração das Trevas, como mostrou Joseph Conrad.

Nesses tempos sombrios e fraturados, onde a dimensão conflitiva atinge a tudo e a todos esgarçando o tecido social e separando as pessoas, é imensa a nossa responsabilidade, quanto a nós e quanto ao resto do planeta, para trilharmos um caminho de flores e votos para um cessar das balas. Aí está, quem sabe, um bom motivo para equilibrarmos, também, nosso pessimismo com o otimismo da razão.



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

DEMOCRACIA SE COMEMORA


Os 35 anos da Alvorada da Democracia

Julio Lopes[1]

No ano em que se consuma o centenário da morte de Rui Barbosa, o qual discutiu, pioneiramente, a questão democrática brasileira em inéditas campanhas presidenciais populares, em que a Carta cidadã de 1988 completa 35 anos de vigência, e no qual houve a primeira tentativa organizada de abolir o Estado Democrático de Direito no Brasil, cabe uma resposta institucional que ultrapasse a lamentável tentativa política ditatorial.

Neste sentido, além dos Poderes republicanos reagirem em defesa da democracia constitucional ameaçada, também é necessário, inclusive porque condizente com o dever cívico de democratas, renovarem, anualmente, seu compromisso institucional, cultivando a memória democrática brasileira.

É através de atividades diversas, e condizentes com a natureza institucional de cada Instituição pública, que recordem, discutam e comemorem as lutas sociais e políticas que propiciaram a atual Magna Carta brasileira, na qual a cidadania foi expressamente inscrita como nunca antes, que sua memória nacional vivificada poderá contribuir para a ainda necessária construção de uma cultura cívica democrática ou participativa, junto à e com a população brasileira.

Para isso, é necessária uma política cultural regulatória da memória democrática brasileira, que nem implica quaisquer gastos públicos acrescidos, já que seriam atividades memoriais inerentes às programações anuais das Instituições públicas. Tal regulação da memória da conquista da liberdade política, pela soberania popular brasileira, apenas destacaria sua previsão ordinária na governança habitual das Instituições dos Poderes estatais e sem tolher ou mesmo estimulando outras iniciativas análogas pela sociedade civil no Brasil. Cujas associações civis também poderiam, eventualmente, articular eventos conjuntos com órgãos públicos na promoção da memória coletiva pela democracia brasileira.

Afinal, também cabe a um governo de conciliação nacional, pela reconstrução democrática, propor articulações amplas com os Poderes Legislativo e Judiciário (ameaçados diretamente ou indiretamente pelo golpismo autoritário que têm grassado, recentemente, em nosso País), para fomentar a circulação de informações cuja veracidade histórica tanto correspondem aos arquivos institucionais já tão consolidados, quanto contribuintes para a formação de uma consciência coletiva mais sólida à cidadania brasileira.

Neste sentido democrático pela consolidação da democracia brasileira, através da formação de uma cultura cívica correspondente, proponho a seguinte lei:

                                SEMANA DA CIDADANIA

É instituída a Semana da Cidadania, correspondente ao período anual semanal no qual transcorra o dia 05 de outubro, no qual foi promulgada a atual Constituição Brasileira.

Parágrafo único: Durante o período semanal anual supracitado, as Instituições públicas, especialmente federais e que permeiam os Poderes republicanos, devem promover eventos comemorativos, preferencialmente reflexivos, mediante atividades tão pertinentes à suas missões institucionais, quanto relativas à memória coletiva do advento do Estado Democrático de Direito e os direitos constitucionais, nela proclamados.

XXXXXXX

Acesse o link abaixo para registrar seu APOIO. Divulguem em suas redes sociais esse texto.

  https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoideia?id=176537




[1] Pesquisador Titular em Ciências Sociais e Humanas da Fundação Casa de Rui Barbosa. Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Pós-Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco

domingo, 8 de outubro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 024 - ELEIÇÕES DOS CONSELHOS TUTELARES SERIAM O ENSAIO GERAL?

