domingo, 8 de outubro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 024 - ELEIÇÕES DOS CONSELHOS TUTELARES SERIAM O ENSAIO GERAL?

Conselhos Tutelares e Eleições de 2024

Vagner Gomes de Souza

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é um conjunto de normas de proteção dos direitos da criança e do adolescente que foi instituído no Brasil em 13 de julho de 1990. Nosso país estava com as “contas bloqueadas” pelo único tiro possível contra o “tigre da inflação” nas palavras do então Presidente da República. Era para serem os primeiros meses de um novo ordenamento institucional em substituição ao “Código do Menor”.

Um Brasil com menos de 10% da população que se declarava evangélicas. Logo, na esfera religiosa com toda a legitimidade democrática, a atuação marcante da Pastoral do Menor organizada entre os católicos a partir de 1977 como forma de fazer uma missão em favor de crianças e adolescentes empobrecidos. O social estava na ordem do debate do dia para denunciar as tratativas da República e da Democracia como o culto da política de moderação. A “revolução dos interesses” semeava os elementos do empreendedorismo individualizado que mudará em muito o perfil do mundo do trabalho.

O ECA resguardou os direitos num país que foi se aproximando da estabilidade inflacionária, porém passou por poucos momentos de crescimento econômico. Nesses 33 anos a juventude ampliou seu acesso a educação, mas os números de proficiência em leitura e interpretação, matemática e conhecimentos em ciências ainda estão em níveis muito abaixo do adequado. Além disso, surgiu uma pandemia com um grande impacto na vida das crianças e adolescentes que em muitos aspectos não se comenta ao falar das eleições aos Conselhos Tutelares.

As forças reacionárias apresentaram inúmeras propostas legislativas nessas últimas décadas com o intuito da redução da maioridade penal. Diante da capilaridade dos Conselhos Tutelares, eles ganham um valor muito estratégico na resistência a essa e outras propostas em contradição ao Estatuto. O reacionarismo não pode ser confundido com aquilo que chamam pensamento conservador nas eleições do Conselho Tutelar uma vez que atuam democraticamente mobilizando eleitores para legitimar o arcabouço jurídico e institucional do ECA.

 Não podemos deixar de considerar que muitos eleitores atribuem equivocadamente uma das razões do crescimento da violência a falta de punição as ações criminosas que está cada vez mais com o aliciamento das crianças e adolescentes. A narrativa reacionária apresenta a transformação de Dadinho como Zé Pequeno - personagem do filme Cidade de Deus (2002) inspirado em José Eduardo Barreto Conceição que foi um criminoso nos anos 70/80 no mesmo bairro.  Defendem que o “mal” precisa ser combatido pela raiz e o ECA impediria isso. Não nos surpreendamos que muitos ausentes nas eleições aos Conselhos Tutelares sejam dessa opinião ou, mais grava ainda seria o quadro, que haja eleitores ativos com esse perfil.


Não podemos reacender o atalho simplificado da ideia de “polarização” política na escolha dos Conselhos Tutelares uma vez que a linha tênue entre reacionários e conservadores é marcante. No decorrer da campanha aos Conselhos, o espírito de Frente Democrática está deixado em segundo plano, pois averiguamos muitas mensagens nas redes sociais defendendo “perfis” de um “Campo Progressista”. Todavia, a sociedade vive um dia a dia muito dramático para esse tipo de alinhamento. Não buscar a ampliação do “arco de aliados” até entre os evangélicos é o mesmo que o mundo sindical fez nos anos 80 com o líder metalúrgico “Joaquinzão”[1] que era um grande defensor do “imposto sindical”.

Estamos em tempos de transição na demografia e religiosa. Dois fatores que seriam singulares para que as Ciências Sociais estudem seus possíveis impactos na mobilização do voto. Os eleitores do segmento juvenil estão a reduzir e muitos comungam do pensamento reacionário como observamos nas atitudes em salas de aulas e na ascensão de grupos virtuais de jogos com perfil de grande violência. Ilusão considerar que haja uma “juventude progressista” uma vez que esse é o segmento mais alheio a qualquer participação coletiva nos dias atuais. Reagem até a participar de exames nacionais como SAEB ou ENEM. Imagina acordar num Domingo para ir votar ao Conselho Tutelar. A juventude mobilizada está nas instituições religiosas sem estar no aguardo de cargos públicos. O jovem evangélico (nunca mobilizado por uma Frente Democrática) faz pelo futuro como se ainda fosse a expressão da confiança numa utopia.

 Consequentemente, as lideranças de um importante segmento da sociedade não podem ser desconsideradas e/ou ridicularizadas como fanáticas. Não estamos condenados na terra se houver mais política de Frente. Afinal, não é impossível estabelecer um diálogo com os herdeiros do pensamento “Saquarema”, pois defendem o primado da Lei já constituída. A “lacração” só está nos isolando ao disputar o eleitor comum. Esse é o momento de reconhecer que esse sectarismo poderá nos levar a derrota às “casas legislativas” em 2024. Ainda é tempo de sair das “bolhas” dos coletivos e fazer política concreta.


