A
FAVORITA ou “Sabe com quem está falando?
Por Pablo Spinelli”
Dedicado ao grande
mestre Ilmar R. de Mattos
Durante cerca de um século,
uma frase que foi criada e popularizada entre as elites do Império brasileiro
no II Reinado foi muito usada, a ponto, como se percebe pelo recorte temporal,
de chegar à República. Essa frase sintetizava um olhar sobre os dois partidos
do Império até 1870 (depois foi fundado o Partido Republicano): o Partido
Conservador e o Partido Liberal. Em cada um desses partidos havia um núcleo
dirigente que mantinha a hegemonia sobre os demais membros do partido (seria
bom, prezado leitor, saber que sempre houve, há e haverá disputas internas
dentro de um partido político, correntes diversas que são capazes de agredir
mais a si mesmas do que o adversário do outro campo, tal marca fez parte da
história do PCB, do MDB, do PT, da ARENA, do PSOL e, agora, o partido da
hegemonia do nosso atual governo federal, o PSL, reforça tal observação, como
no caso do labirinto que os filhos fazem ao General, este à Casa Civil, esta à
Câmara dos Deputados etc. etc.)
Voltemos à frase. “Não há
nada mais parecido com um Saquarema (núcleo dirigente dos conservadores) do que
um Luzia no poder”. Essa frase serviu para a genialidade de Oliveira Vianna
afirmar nas primeiras décadas da República que os partidos eram todos iguais,
tinham o mesmo plano de governo, que o partido da oposição fazia no poder a
mesma política daquele que acabara de sair. Dentro dessa visão, Oliveira Vianna
seduz seu leitor para a seguinte reflexão: para que partidos no Brasil se todos
são iguais e não representam a sociedade? Daí, um pulo para a criação da
ditadura do Estado Novo de Vargas em 1937.
Coube a Ilmar Rohloff de
Mattos escrever em sua monumental obra “O Tempo Saquarema” que as coisas não
eram assim, como afirma Oliveira Vianna. Além das nuances que essa frase
explicita, Mattos faz uma defesa da democracia ao se defender que por mais que
seja duro entender, os partidos não eram ou são iguais, podem ter polos
invertidos, pontos tangenciais, mas ao se afirmar uma igualdade se defende a
sua anulação.
Para que toda essa
introdução? Usamos essa frase para dizer que em política é capaz de fazermos a
política do “outro” sem percebermos. Não é importante saber quais são as
diferenças ou semelhanças dos atores políticos, mas quem tem o controle do
tempo, da direção, quem tem a hegemonia.
O filme A favorita, indicado para 10 Oscars, incluindo filme, atriz, atriz
coadjuvante (no caso, duas), edição, dentre outras indicações, é uma produção
que pensou em fazer uma coisa e acabou por dar como produto, outra. Esse é o
nosso entendimento. Mas antes de explicar nosso argumento, creio que o
espectador que vá ver ou rever a película tenha a atenção para a linguagem e o
roteiro do filme. Ele é um mosaico rico da cultura inglesa tanto na literatura
como no cinema. Vai do citado no filme Jonathan
Swift até Monty Python, como fica claro na corrida de gansos. Há por todo o
filme a influência de vários diretores e seus estilos. Salta à vista a presença
de Stanley Kubrick, especialmente quando usa luzes naturais para os interiores,
como Kubrick fez em Barry Lindon (1974).
A presença da loira fatal é uma homenagem ao fetiche de Hitchcock em seus
filmes. Ao privilegiar a perspectiva aristocrática seguiu a extraordinária
adaptação que Stephen Frears fez sobre um triângulo amorosa na Corte francesa
pré-revolucionária, em Ligações Perigosas (1987). A escolha pelo tom quase
farsesco, picaresco dialoga com algumas comédias de Shakespeare e termina com
uma cena cheia de coelhos que muito lembra a abertura e encerramento do filme Tudo que você sempre quis saber sobre sexo e
tinha medo de perguntar (1972), de Woody Allen, cujo primeiro episódio é na
corte medieval inglesa. Para os amantes da literatura ou do cinema
(especialmente os vinculados à “alma inglesa”) é um prato cheio.
Nos últimos anos, Hollywood
tem dado um tom sobre políticas afirmativas. Esse tom se tornou mais retumbante
após a surpreendente (para os moradores de Los Angeles, de Nova York, não para
os desempregados do “cinturão do aço” ou moradores do Meio-Oeste) vitória de
Trump. As cerimônias do Oscar, suas indicações, seus discursos, suas premiações
são o ápice do “Sim, nós queremos”. Começou pela salutar reivindicação da
presença negra nos filmes; passou pela equivalência salarial e cotas para
mulheres nas produções e, diante de um muro no caminho, a celebração do México
a partir dos diretores que foram premiados nos últimos 5 anos.