Conselhos Tutelares e Eleições de 2024

Vagner Gomes de Souza

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é um conjunto de normas de proteção dos direitos da criança e do adolescente que foi instituído no Brasil em 13 de julho de 1990. Nosso país estava com as “contas bloqueadas” pelo único tiro possível contra o “tigre da inflação” nas palavras do então Presidente da República. Era para serem os primeiros meses de um novo ordenamento institucional em substituição ao “Código do Menor”.

Um Brasil com menos de 10% da população que se declarava evangélicas. Logo, na esfera religiosa com toda a legitimidade democrática, a atuação marcante da Pastoral do Menor organizada entre os católicos a partir de 1977 como forma de fazer uma missão em favor de crianças e adolescentes empobrecidos. O social estava na ordem do debate do dia para denunciar as tratativas da República e da Democracia como o culto da política de moderação. A “revolução dos interesses” semeava os elementos do empreendedorismo individualizado que mudará em muito o perfil do mundo do trabalho.

O ECA resguardou os direitos num país que foi se aproximando da estabilidade inflacionária, porém passou por poucos momentos de crescimento econômico. Nesses 33 anos a juventude ampliou seu acesso a educação, mas os números de proficiência em leitura e interpretação, matemática e conhecimentos em ciências ainda estão em níveis muito abaixo do adequado. Além disso, surgiu uma pandemia com um grande impacto na vida das crianças e adolescentes que em muitos aspectos não se comenta ao falar das eleições aos Conselhos Tutelares.

As forças reacionárias apresentaram inúmeras propostas legislativas nessas últimas décadas com o intuito da redução da maioridade penal. Diante da capilaridade dos Conselhos Tutelares, eles ganham um valor muito estratégico na resistência a essa e outras propostas em contradição ao Estatuto. O reacionarismo não pode ser confundido com aquilo que chamam pensamento conservador nas eleições do Conselho Tutelar uma vez que atuam democraticamente mobilizando eleitores para legitimar o arcabouço jurídico e institucional do ECA.

 Não podemos deixar de considerar que muitos eleitores atribuem equivocadamente uma das razões do crescimento da violência a falta de punição as ações criminosas que está cada vez mais com o aliciamento das crianças e adolescentes. A narrativa reacionária apresenta a transformação de Dadinho como Zé Pequeno - personagem do filme Cidade de Deus (2002) inspirado em José Eduardo Barreto Conceição que foi um criminoso nos anos 70/80 no mesmo bairro.  Defendem que o “mal” precisa ser combatido pela raiz e o ECA impediria isso. Não nos surpreendamos que muitos ausentes nas eleições aos Conselhos Tutelares sejam dessa opinião ou, mais grava ainda seria o quadro, que haja eleitores ativos com esse perfil.


Não podemos reacender o atalho simplificado da ideia de “polarização” política na escolha dos Conselhos Tutelares uma vez que a linha tênue entre reacionários e conservadores é marcante. No decorrer da campanha aos Conselhos, o espírito de Frente Democrática está deixado em segundo plano, pois averiguamos muitas mensagens nas redes sociais defendendo “perfis” de um “Campo Progressista”. Todavia, a sociedade vive um dia a dia muito dramático para esse tipo de alinhamento. Não buscar a ampliação do “arco de aliados” até entre os evangélicos é o mesmo que o mundo sindical fez nos anos 80 com o líder metalúrgico “Joaquinzão”[1] que era um grande defensor do “imposto sindical”.

Estamos em tempos de transição na demografia e religiosa. Dois fatores que seriam singulares para que as Ciências Sociais estudem seus possíveis impactos na mobilização do voto. Os eleitores do segmento juvenil estão a reduzir e muitos comungam do pensamento reacionário como observamos nas atitudes em salas de aulas e na ascensão de grupos virtuais de jogos com perfil de grande violência. Ilusão considerar que haja uma “juventude progressista” uma vez que esse é o segmento mais alheio a qualquer participação coletiva nos dias atuais. Reagem até a participar de exames nacionais como SAEB ou ENEM. Imagina acordar num Domingo para ir votar ao Conselho Tutelar. A juventude mobilizada está nas instituições religiosas sem estar no aguardo de cargos públicos. O jovem evangélico (nunca mobilizado por uma Frente Democrática) faz pelo futuro como se ainda fosse a expressão da confiança numa utopia.