[1] Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo desde 1965. Muito criticado como “pelego”, ou seja, um líder sindical conservador. Três momentos de sua atuação merecem ser lembrados: o protesto contra o assassinato do operário Manoel Fiel Filho nos porões da ditadura, em 1976, a ação judicial, também durante a ditadura, reivindicando perdas salariais e a greve pela redução da jornada de trabalho de 48 para 44 horas semanais, consubstanciada na Constituição de 1988 como marco para colocar o dia 5 de outubro no calendário nacional como Dia da Democracia.


segunda-feira, 2 de outubro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 023 - UMA LIÇÃO DE LAMPEDUSA

A Tentação do Simples

 

Pelo Outubro Rosa

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Por compromissos internacionais a 39.º Presidência da República Federativa do Brasil passou quase todo o mês de setembro em viagens, Tão Longe, Tão Perto do que acontecia no Brasil, mas aqui estava por ocasião da condenação pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal das primeiras ações penais sobre os atos antidemocráticos de 8/1.

É claro que muitos acontecimentos ocorreram nos meses anteriores e outros serão implementados posteriormente, com a persistente e intensificada busca pelos demais envolvidos, tarefa mais concreta e proeminente nestes tempos democráticos. Como bem sabemos, o conteúdo do julgamento ainda não conseguiu ser - e talvez nunca o seja - um momento revigorante da nossa textura democrática.

Isto não é apenas o produto de um certo momento difícil, mas também é fruto de confusão pedagógica democrática e de uma falta de capacidade de gestão. Parte disto sem dúvida existe, mas graças as homeopáticas mudanças ministeriais, algumas até com uma interpretação teórico-militar como “giro táctico”, mais o savoir faire de Napoleão de Ridley Scott foi acrescentado à conduta do Estado, embora os resultados positivos sejam até agora muito parciais e fazendo os passos em falsos tenderem a seguir e predominar.

Também não é produto de uma incapacidade de aprender por parte da Presidência, que tem feito um esforço para melhorar a condução do seu staff no Palácio do Planalto no exercício político cotidiano, apesar das suas contradições em ações e palavras, impulsos emocionais numa direção ou outra e alguma atitude cuja lógica racional é difícil de decifrar tanto pelos seus seguidores como pelos seus adversários e, sobretudo, pela maioria dos cidadãos, que tendem a ter uma posição bastante distanciada em face ao poder. A cidadania simplesmente aprova ou rejeita suas ações de acordo com a forma como a percebe.

Apesar das falhas, a Presidência segue dedicada ao seu trabalho, com vontade de acertar, boas intenções e certo espírito democrático que o tem levado a mudar frequentemente de ideias, na maioria das vezes para corrigir erros.

O problema está em outro lugar. O que impede um bom governo parece residir sobretudo na composição da coligação governamental da Frente Democrática, o que torna muito difícil para esta expandir a sua base de apoio num sistema democrático, porque as suas propostas e ações não são inteiramente consistentes na sua orientação e com dificuldade de gerar credibilidade.

Tendo minimamente duas almas desencontradas ou não como certa vez ensinou o saudoso Gildo Marçal Brandão, se a proposta e a ação forem radicais não desperta entusiasmo nos seus setores mais reformistas e se for moderada terá oposição dos setores radicais. A consequência natural é a imobilidade, o páramo.

Podem, consequentemente, encontrar um denominador comum ocasionalmente, mas nem sempre, e dificilmente em questões de longo prazo. A esquerda democrática considera a democracia liberal como um valor permanente e quer reformar e regular como ficou claro no compromisso pelo trabalho e sindicatos firmados por Lula e Joe Biden; mas isso não elimina um momento intransponível de atrito com vários componentes radicais que consideram esse evento como tático e seguem aspirando um regime político e econômico diferente que já não se sabe muito bem em que consiste. Como resultado, a coesão da coligação governamental a longo prazo será sempre fraca, contraditória e insuficiente.


Cena do filme Il Gattopardo (Em lembrança de seus 60 anos) 

É natural que os setores radicais apoiem com sincera convicção os regimes cubano, nicaraguense e venezuelano. Que sentem uma certa simpatia pela Coreia do Norte e, claro, com alguns pontos de interrogação, pelos seus aspectos capitalistas, pelas experiências chinesa e vietnamita. Que eles possam ser tocados por tudo o que o suposto anti-imperialismo passa e também que possam subitamente se envolver com a Rússia oligárquica de Putin, com quem partilham um olhar nostálgico sobre o passado soviético, reconstruindo assim na sua imaginação um mundo simples com amigos e inimigos claros ou não a lá Carl Schmitt.

Afinal de contas, são a sua identidade política, que pouco tem a ver com a cultura democrática e as situações geopolíticas atuais, mas que permanecem a existir nos seus corações e ficam a girar nas suas cabeças. É muito difícil dirigir eficazmente um governo quando nele coexiste um pensamento simples, doutrinário e identitário com outro que, embora tenha hesitações, é mais complexo.

Hoje, as forças de extrema direita seguiram tentando impor as suas visões unilaterais que negam o bom senso alcançado pela sociedade brasileira. Falta-lhes qualquer espessura democrática e aparece o seu duro fundamentalismo político, arrastando a direita institucional para o passado. Se não houver vontade de encontrar soluções aceitáveis ​​para o Grande Número brasileiro, o país corre o risco de uma nova rejeição à política.