Assim, o filme A favorita
tem uma motivação que é um desejo do corpo feminino hollywoodiano há décadas:
bons personagens para mulheres. Em um filme onde os homens são acessórios,
afetados, agressivos, molestadores, fracos, quase invisíveis (tal qual as
camadas subalternas que fazem a roda girar) coube a um naipe invejável de
atrizes fazer o navio seguir seu rumo. Olívia Colman – uma atriz de 44 anos que
consegue transmitir um peso da idade maior que sua personagem exige – faz uma
Rainha Anne mimada, alienada, ranzinza, autoritária e ao final, vingativa, com
maestria. Uma personalidade que difere da outra rainha que interpreta, a atual
Rainha Elizabeth a série The Crown.
As duas oscarizadas Rachel Weisz e Emma Stone fariam o que a mediocridade da
mídia diz, uma “disputa pela atenção da Rainha” que daria sentido ao título do
filme.
Enquanto que Rachel Weisz
usa de artefatos, porte e presença mais masculinizada em sua personagem que –
em tese – seria manipuladora dos interesses da burguesia que abria espaço na
Inglaterra contra a aristocracia agrária que não queria sustentar uma guerra
que interessava financeiramente aos comerciantes e manufatureiros; Stone usa e
abusa dos seus olhos e expressões faciais para perceber como são as regras do
jogo a partir do momento que a Fortuna
(como diz Maquiavel) poderia lhe gerar uma fortuna se soubesse usar a virtú com a Rainha Anne. Eis aí um breve
resumo: o mundo do interesse egoístico. A Rainha seria o canal pelo qual as
aspirações da cortesã e da decadente-que-quer-voltar-à-Corte seriam cumpridos.
Diferente de Moulin Rouge (outra inspiração) onde os
personagens usavam de artimanhas para o bem comum, dentre eles, o amor, as
personagens de Weisz e Stone seriam aquilo que um ex-governador de nosso Estado
chamou de “partido da boquinha”. Uma quer a conservação do que tem. A outra, a
conquista do que poderia ter tido se não fosse pelas agruras que seu pai a
envolveu. Bem, aí voltamos ao ponto inicial. O filme era para ser de um tom
onde a mulher fosse o centro, as excepcionais atrizes duelam por conta do
protagonismo desejado pelos movimentos feministas mundo afora. Eis o nó górdio.
Sem fazer spoiler, pois em 20 minutos o que será
descrito é apresentado ao espectador, a Rainha Anne, após 17 frustrações
maternais por gestações interrompidas ou com filhos que não vingaram acaba por
ter como escape para suas dores emocionais e físicas o contato carnal com a
cortesã de Rachel Weisz. Diante dessa descoberta, Emma Stone corre atrás dos
seus interesses e disputa com valentia e amoralidade a cama da Rainha. O duelo
é de alcova. O que seria um problema. A Rainha, manipulada pelos desejos
carnais sobre uma guerra contra a França, acaba por se tornando exatamente
aquilo que os movimentos feministas não querem: a objetificação do corpo numa
completa ausência da política. Uma Rainha alienada, mimada, que cria coelhos
como filhos ou que se permite ao masoquismo permite a leitura de que a falta do
papel de ser mãe cria neuroses, paranoias e obsessões, como se afirmava nos
séculos XIX e XX. Os humores da monarca dependem da forma introdutória que as
duas personagens usam para criar a felicidade. Não há aqui espaço para um
terceiro vértice nesse triângulo (como é explícito no título).
Em um filme que se permitiu
uma leitura pop e contemporânea sobre um passado (como fez Moulin Rouge) é algo deveras conservador pensar como Highlander: só
pode haver uma, o que soa esquisito para um filme de pegada antenada com seu
tempo. Sua mensagem está a léguas de distância de um Bertolucci e Ettore Scola.
E o mais curioso: ao se propor que a Rainha é uma alucinada como a eternizada
por Lewis Carrol em Alice no país das maravilhas, acaba por reforçar na última cena
do filme o poder real, a soberania majestática que coloca de forma uma súdita
de joelhos de forma vil uma súdita num famoso sabe com quem está falando? (em pleno terreno anglo-saxão!!! Roberto
DaMatta deve ficar horrorizado com isso). Um filme que desabonaria a monarquia mostra ao
final quem tem o cetro nas mãos. Um filme que propôs o protagonismo feminino
acabou por repetir clichês machistas sobre a mulher. Um filme que quis ser
Luzia e acabou por ser Saquarema.