 Consequentemente, as lideranças de um importante segmento da sociedade não podem ser desconsideradas e/ou ridicularizadas como fanáticas. Não estamos condenados na terra se houver mais política de Frente. Afinal, não é impossível estabelecer um diálogo com os herdeiros do pensamento “Saquarema”, pois defendem o primado da Lei já constituída. A “lacração” só está nos isolando ao disputar o eleitor comum. Esse é o momento de reconhecer que esse sectarismo poderá nos levar a derrota às “casas legislativas” em 2024. Ainda é tempo de sair das “bolhas” dos coletivos e fazer política concreta.


[1] Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo desde 1965. Muito criticado como “pelego”, ou seja, um líder sindical conservador. Três momentos de sua atuação merecem ser lembrados: o protesto contra o assassinato do operário Manoel Fiel Filho nos porões da ditadura, em 1976, a ação judicial, também durante a ditadura, reivindicando perdas salariais e a greve pela redução da jornada de trabalho de 48 para 44 horas semanais, consubstanciada na Constituição de 1988 como marco para colocar o dia 5 de outubro no calendário nacional como Dia da Democracia.


segunda-feira, 2 de outubro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 023 - UMA LIÇÃO DE LAMPEDUSA

A Tentação do Simples

 

Pelo Outubro Rosa

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Por compromissos internacionais a 39.º Presidência da República Federativa do Brasil passou quase todo o mês de setembro em viagens, Tão Longe, Tão Perto do que acontecia no Brasil, mas aqui estava por ocasião da condenação pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal das primeiras ações penais sobre os atos antidemocráticos de 8/1.

É claro que muitos acontecimentos ocorreram nos meses anteriores e outros serão implementados posteriormente, com a persistente e intensificada busca pelos demais envolvidos, tarefa mais concreta e proeminente nestes tempos democráticos. Como bem sabemos, o conteúdo do julgamento ainda não conseguiu ser - e talvez nunca o seja - um momento revigorante da nossa textura democrática.

Isto não é apenas o produto de um certo momento difícil, mas também é fruto de confusão pedagógica democrática e de uma falta de capacidade de gestão. Parte disto sem dúvida existe, mas graças as homeopáticas mudanças ministeriais, algumas até com uma interpretação teórico-militar como “giro táctico”, mais o savoir faire de Napoleão de Ridley Scott foi acrescentado à conduta do Estado, embora os resultados positivos sejam até agora muito parciais e fazendo os passos em falsos tenderem a seguir e predominar.

Também não é produto de uma incapacidade de aprender por parte da Presidência, que tem feito um esforço para melhorar a condução do seu staff no Palácio do Planalto no exercício político cotidiano, apesar das suas contradições em ações e palavras, impulsos emocionais numa direção ou outra e alguma atitude cuja lógica racional é difícil de decifrar tanto pelos seus seguidores como pelos seus adversários e, sobretudo, pela maioria dos cidadãos, que tendem a ter uma posição bastante distanciada em face ao poder. A cidadania simplesmente aprova ou rejeita suas ações de acordo com a forma como a percebe.

Apesar das falhas, a Presidência segue dedicada ao seu trabalho, com vontade de acertar, boas intenções e certo espírito democrático que o tem levado a mudar frequentemente de ideias, na maioria das vezes para corrigir erros.

O problema está em outro lugar. O que impede um bom governo parece residir sobretudo na composição da coligação governamental da Frente Democrática, o que torna muito difícil para esta expandir a sua base de apoio num sistema democrático, porque as suas propostas e ações não são inteiramente consistentes na sua orientação e com dificuldade de gerar credibilidade.

Tendo minimamente duas almas desencontradas ou não como certa vez ensinou o saudoso Gildo Marçal Brandão, se a proposta e a ação forem radicais não desperta entusiasmo nos seus setores mais reformistas e se for moderada terá oposição dos setores radicais. A consequência natural é a imobilidade, o páramo.

Podem, consequentemente, encontrar um denominador comum ocasionalmente, mas nem sempre, e dificilmente em questões de longo prazo. A esquerda democrática considera a democracia liberal como um valor permanente e quer reformar e regular como ficou claro no compromisso pelo trabalho e sindicatos firmados por Lula e Joe Biden; mas isso não elimina um momento intransponível de atrito com vários componentes radicais que consideram esse evento como tático e seguem aspirando um regime político e econômico diferente que já não se sabe muito bem em que consiste. Como resultado, a coesão da coligação governamental a longo prazo será sempre fraca, contraditória e insuficiente.