É evidente que o Brasil precisa reduzir o peso das posições antipolíticas para reforçar a sua coexistência democrática. Não basta que os novos líderes políticos estejam satisfeitos com o fato de as coisas não piorarem e de as divisões existentes não se aprofundarem. É muito razoável que a Presidência encontre uma zona de conforto ao sentir que tem um apoio, mesmo que as coisas não estejam bem econômica e socialmente.

O discurso ambíguo permite-lhe preservar a coesão da sua coligação governamental, mesmo que não avance para os acordos ​​que possam desbloquear a situação atual. Mas manter a ambivalência também significa resignar-se, acomodando-se na letargia. A mudança é difícil, terá custos emocionais e políticos, exige muita coragem e um grande sentido de Estado.

Entendemos que talvez o que se afirma não passe de um bom desejo, mas se não acontecer, poderemos estar pavimentando um mal caminho para o gattopardismos, que não aspira a modernidade em sua plenitude e abre a possibilidade para a desconfiança de novos avanços democráticos e republicanos.

 

1 de outubro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


domingo, 24 de setembro de 2023

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 20 - ERA UMA VEZ NO NORDESTE

Leituras sobre o Brasil em Cangaço Novo

Por Vagner Gomes de Souza

 

A produção cinematográfica brasileira na terceira década do, salvo em raríssimas exceções como observamos em Eduardo e Mônica[1] e Medida Provisória[2] (resenhados nesse BLOG), tem se caracterizado por uma sequência de filmes fracos como se fossem “retratos fantasmas” de modas e conceitos fraturados. A vocação de frente democrática não se faz muito forte nesse mercado, pois a resposta do público tem sido muito e muito pequena em que a “onda streaming” e os efeitos perversos da individualização na sociedade brasileira estão derruindo em muito a estabilidade das equipes criativas. Portanto, o melhor da ficção audiovisual nossa está se apresentando em inúmeras e variados seriados como DOM, Cidade Invisível, Segunda Chamada, Arcanjo Renegado, Sob Pressão, etc.

Agora o público brasileiro foi brindado pelo seriado Cangaço Novo (Direção de Fábio Mendonça) na PRIMEVÍDEO e confirma a qualidade de roteiros nessa safra que emergem nessa década. Com criação de Mariana Bardan e Eduardo Melo, a nova produção brasileira conta com Allan Souza Lima (de A Menina Que Matou os Pais) no papel principal. A primeira temporada que agradou muito o público brasileiro e se inseriu no contexto do continente africano como se fosse uma Escrava Isaura do século XXI. A hipótese do estado de anomia em Durkheim deve provavelmente explicar esse fenômeno.

O seriado tem 8 episódios que reforçam muitas leituras sobre o Brasil que poderíamos revisitar com o compromisso de buscar novas interpretações diante dos novos sujeitos sociais que surgem em destaque nos primeiros dados divulgados do Censo de 2022. Entretanto, antes que comecemos a enumerar uma bibliografia inspirada no pensamento social brasileiro, poderíamos lembrar que há um pouco de Roque Santeiro na volta do personagem Ubaldo Vaqueiro a fictícia Catrará num Ceará muito distante dos índices de primeiro lugar no IDEB. A comparação não é pela volta de um herói, mas por causa de uma vida social em torno de uma mitologia referente ao pai biológico do personagem principal.


Contudo, ainda temos o tema do exclusivo agrário na trama por conta de uma herança de um sítio sob a hipoteca do sistema financeiro. O banco é um opressor desde momento que Ubaldo é demitido como bancário. Em seguida, ele percebe o quanto o peso das sedimentações passivas do passado ainda se faz presente no mundo contemporâneo. Então, o telespectador se vê diante de um personagem sem memória sem que haja uma explicação sobre esse fenômeno. O reencontro familiar se faz com conflitos e incertezas. Além disso, Ubaldo, apesar de sua primeira resistência a grau da violência dos “neocangaceiros”, não é um exemplo de ética e uma “sombra” ronda sobre os motivos de seu afastamento do exército brasileiro o que lhe fazia se mantiver uniformizado diante de seu pai adotivo.

A presença das forças armadas em exercício no agreste do Ceará nos anos 90 seria outro momento “turvo” desse seriado. Os pontos que aproximaram a personagem Zefa (em brilhante atuação de Marcélia Cartaxo) e o militar que seria o pai adotivo de Ubaldo Vaqueiro não se elucidaram na primeira temporada. Não seria um pouco de O sentido do tenentismo de Virgílio Santa Rosa? Muitos que comentam sobre as forças armadas na atualidade pouco têm noção sobre esse ensaio de 1933 (um nonagenário livro injustamente esquecido). Aguardemos os possíveis desdobramentos uma vez que as forças armadas em tempos pretéritos tanto tiveram setores a questionar quanto a incentivar a manutenção do exclusivo agrário no Brasil.

As leituras de interpretação de nosso país se abrem em inúmeras possibilidades nesse seriado que foi produzido entre 2021/22 apesar de vir a público nesse primeiro ano de governança da Frente Democrática. E as referências bibliográficas esquecidas até em instituições que deveriam primar pelo estudo do agrarismo no pensamento social brasileiro. Diante disso, Cangaceiros e Fanáticos de Rui Facó poderiam ser uma dessas referências, pois atribui aos fenômenos de Canudos e ao Cangaço um resultado da crise de ordem econômica e autoridade. O elemento de crise no conceito gramsciano no qual o velho já morreu mais o novo ainda não se sabe fazer presente poderia explicar assim a boa recepção do seriado mundialmente.

Entretanto, a crise da autoridade da política se faz muito presente no atrito geracional entre o Senador e seu filho que é prefeito de Catrára. Suas nuances políticas expostas no episódio “Tudo é política” marcariam o aggiornamento de Ubaldo Vaqueiro num contexto social semelhante ao que Victor Nunes Leal observou em Coronelismo, enxada e voto. O poder político nos municípios não deixam de ser ainda a base de muitas configurações políticas nacionais e muito bem sabemos que o caminho das verbas orçamentárias podem levar ao sucesso ou ao fiasco de muitas gestões administrativas. A crise fiscal é uma “sombra” em Cangaço Novo uma vez que se precisa de apoio em Brasília para a realização de uma obra pública (uma estrada) que valorizaria muitas terras ao redor. Esse é o ponto do debate político sem nenhuma máscara ideologizada.

O tema da violência, que elege muitas candidaturas que se sustentam na base conservadora do eleitorado brasileiro, é outra vez provocada pela facilidade dos canais em que Ubaldo Vaqueiro (ex-militar) teve para conseguir armamentos modernos. A modernização conservadora em todos seus significados diante de uma realidade que estudada por uma socióloga esquecida pelas assim chamadas lideranças do “Feminismo Novo”: Maria Sylvia de Carvalho Franco. Homens livres na ordem escravocrata ganha grande atualidade param se observar o crescimento da violência no Nordeste (como observamos recentemente na Bahia em suas sedimentações do “carlismo”). Por fim, sugerimos que esse é um livro que muito poderia contribuir para repensar um olhar sobre o novo país que nasce no crescimento demográfico no Centro-Oeste.




 


[1] Copie o link a seguir para ler https://votopositivo-cg.blogspot.com/2022/02/a-doce-politica-no-cinema-numero-9-o.html

[2] Copie o link para ler https://votopositivo-cg.blogspot.com/2022/04/a-doce-politica-no-cinema-numero-10.html

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - O DESAFIO DE COMPREENDER OS OUTROS

Compreender outros

Para Benjamin

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Compreender outros: povos, animais, passados, de Dominick LaCapra (Belo Horizonte: Autêntica, 2023 – Coleção História e Historiografia).

 

Neste livro desafiadoramente político - e a epígrafe com Gramsci só confirma -, Dominick LaCapra mobiliza Freud - como muito antes havia feito o Amauta José Carlos Mariátegui, Bakhtin e Derrida para expor os complexos processos mentais na história que acabaram por sustentar a perseguição das hominídeas e das demais formas de vida. O emparelhamento é frutífero, conferindo consistência metodológica a um volume que, como revela LaCapra, não tem um desenvolvimento tão facilmente conexo entre os capítulos.

Para LaCapra, a tarefa principal do livro é “promover o desenvolvimento e a efetividade de um quadro de referência “pós-humanista” (ou diverso do estritamente humano) que situe e limite o humano em um contexto ecológico e existencial mais amplo” (LaCapra, 2023, p. 35). Significa a reconceitualização da individuação, rompendo a tendência de projetar o incognoscível num outro interior em um outro externo (classificado de acordo com sexo, raça, espécie, ou qualquer outra modalidade) que é assim passível de demonização e usado como bode expiatório.

Os vocabulários e metodologias de Freud, Bakhtin e Derrida que se cruzam são mais do que adequados para o propósito político do livro. Minando a fantasia fundadora de uma visão teleologicamente ideológica de um sujeito soberano, sua análise forja um pensamento de futuro que permite a resistência de um antropoceno planetário.

Seguindo Derrida, LaCapra afirma que tal futuro o pensamento é circunscrito por uma consciência inabalável de sua própria provisoriedade. 'Trabalhando permanentemente isso permite em não implicar na conquista de um fechamento e de uma suposta plena identidade e/ou autonomia.

A sua descrição dos espectros – agora definhando e quase em desuso – é fundamentada em um desdobramento cuidadoso de sua historicidade e em uma refutação paciente dos frequentes acusação de relativismo cultural, e daí visando evitar as ressurgências do passado recente como Trump que quase sempre costumam assombrar os vivos, trazendo de volta tempos mal vividos, enredos que não se completaram, espectros que saem das sombras a fim de nos cobrar ações para que, afinal, possam repousar em paz, como na tragédia clássica de Hamlet, na bela leitura de Derrida. Espectros que nos rondam, quando os vivos não enterram bem seus mortos, e se investem desajeitados dos papéis que tão bem couberam neles em farsas que são pantomimas do que eles viveram, nas poderosas imagens de Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

Contra o pano de fundo desta deflação geológica e meticulosa do indivíduo, soberanias e das espécies, LaCapra, indignado, se posiciona contra a política de Donald Trump. Um exemplo expoente do pensamento que resiste à crítica e à autocrítica, Trump e os seus congêneres como Javier Milei na Argentina e outros são propagadores de uma política de soberania pomposa e narcisista que ignora tanto às lições da história bem como os desafios ambientais e planetários prementes que enfrentamos atualmente.