Cena do filme Il Gattopardo (Em lembrança de seus 60 anos) 

É natural que os setores radicais apoiem com sincera convicção os regimes cubano, nicaraguense e venezuelano. Que sentem uma certa simpatia pela Coreia do Norte e, claro, com alguns pontos de interrogação, pelos seus aspectos capitalistas, pelas experiências chinesa e vietnamita. Que eles possam ser tocados por tudo o que o suposto anti-imperialismo passa e também que possam subitamente se envolver com a Rússia oligárquica de Putin, com quem partilham um olhar nostálgico sobre o passado soviético, reconstruindo assim na sua imaginação um mundo simples com amigos e inimigos claros ou não a lá Carl Schmitt.

Afinal de contas, são a sua identidade política, que pouco tem a ver com a cultura democrática e as situações geopolíticas atuais, mas que permanecem a existir nos seus corações e ficam a girar nas suas cabeças. É muito difícil dirigir eficazmente um governo quando nele coexiste um pensamento simples, doutrinário e identitário com outro que, embora tenha hesitações, é mais complexo.

Hoje, as forças de extrema direita seguiram tentando impor as suas visões unilaterais que negam o bom senso alcançado pela sociedade brasileira. Falta-lhes qualquer espessura democrática e aparece o seu duro fundamentalismo político, arrastando a direita institucional para o passado. Se não houver vontade de encontrar soluções aceitáveis ​​para o Grande Número brasileiro, o país corre o risco de uma nova rejeição à política.

É evidente que o Brasil precisa reduzir o peso das posições antipolíticas para reforçar a sua coexistência democrática. Não basta que os novos líderes políticos estejam satisfeitos com o fato de as coisas não piorarem e de as divisões existentes não se aprofundarem. É muito razoável que a Presidência encontre uma zona de conforto ao sentir que tem um apoio, mesmo que as coisas não estejam bem econômica e socialmente.

O discurso ambíguo permite-lhe preservar a coesão da sua coligação governamental, mesmo que não avance para os acordos ​​que possam desbloquear a situação atual. Mas manter a ambivalência também significa resignar-se, acomodando-se na letargia. A mudança é difícil, terá custos emocionais e políticos, exige muita coragem e um grande sentido de Estado.

Entendemos que talvez o que se afirma não passe de um bom desejo, mas se não acontecer, poderemos estar pavimentando um mal caminho para o gattopardismos, que não aspira a modernidade em sua plenitude e abre a possibilidade para a desconfiança de novos avanços democráticos e republicanos.

 

1 de outubro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


domingo, 24 de setembro de 2023

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 20 - ERA UMA VEZ NO NORDESTE

Leituras sobre o Brasil em Cangaço Novo

Por Vagner Gomes de Souza

 

A produção cinematográfica brasileira na terceira década do, salvo em raríssimas exceções como observamos em Eduardo e Mônica[1] e Medida Provisória[2] (resenhados nesse BLOG), tem se caracterizado por uma sequência de filmes fracos como se fossem “retratos fantasmas” de modas e conceitos fraturados. A vocação de frente democrática não se faz muito forte nesse mercado, pois a resposta do público tem sido muito e muito pequena em que a “onda streaming” e os efeitos perversos da individualização na sociedade brasileira estão derruindo em muito a estabilidade das equipes criativas. Portanto, o melhor da ficção audiovisual nossa está se apresentando em inúmeras e variados seriados como DOM, Cidade Invisível, Segunda Chamada, Arcanjo Renegado, Sob Pressão, etc.

Agora o público brasileiro foi brindado pelo seriado Cangaço Novo (Direção de Fábio Mendonça) na PRIMEVÍDEO e confirma a qualidade de roteiros nessa safra que emergem nessa década. Com criação de Mariana Bardan e Eduardo Melo, a nova produção brasileira conta com Allan Souza Lima (de A Menina Que Matou os Pais) no papel principal. A primeira temporada que agradou muito o público brasileiro e se inseriu no contexto do continente africano como se fosse uma Escrava Isaura do século XXI. A hipótese do estado de anomia em Durkheim deve provavelmente explicar esse fenômeno.