Impulsionado pela urgência de mobilizar uma resistência eficaz, LaCapra deixa de lado as sutilezas da academia e disciplinares, e move-se rapidamente entre argumentos divergentes para acelerar a transformação das humanidades num antropoceno planetário interdisciplinar. Ocasionalmente, esta abordagem é insuficiente: um envolvimento mais próximo com os estudos biológicos existentes teria enriquecido os relatos de LaCapra sobre a animalidade (que Norbert Elias tão bem evocou) e a lógica dos messianismos que nos rondam.

No entanto, a força do livro não reside na atenção ao intelectual as minúcias, mas em seu enquadramento incisivo de questões prementes e prescientes: como explicar a persistência tão forte em nossa cultura da difamação de outros seres? Como podemos usar insights de Freud, Bakhtin e Derrida sobre a individualidade para construir identidades que não estão enraizadas na violência? Tais questões exigem a colaboração planetária. A grande habilidade de LaCapra está em reviver os métodos de Freud, Bakhtin e Derrida, não como ferramentas para o divã ou para a academia, mas, ao permitir uma relação dialógica ao passado, como ferramentas para se construir um futuro.

Poucas leitoras e leitores discordarão de LaCapra que o cuidado, o rigor e a autocrítica são virtudes importantes em uma cultura como a nossa. Mas a questão é: como pode tal virtudes serem nutridas se a política e a mídia cultivarem hábitos que lhes são prejudiciais? Uma coisa é dizer que as hominídeas podem estimular o pensamento crítico, mas outra bem diferente é promover condições sob as quais as humanidades possam cumprir esta tarefa.

Talvez a resposta esteja nos tetos e na ação nos contextos – textos e contextos difíceis que exigem a plena compreensão das suas leitoras e leitores – pode nutrir hábitos interpretativos autocríticos. Se sim, a boa notícia é que as leitoras e leitores encontraram nesse último volume de LaCapra uma sugestão estimulante de como interagir cuidadosamente com os textos e contextos que questionam alguns dos modos dominantes de individualidade em nosso tempo.

 

20 de setembro de 2023

 



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 022 - ALERTA AOS NAVEGANTES!

Páramo

 

Pelo Setembro Amarelo

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Sempre foi assim ao longo da história, não deveria chamar a nossa atenção, há momentos e períodos em que as coisas estão melhores, em que se abrem esperanças e ilusões e outros em que se concentram catástrofes, conflitos e desespero como alerta o Prémio Nobel de Ciências Económicas Angus Deaton.

Nesses períodos parece que as coisas andam ao contrário e não há saída, o horizonte enche-se de nuvens escuras e as boas notícias escasseiam. O saudoso economista francês Daniel Cohen (1953-2023) chama o atual momento histórico de “a triste fase da globalização” do Homo numericus e o cientista político norte-americano Ronald Inglehart (1934-2021) o chama de “o tempo dos maus sentimentos”.

É verdade que a ciência e a tecnologia avançam cada vez mais rapidamente e os seus efeitos melhorariam a vida em geral. Nem a pobreza nem as desigualdades têm hoje as mesmas características de indignidade que havia no passado.

Só mentes muito obtusas ou velhas muito teimosas que confundem o bem-estar que a juventude gera com o bem-estar dos tempos em que eram jovens, podem dizer bem compreendido, as palavras do Padre Antônio Vieira (1608-1697), “as exéquias à esperança”.

Mas os avanços instrumentais da modernidade não garantem que o progresso seja linear e abranja todos os aspectos da vida e do funcionamento das sociedades. O escritor e ensaísta franco-libanês Amin Maalouf não se engana quando diz em O naufrágio das civilizações: podemos perguntar-nos se a nossa espécie não atingiu o limiar da incompetência moral, se ainda está a avançar, ou se acaba de iniciar um movimento regressivo que ameaça o que tantas gerações construíram.

É um pensamento difícil, mas não absurdo se levarmos em conta a lista de infortúnios e desvios perigosos que pairam sobre nós.

As más notícias superam as boas notícias, não só em termos de catástrofes naturais que as alterações climáticas geram cada vez mais, mas também nas catástrofes que ocorrem nos campos económico, social e político em todo o mundo.

Os Estados Unidos da América, ainda o país mais poderoso do mundo, mostram-nos o espetáculo de um Trump perturbado que aspira a recandidatura à Presidência. Claro, pode ser apenas um indivíduo perturbado que ameaça à democracia, mas é seguido por milhões de pessoas.

Na Europa, a amplitude das convicções democráticas é restrita e o número de soberanismos e nacionalismos xenófobos estão crescendo, onde os direitos sociais e os níveis de igualdade têm avançado durante décadas. É também na Europa onde a Ucrânia foi invadida como antigamente por uma potência com governo autoritário, a Rússia de Putin, que reivindica os espaços históricos do czarismo e da URSS. Como se estivéssemos na Idade Média, o atual czar pune o seu boiardo indisciplinado através do assassinato, não mais por terra, mas por via aérea.

Na Ásia, a velocidade de crescimento tende a diminuir, na China principalmente, e a Índia se posiciona como uma potência, em meio a um nacionalismo desenfreado e com muitas pessoas ainda em estado de grande precariedade. A Coreia do Sul continua a desenvolver-se desigualmente como ilustra sua cinematografia e teledramaturgia sob os mísseis da Coreia do Norte, que não consegue alimentar adequadamente a sua população, com a ostensiva excepção do seu “Líder Supremo”.

No Afeganistão, os talibãs continuam a atacar as suas mulheres, enquanto a pobreza as sufoca. No Oriente Médio, a tensão continua elevada, a democracia é quase inexistente e tornou-se turbulenta mesmo em Israel, a região está repleta de armas, desigualdades e autocracias.

Na África regressou-se à rotina dos golpes militares e nesta lógica competem as influências das potências externas, em consequência da pobreza e da repressão, famílias inteiras fogem em desespero após uma quimera muitas vezes mortal no Mediterrâneo.

A nossa região ibero-americana também vive um momento de possíveis retrocessos políticos. A institucionalidade democrática pode retroceder em muitos países. A qualidade da política está diminuindo e quase todos os indicadores econômicos e sociais estão nos limítrofes inferiores, enquanto os da criminalidade e da corrupção gozam de boa saúde.

Esta situação insere-se num enfraquecimento do multilateralismo, num duro litígio entre as grandes potências e no surgimento ou renascimento de acordos fragmentados e alternativos cujas aspirações, em vez de tenderem para a complementaridade, estão orientadas para a oposição.

É impossível não perceber que esta situação mundial é muito complexa para um país como o nosso, que exige um multilateralismo forte e uma economia global próspera que lhe permita perseguir o seu processo de desenvolvimento, diversificando a sua economia e aumentando o seu comércio externo.

Consequentemente, não podemos acrescentar a este contexto externo uma luta interna que atrapalhe o nosso processo de crescimento. Precisamos de reduzir os nossos níveis de conflito e aumentar a nossa capacidade de acordos políticos e sociais como indica a já tardia reforma ministerial, para recuperar a capacidade de avançar com prosperidade e na igualdade social, saindo simultaneamente da atual estagnação que se assemelha a um carrossel que gira e gira em torno do seu eixo sem avançar o tanto necessário, cheio de palavras bombásticas e de alegrias tênues.

O governo deve adquirir uma orientação clara, realista e concreta, não pode continuar a dar passos em direções opostas, isso só lhe permite sobreviver no dia a dia, mas não governar com projeções.

Para o bem do país, é necessário que todos mudem de atitude, aumentem a sua responsabilidade, controlem as suas emoções de identidade e a paixão pelas suas verdades que consideram únicas. Ou seja, que se sentem à mesa tentando encontrar acordos que possam constituir uma solução aceitável para todos, que nos permita sair do páramo, enfrentar os problemas mais agudos, como os da seguridade dos cidadãos, os mais estratégicos, como reformas que permitam o progresso social.

Não tenhamos dúvidas de que desta forma aumentaria o respeito dos cidadãos pela política, a nossa democracia seria fortalecida, o nosso bem-estar aumentaria e isso permitir-nos-ia uma melhor inserção internacional. Seríamos capazes de recuperar o nosso prestígio agora ferido e tirar partido dos nossos potenciais recursos naturais e dos nossos talentos, mesmo nestes tempos sombrios.

 

3 de setembro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - O LEGADO DO HOMEM NEANDERTAL

A boca e os genes

 

Marcio Junior[1]

Lavínia Miranda[2]


Para Catarina Milena.


Os nossos habitus, sejam alimentares ou não, possuem história e não é à toa que eles variam no tempo e no espaço, pois os habitus estão atrelados à história de uma configuração societal e sua complexidade. Como eles nem sempre foram como hoje o são, é razoável imaginar que compreender também as formas como comemos no passado ajudam a explicar, inclusive, quais elementos desses habitus afetaram e/ou afetam a nossa saúde e de que forma isso acontece. Pensemos, por exemplo, em patologias que afetam a saúde bucal: como mostrou Norbert Elias em seu O Processo Civilizador (1939), somente no seiscentos o garfo começou a ser utilizado por dada configuração; até então as refeições de todos eram feitas em pratos comuns e se mergulhava, quando havia, o pão e quase sempre os dedos nos humores de todo tipo. É, assim, interessante a hipótese de que a mudança de habitus alterou a maneira pela qual os nossos corpos ficavam expostos a diversas circunstâncias e a consequente importância da boca.

Porém, podemos notar que a boa compreensão de dadas patologias hoje demanda uma volta ainda maior no tempo. Os estudos sobre o sequenciamento genético hominidea de outrora, assim como o desenvolvimento de técnicas para que fosse possível fazê-lo com a menor contaminação possível do nosso material genético contemporâneo, deram ao sueco Svante Pääbo o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2022. Os Neandertais, cujos habitus alimentares eram decerto exigentes para a sua estrutura hoje chamada de orofacial, nos legaram material genético via acasalamento.

Este fenômeno específico de transmissão genética de uma espécie para outra, chamado de introgressão, nos legou vantagens e desvantagens, e dentre elas podemos citar a presença de genes neandertais em alguns homólogos dos chamados Toll Like Receptors (ou TLR), conjuntos de receptores proteicos transmembrânicos do nosso Sistema Imunológico presentes nas nossas células, que se ligam bioquimicamente à estruturas de antígenos, como vírus, bactérias e fungos, identificando-os e enviando sinais para que o corpo fique alerta e quiçá busque mecanismo de lidar com essas presenças. Como existem, entre os TLR, proteínas que ativam e inativam a resposta imunológica, uma desregulação dessa primeira abordagem de delineamento do que o organismo pode fazer pode levar a uma resposta exasperada e, consequentemente, o próprio resultado inflamatório que acontece para contingenciar face ao corpo que lida com a situação incomoda pode levar ao extremo a sua própria destruição, como ocorre com várias doenças periodontais mais recorrentes.