O seriado tem 8 episódios que reforçam muitas leituras sobre o Brasil que poderíamos revisitar com o compromisso de buscar novas interpretações diante dos novos sujeitos sociais que surgem em destaque nos primeiros dados divulgados do Censo de 2022. Entretanto, antes que comecemos a enumerar uma bibliografia inspirada no pensamento social brasileiro, poderíamos lembrar que há um pouco de Roque Santeiro na volta do personagem Ubaldo Vaqueiro a fictícia Catrará num Ceará muito distante dos índices de primeiro lugar no IDEB. A comparação não é pela volta de um herói, mas por causa de uma vida social em torno de uma mitologia referente ao pai biológico do personagem principal.


Contudo, ainda temos o tema do exclusivo agrário na trama por conta de uma herança de um sítio sob a hipoteca do sistema financeiro. O banco é um opressor desde momento que Ubaldo é demitido como bancário. Em seguida, ele percebe o quanto o peso das sedimentações passivas do passado ainda se faz presente no mundo contemporâneo. Então, o telespectador se vê diante de um personagem sem memória sem que haja uma explicação sobre esse fenômeno. O reencontro familiar se faz com conflitos e incertezas. Além disso, Ubaldo, apesar de sua primeira resistência a grau da violência dos “neocangaceiros”, não é um exemplo de ética e uma “sombra” ronda sobre os motivos de seu afastamento do exército brasileiro o que lhe fazia se mantiver uniformizado diante de seu pai adotivo.

A presença das forças armadas em exercício no agreste do Ceará nos anos 90 seria outro momento “turvo” desse seriado. Os pontos que aproximaram a personagem Zefa (em brilhante atuação de Marcélia Cartaxo) e o militar que seria o pai adotivo de Ubaldo Vaqueiro não se elucidaram na primeira temporada. Não seria um pouco de O sentido do tenentismo de Virgílio Santa Rosa? Muitos que comentam sobre as forças armadas na atualidade pouco têm noção sobre esse ensaio de 1933 (um nonagenário livro injustamente esquecido). Aguardemos os possíveis desdobramentos uma vez que as forças armadas em tempos pretéritos tanto tiveram setores a questionar quanto a incentivar a manutenção do exclusivo agrário no Brasil.

As leituras de interpretação de nosso país se abrem em inúmeras possibilidades nesse seriado que foi produzido entre 2021/22 apesar de vir a público nesse primeiro ano de governança da Frente Democrática. E as referências bibliográficas esquecidas até em instituições que deveriam primar pelo estudo do agrarismo no pensamento social brasileiro. Diante disso, Cangaceiros e Fanáticos de Rui Facó poderiam ser uma dessas referências, pois atribui aos fenômenos de Canudos e ao Cangaço um resultado da crise de ordem econômica e autoridade. O elemento de crise no conceito gramsciano no qual o velho já morreu mais o novo ainda não se sabe fazer presente poderia explicar assim a boa recepção do seriado mundialmente.

Entretanto, a crise da autoridade da política se faz muito presente no atrito geracional entre o Senador e seu filho que é prefeito de Catrára. Suas nuances políticas expostas no episódio “Tudo é política” marcariam o aggiornamento de Ubaldo Vaqueiro num contexto social semelhante ao que Victor Nunes Leal observou em Coronelismo, enxada e voto. O poder político nos municípios não deixam de ser ainda a base de muitas configurações políticas nacionais e muito bem sabemos que o caminho das verbas orçamentárias podem levar ao sucesso ou ao fiasco de muitas gestões administrativas. A crise fiscal é uma “sombra” em Cangaço Novo uma vez que se precisa de apoio em Brasília para a realização de uma obra pública (uma estrada) que valorizaria muitas terras ao redor. Esse é o ponto do debate político sem nenhuma máscara ideologizada.