Assim, o estudo destes fenômenos também pela biologia molecular e pelo acolhimento tanto da antropologia histórica quanto da paleogenômica fornecem novos registros para a compreensão de que os habitus estão inscritos no tempo e sua compreensão deve ser transversal. A forma como comemos e cuidamos da boca é, ao mesmo tempo, genética, cultural e não só, e a forma pela qual podemos desenvolver novas terapias, intervenções e políticas públicas para a saúde bucal precisa levar em conta todos esses fatores.



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

[2] - Graduanda em Odontologia pela Faculdade de Tecnologia e Ciências da Bahia.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

SÉRIE ESTUDOS - LEMBRANÇAS SOBRE A DEMOCRACIA COMO CONQUISTA CONSTANTE


A vida de Alexis de Tocqueville 

Em memória de José Murilo de Carvalho


Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

O homem que compreendeu a democracia. A vida de Alexis de Tocqueville, de Olivier Zunz (Rio de Janeiro: Record, 2023).

 

Contratado, junto com Gustave de Beaumont, pelo governo francês para estudar o sistema penitenciário dos Estados Unidos da América, Alexis de Tocqueville, um jovem intelectual e político com raízes aristocratas, que não se aliava nem a monarquistas nem aos radicais, voltou para França em 1832 determinado a promover uma ideia que o movia: “a marcha irresistível da democracia”.

Um "mundo totalmente novo exige uma nova ciência política", declarou. Ele a forneceu em Democracia na América (1835 e 1840).

Em O homem que compreendeu a democracia. A vida de Alexis de Tocqueville, Olivier Zunz, professor emérito de História na Universidade da Virgínia e professor visitante no Collège de France e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, entre outros, editou vários outros livros dedicados a Tocqueville, nos fornece uma biografia muito bem-informada de Tocqueville, cuja compreensão da complexa dialética entre a liberdade e a igualdade permanece imensamente influente para o nosso bicentenário do nascimento do Brasil e alhures.

Zunz explica o que Tocqueville aprendeu — e o que não percebeu — durante sua viagem em 1831 pelos Estados Unidos da América. Na América, observou Tocqueville, a riqueza era distribuída de maneira muito mais igualitária; o respeito pela lei era generalizado. Uma convenção de livre comércio na Filadélfia deu-lhe a ideia de sua teoria das associações voluntárias. Com tantos cidadãos capazes de possuir terras, escreveu Tocqueville, "como alguém pode sequer imaginar uma revolução".

Dito isso, em uma visita a uma cidade fronteiriça habitada por franco-canadenses e indígenas, ele tomou consciência das diferenças étnicas e raciais das sociedades americanas.

Tocqueville não sabia que o Canal de Erie era financiado pelo governo; ele ignorou a industrialização e as fábricas de algodão em Lowell (Massachusetts). Ele parecia bem arredio ao renascimento do protestantismo evangélico (que ele condenou como uma forma anacrônica de fé). Ele teve dificuldade em compreender o significado da formação do sistema bipartidário.

Olivier Zunz. © Dan Addison/Universidade da Virgínia 

A análise de Zunz de Democracia na América ​​busca aproximá-lo da sabedoria do senso comum. As posições de Tocqueville, ele observa, muitas vezes são de difícil compreensão face as inconsistentes próprias ao seu endosso à democracia. Mas, escreve Zunz, que ele passou a apreciar o poder das conclusões de Tocqueville sobre liberdade, igualdade e democracia, "porque ele persiste em fazê-las apesar de suas dúvidas".

Zunz também fornece um relato esplêndido da carreira de Tocqueville como um político na França, durante a qual ele procurou ser ao mesmo tempo um patriota, um colonialista e um democrata, embora essas identidades não fossem coerentes. As datas, locais e pessoas da vida de Tocqueville estão todas lá, desde os pulmões fracos ao amor fervoroso até a persistente capacidade de fazer amigos e mantê-los.

Já se passaram mais de uma década desde a suntuosa biografia de Tocqueville escrita por Hugh Brogan aqui intitulada de Alexis de Tocqueville: O profeta da democracia e também publicada pela Record e, embora Zunz seja um dos principais estudiosos do assunto vivos hoje, A vida de Alexis de Tocqueville conta em grande parte analogamente essa história, como não poderia deixar de fazê-lo, como também o fez as nossas Tocquevilleanas exemplares de Marcelo Jasmin e Luiz Werneck Vianna. E essa história é bem apoiada por ampla documentação, com minúcias do que Tocqueville comeu em Boston até as maiores visões filosóficas de suas impressões sobre política e, como prometido, os perigos e o potencial da democracia, que ele testemunhou em primeira mão nos diferentes laboratórios dos oitocentos.

Crítico ferrenho da monarquia, Tocqueville relutava em apoiar seu fim após a Revolução de 1848. Assim que "passou o choque inicial", porém, ele decidiu participar do "histórico experimento republicano", esperando que isso acabasse por dar a cada indivíduo "a maior parcela possível de liberdade."

Amargamente desapontado quando Luís Napoleão voltou ao poder como deixa explicito no póstumo Lembranças de 1848: As jornadas revolucionárias em Paris, Tocqueville "reconciliou-se com a ideia de que sua verdadeira vocação era a de pensador". Ele viveu o suficiente para escrever O Antigo Regime e a Revolução (1856). Ao avançar nas páginas de A vida de Alexis de Tocqueville deixará leitoras e leitores com uma noção muito melhor do que Tocqueville pensou e simultaneamente de quem ele foi.

Tocqueville morreu em 1859, aos 53 anos, antes de completar o segundo volume, mas, conclui Zunz, depois de ter "direcionou sua ansiedade para uma força criativa e transferiu sua paixão pela liberdade para uma profunda e exigente valorização da democracia" (Zunz, 2023, p. 371).

E o que é isso tudo? De acordo com Zunz, é bastante simples. “A crença mais profunda de Tocqueville era que a democracia constitui uma poderosa, mais exigente, forma política poderosa, mas exigente” (Zunz, 2023, p. 17), escreve ele. “O que torna sua obra ainda relevante é que ele definiu a democracia como um ato de vontade de cada cidadão – um projeto constantemente necessitado de revitalização e da força proporcionada por instituições estáveis.”

“A democracia jamais pode ser algo dado como garantido” (Zunz, 2023, p. 17), conclui Zunz, um sentimento que brota da própria vida de Tocqueville, mas que, no entanto, parece diretamente direcionado ao nosso próprio momento do século XXI, quando tantas vezes parece que as únicas pessoas que não consideram a democracia como certa são as pessoas zelosamente tentando enterrá-la em uma cova sem identificação. Talvez o melhor resultado do livro de Zunz seja exatamente esse: conseguir que mais pessoas leiam Democracia na América como um título que descreve o mundo da democracia como um universo sempre a ser conquistado.

 

20 de agosto de 2023


[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

JOSÉ MURILO DE CARVALHO - IN MEMORIAN

Lembranças sobre José Murilo

Por Pablo Spinelli

 

É uma ironia da história saber que um cientista social que se debruçou sobre a Revolta da Vacina ter tido a sua vida e longa carreira eclipsada pelo coronavírus. E assim se foi José Murilo de Carvalho, intelectual de fala bem amineirada, com tom conciliatório típico das Gerais.

A obra clássica de José Murilo vem de longe, nos anos 1970 com uma parte de sua defesa de doutorado, A Construção da Ordem - a elite política imperial, publicada em 1980. O seu texto e enfoque acerca do estudo das elites que remontam o esquecido Gaetano Mosca (1858-1941). José Murilo exibiu de forma acurada a formação da elite imperial do país recém-nascido, as clivagens existentes nessa elite, a importância da formação profissional ou acadêmica e até a origem do nascimento dos legisladores mais importantes. A sua obra mostra que nem tudo pode ser resumido em "as elites" ou "classe exploradora do proletariado", chavões que para o autor seriam aberrações.

Interessante notar que somente por "A Construção da Ordem", José Murilo já seria obrigatório. Mas somente em 1988, no ano da Constituição, seria publicada a outra parte de sua tese, O teatro das sombras - a política imperial; onde o campo de análise consiste no cenário político do II Reinado, com o país consolidado na hegemonia tripartite da agroexportação-escravidão-latifúndio. A popularidade do autor se torna manifesta para fora dos muros acadêmicos com o livro Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi, publicado em 1987, no momento da Constituinte brasileira. O enfoque do livro mostrou o quanto de involução foi a República brasileira, cuja afirmação desse sistema resultou em exclusão da cidadania e autoritarismo, seja dos militares, seja dos latifundiários. Uma República que não foi República, esse é o tom do livro que evoca muito a concepção de Alexis de Tocqueville acerca dos efeitos da Revolução Francesa em seu país.

Não creio ser um equívoco que havia em José Murilo de Carvalho um traço aristocrático democrata que se assemelhava com a tradição de Joaquim Nabuco. Há ecos em seus livros sobre o que poderia ter sido feito ainda no Império se D. Pedro II fosse menos complacente com os escravocratas ou quiçá em um Terceiro Reinado. Como bom cientista social, Murilo sabia que não podia tratar do "se", mas seria interessante para futuros cientistas sociais compararem sua obra com a de Gilberto Freyre e o que há de nostalgia e reformismo nabuconiano em ambos.

Por fim, o Brasil perdeu um grande cientista social que perfilou com vários outros o quadro de uma intelligentsia carioca alocada no antigo e saudoso IUPERJ em Botafogo. Ali, perto da Casa de Rui Barbosa, José Murilo refletia sobre os efeitos nocivos do positivismo no seio militar e este, na construção da ordem (não) democrática tal como as incompletudes da cidadania nesse país que optou mais pelo viés da construção da ordem pela modernização e abriu mão da construção do progresso pelo moderno. Sou do tempo que era interessante na universidade divergir de José Murilo de Carvalho, chamá-lo de "monarquista" como se fosse um impropério, mas, ao mesmo tempo, deleitar-se com seus livros, aprender mais sobre o Brasil que não foi, o que poderia ter sido e o que ainda pode ser na formação da vida e das almas dos cidadãos desse país.

XXXXX

Para saber mais sobre o autor em nosso momento político sugerimos o livro abaixo.