O tema da violência, que elege muitas candidaturas que se sustentam na base conservadora do eleitorado brasileiro, é outra vez provocada pela facilidade dos canais em que Ubaldo Vaqueiro (ex-militar) teve para conseguir armamentos modernos. A modernização conservadora em todos seus significados diante de uma realidade que estudada por uma socióloga esquecida pelas assim chamadas lideranças do “Feminismo Novo”: Maria Sylvia de Carvalho Franco. Homens livres na ordem escravocrata ganha grande atualidade param se observar o crescimento da violência no Nordeste (como observamos recentemente na Bahia em suas sedimentações do “carlismo”). Por fim, sugerimos que esse é um livro que muito poderia contribuir para repensar um olhar sobre o novo país que nasce no crescimento demográfico no Centro-Oeste.




 


[1] Copie o link a seguir para ler https://votopositivo-cg.blogspot.com/2022/02/a-doce-politica-no-cinema-numero-9-o.html

[2] Copie o link para ler https://votopositivo-cg.blogspot.com/2022/04/a-doce-politica-no-cinema-numero-10.html

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - O DESAFIO DE COMPREENDER OS OUTROS

Compreender outros

Para Benjamin

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Compreender outros: povos, animais, passados, de Dominick LaCapra (Belo Horizonte: Autêntica, 2023 – Coleção História e Historiografia).

 

Neste livro desafiadoramente político - e a epígrafe com Gramsci só confirma -, Dominick LaCapra mobiliza Freud - como muito antes havia feito o Amauta José Carlos Mariátegui, Bakhtin e Derrida para expor os complexos processos mentais na história que acabaram por sustentar a perseguição das hominídeas e das demais formas de vida. O emparelhamento é frutífero, conferindo consistência metodológica a um volume que, como revela LaCapra, não tem um desenvolvimento tão facilmente conexo entre os capítulos.

Para LaCapra, a tarefa principal do livro é “promover o desenvolvimento e a efetividade de um quadro de referência “pós-humanista” (ou diverso do estritamente humano) que situe e limite o humano em um contexto ecológico e existencial mais amplo” (LaCapra, 2023, p. 35). Significa a reconceitualização da individuação, rompendo a tendência de projetar o incognoscível num outro interior em um outro externo (classificado de acordo com sexo, raça, espécie, ou qualquer outra modalidade) que é assim passível de demonização e usado como bode expiatório.

Os vocabulários e metodologias de Freud, Bakhtin e Derrida que se cruzam são mais do que adequados para o propósito político do livro. Minando a fantasia fundadora de uma visão teleologicamente ideológica de um sujeito soberano, sua análise forja um pensamento de futuro que permite a resistência de um antropoceno planetário.

Seguindo Derrida, LaCapra afirma que tal futuro o pensamento é circunscrito por uma consciência inabalável de sua própria provisoriedade. 'Trabalhando permanentemente isso permite em não implicar na conquista de um fechamento e de uma suposta plena identidade e/ou autonomia.

A sua descrição dos espectros – agora definhando e quase em desuso – é fundamentada em um desdobramento cuidadoso de sua historicidade e em uma refutação paciente dos frequentes acusação de relativismo cultural, e daí visando evitar as ressurgências do passado recente como Trump que quase sempre costumam assombrar os vivos, trazendo de volta tempos mal vividos, enredos que não se completaram, espectros que saem das sombras a fim de nos cobrar ações para que, afinal, possam repousar em paz, como na tragédia clássica de Hamlet, na bela leitura de Derrida. Espectros que nos rondam, quando os vivos não enterram bem seus mortos, e se investem desajeitados dos papéis que tão bem couberam neles em farsas que são pantomimas do que eles viveram, nas poderosas imagens de Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

Contra o pano de fundo desta deflação geológica e meticulosa do indivíduo, soberanias e das espécies, LaCapra, indignado, se posiciona contra a política de Donald Trump. Um exemplo expoente do pensamento que resiste à crítica e à autocrítica, Trump e os seus congêneres como Javier Milei na Argentina e outros são propagadores de uma política de soberania pomposa e narcisista que ignora tanto às lições da história bem como os desafios ambientais e planetários prementes que enfrentamos atualmente.

Impulsionado pela urgência de mobilizar uma resistência eficaz, LaCapra deixa de lado as sutilezas da academia e disciplinares, e move-se rapidamente entre argumentos divergentes para acelerar a transformação das humanidades num antropoceno planetário interdisciplinar. Ocasionalmente, esta abordagem é insuficiente: um envolvimento mais próximo com os estudos biológicos existentes teria enriquecido os relatos de LaCapra sobre a animalidade (que Norbert Elias tão bem evocou) e a lógica dos messianismos que nos rondam.

No entanto, a força do livro não reside na atenção ao intelectual as minúcias, mas em seu enquadramento incisivo de questões prementes e prescientes: como explicar a persistência tão forte em nossa cultura da difamação de outros seres? Como podemos usar insights de Freud, Bakhtin e Derrida sobre a individualidade para construir identidades que não estão enraizadas na violência? Tais questões exigem a colaboração planetária. A grande habilidade de LaCapra está em reviver os métodos de Freud, Bakhtin e Derrida, não como ferramentas para o divã ou para a academia, mas, ao permitir uma relação dialógica ao passado, como ferramentas para se construir um futuro.

Poucas leitoras e leitores discordarão de LaCapra que o cuidado, o rigor e a autocrítica são virtudes importantes em uma cultura como a nossa. Mas a questão é: como pode tal virtudes serem nutridas se a política e a mídia cultivarem hábitos que lhes são prejudiciais? Uma coisa é dizer que as hominídeas podem estimular o pensamento crítico, mas outra bem diferente é promover condições sob as quais as humanidades possam cumprir esta tarefa.

Talvez a resposta esteja nos tetos e na ação nos contextos – textos e contextos difíceis que exigem a plena compreensão das suas leitoras e leitores – pode nutrir hábitos interpretativos autocríticos. Se sim, a boa notícia é que as leitoras e leitores encontraram nesse último volume de LaCapra uma sugestão estimulante de como interagir cuidadosamente com os textos e contextos que questionam alguns dos modos dominantes de individualidade em nosso tempo.

 

20 de setembro de 2023

 



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 022 - ALERTA AOS NAVEGANTES!

Páramo

 

Pelo Setembro Amarelo

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Sempre foi assim ao longo da história, não deveria chamar a nossa atenção, há momentos e períodos em que as coisas estão melhores, em que se abrem esperanças e ilusões e outros em que se concentram catástrofes, conflitos e desespero como alerta o Prémio Nobel de Ciências Económicas Angus Deaton.

Nesses períodos parece que as coisas andam ao contrário e não há saída, o horizonte enche-se de nuvens escuras e as boas notícias escasseiam. O saudoso economista francês Daniel Cohen (1953-2023) chama o atual momento histórico de “a triste fase da globalização” do Homo numericus e o cientista político norte-americano Ronald Inglehart (1934-2021) o chama de “o tempo dos maus sentimentos”.

É verdade que a ciência e a tecnologia avançam cada vez mais rapidamente e os seus efeitos melhorariam a vida em geral. Nem a pobreza nem as desigualdades têm hoje as mesmas características de indignidade que havia no passado.

Só mentes muito obtusas ou velhas muito teimosas que confundem o bem-estar que a juventude gera com o bem-estar dos tempos em que eram jovens, podem dizer bem compreendido, as palavras do Padre Antônio Vieira (1608-1697), “as exéquias à esperança”.

Mas os avanços instrumentais da modernidade não garantem que o progresso seja linear e abranja todos os aspectos da vida e do funcionamento das sociedades. O escritor e ensaísta franco-libanês Amin Maalouf não se engana quando diz em O naufrágio das civilizações: podemos perguntar-nos se a nossa espécie não atingiu o limiar da incompetência moral, se ainda está a avançar, ou se acaba de iniciar um movimento regressivo que ameaça o que tantas gerações construíram.

É um pensamento difícil, mas não absurdo se levarmos em conta a lista de infortúnios e desvios perigosos que pairam sobre nós.

As más notícias superam as boas notícias, não só em termos de catástrofes naturais que as alterações climáticas geram cada vez mais, mas também nas catástrofes que ocorrem nos campos económico, social e político em todo o mundo.

Os Estados Unidos da América, ainda o país mais poderoso do mundo, mostram-nos o espetáculo de um Trump perturbado que aspira a recandidatura à Presidência. Claro, pode ser apenas um indivíduo perturbado que ameaça à democracia, mas é seguido por milhões de pessoas.

Na Europa, a amplitude das convicções democráticas é restrita e o número de soberanismos e nacionalismos xenófobos estão crescendo, onde os direitos sociais e os níveis de igualdade têm avançado durante décadas. É também na Europa onde a Ucrânia foi invadida como antigamente por uma potência com governo autoritário, a Rússia de Putin, que reivindica os espaços históricos do czarismo e da URSS. Como se estivéssemos na Idade Média, o atual czar pune o seu boiardo indisciplinado através do assassinato, não mais por terra, mas por via aérea.

Na Ásia, a velocidade de crescimento tende a diminuir, na China principalmente, e a Índia se posiciona como uma potência, em meio a um nacionalismo desenfreado e com muitas pessoas ainda em estado de grande precariedade. A Coreia do Sul continua a desenvolver-se desigualmente como ilustra sua cinematografia e teledramaturgia sob os mísseis da Coreia do Norte, que não consegue alimentar adequadamente a sua população, com a ostensiva excepção do seu “Líder Supremo”.

No Afeganistão, os talibãs continuam a atacar as suas mulheres, enquanto a pobreza as sufoca. No Oriente Médio, a tensão continua elevada, a democracia é quase inexistente e tornou-se turbulenta mesmo em Israel, a região está repleta de armas, desigualdades e autocracias.

Na África regressou-se à rotina dos golpes militares e nesta lógica competem as influências das potências externas, em consequência da pobreza e da repressão, famílias inteiras fogem em desespero após uma quimera muitas vezes mortal no Mediterrâneo.

A nossa região ibero-americana também vive um momento de possíveis retrocessos políticos. A institucionalidade democrática pode retroceder em muitos países. A qualidade da política está diminuindo e quase todos os indicadores econômicos e sociais estão nos limítrofes inferiores, enquanto os da criminalidade e da corrupção gozam de boa saúde.

Esta situação insere-se num enfraquecimento do multilateralismo, num duro litígio entre as grandes potências e no surgimento ou renascimento de acordos fragmentados e alternativos cujas aspirações, em vez de tenderem para a complementaridade, estão orientadas para a oposição.

É impossível não perceber que esta situação mundial é muito complexa para um país como o nosso, que exige um multilateralismo forte e uma economia global próspera que lhe permita perseguir o seu processo de desenvolvimento, diversificando a sua economia e aumentando o seu comércio externo.

Consequentemente, não podemos acrescentar a este contexto externo uma luta interna que atrapalhe o nosso processo de crescimento. Precisamos de reduzir os nossos níveis de conflito e aumentar a nossa capacidade de acordos políticos e sociais como indica a já tardia reforma ministerial, para recuperar a capacidade de avançar com prosperidade e na igualdade social, saindo simultaneamente da atual estagnação que se assemelha a um carrossel que gira e gira em torno do seu eixo sem avançar o tanto necessário, cheio de palavras bombásticas e de alegrias tênues.

O governo deve adquirir uma orientação clara, realista e concreta, não pode continuar a dar passos em direções opostas, isso só lhe permite sobreviver no dia a dia, mas não governar com projeções.

Para o bem do país, é necessário que todos mudem de atitude, aumentem a sua responsabilidade, controlem as suas emoções de identidade e a paixão pelas suas verdades que consideram únicas. Ou seja, que se sentem à mesa tentando encontrar acordos que possam constituir uma solução aceitável para todos, que nos permita sair do páramo, enfrentar os problemas mais agudos, como os da seguridade dos cidadãos, os mais estratégicos, como reformas que permitam o progresso social.

Não tenhamos dúvidas de que desta forma aumentaria o respeito dos cidadãos pela política, a nossa democracia seria fortalecida, o nosso bem-estar aumentaria e isso permitir-nos-ia uma melhor inserção internacional. Seríamos capazes de recuperar o nosso prestígio agora ferido e tirar partido dos nossos potenciais recursos naturais e dos nossos talentos, mesmo nestes tempos sombrios.

 

3 de setembro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.