segunda-feira, 23 de setembro de 2024

SÉRIE ESTUDOS - CARNE DO MERCADO É GOVERNADA?


 Carne Governada

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]


Savater, Fernando. Carne Governada: De política, amor y deseo. Barcelona: Editorial Ariel, 201. 176 págs.

 

No Agosto Lilás de 2022 fiz uma breve resenha de um livro sem tradução em nossa língua vernácula da mexicana Cristina Rivera Garza intitulado El invencible verano de Liliana. Ciudad de México: Penguin Random House, 2021. 304 págs. Poucos meses depois, para nosso aprendizado coletivo, saiu a nossa tradução pela Autêntica Contemporânea.

Fiz a resenha por conta de um assunto medonho que ainda se encontra entre nós e que não conseguimos erradicar que é o feminicídio.

No início desse 2024, foi publicado o último livro do espanhol asturiano Fernando Savater chamado Carne Governada: De política, amor y deseo. É uma fruta deliciosa da árvore da sabedoria do “estilo tardio”.

“Estilo tardio” refere-se ao modo de escrever após uma vasta experiência de vida de autoras e autores notáveis, que deixam para trás as pretensões estilísticas da juventude, e escrevem buscando sua simplicidade essencial.

Um exemplo de estilo tardio é o fabuloso O informe de Brodie, onde o argentino Borges (1899-1986) diz que finalmente tenta o que sempre admirou como o sardo italiano Gramsci (1891-1937), o estilo dos contos simples do crioulo britânico Kipling (1865-1936).

Isto é o que acontece com Carne Governada, talvez o livro mais pessoal, iconoclasta, mais livre, mais tematicamente diverso, mais erótico, mais reflexivo, mais político e mais alegre em sua anarquia juvenil, moderada pela idade, que Savater já escreveu.

“Carne governada” é o nome de um prato asturiano. Refere-se à carne que o preparo e o tempo de cozimento amaciam a ponto de adquirir sua textura mais macia e o melhor de seu sabor. Hoje em dia é raro encontrar esse prato. Mas foi isso que a idade fez com Savater.

Se você acha que estou andando por Savater para evitar escrever sobre o nosso momento eleitoral, você está errado. Faço isso para chegar a uma das passagens de Carne Governada sobre o que está acontecendo no Brasil e em grande parte do planeta.

Rapidamente um trecho sequenciado do Capítulo 4:

Porque é que a esquerda mantém uma reputação tão boa, apesar dos crueis fracassos históricos que sofreu onde quer que tenha prevalecido? Por causa de uma visão tendenciosa que estabeleceu a norma de julgar a esquerda pelas suas intenções e a direita pelos seus resultados. Se proclamamos que queremos acabar com a miséria e a desigualdade, só podemos aplaudir estes objetivos generosos. Que diferença das propostas da direita, que falam da prosperidade alcançada através do trabalho remunerado, da propriedade privada, de uma ordem social baseada no cumprimento das leis! É verdade que os belos planos da esquerda nunca foram concretizados (...) Mas qual é a culpa do ideal (...)? O que é excelente continua a ser excelente mesmo que aqueles que se dedicam a pregá-lo não tenham ideia de como consegui-lo ou, pior ainda, consigam com as suas medidas políticas o contrário daquilo que perseguem.

Parece familiar para você?

 

22 de setembro de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

VAMOS DIALOGAR - LEGISLATIVO MUNICPAL CARIOCA

Por que votar em César Maia?

 

Tempos estranhos são esses em que a Democracia se encontra desafiada e um gesto de violência para ilusoriamente calar o discurso do ódio ganha aplausos de segmentos da sociedade que parece que esqueceram como foi que nossa cultura política superou a Ditadura Militar.

As “ervas daninhas” se espalham pelos partidos políticos que se veem omissos para dizer que é o momento de se fazer prevalecer o debate dos problemas da sociedade. A fragmentação em inúmeras identidades criam bancadas temáticas e parlamentares do “eu sozinho”. Então, as eleições dos legislativos municipais não devem ser mais um momento de aprofundar a renovação de um pesadelo da antipolítica.

No Rio de Janeiro, devemos contribuir para que a serenidade e a moderação retomem as margens do rio da política. Naquilo que seja um bem republicano e democrático contra muitos que fazem da Câmara Municipal um simples “trampolim” para seus projetos pessoais. O desafio é grande diante da vã ilusão que a renovação seria virar as costas para aqueles que trazem sua experiência no legado do diálogo.

Na verdade, precisamos de que tenhamos boas referências para que a política seja uma prática que volte a encantar os atos de ação de uma juventude cada vez mais acuada com os problemas da crise de civilidade que estamos a testemunhar. Portanto, as vozes com campo democrático desde os conservadores até os setores democráticos da esquerda devem buscar um compromisso para referendar um nome que simbolize esse legado.

Diante das variadas opções a disposição, defendemos que esse é o momento de referendar o nome de CÉSAR MAIA como a melhor opção para atravessar esse caminho árido de ideias. Mais do que seu passado, CÉSAR MAIA é ainda um nome que tem muito que contribuir para garantir o equilíbrio num legislativo que precisa renovar sem se deixar contagiar pelos perigos que estão ao nosso redor. O voto em CÉSAR MAIA é um grito para que a nossa Democracia possa continuar a respirar. Em tempos sombrios, grandes votações podem mudar o futuro.

Façamos parte dessa História!!!

 

MOVIMENTO DE UNIDADE DOS DEMOCRATAS DA ESQUERDA

MUDE

 

sábado, 14 de setembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 060 - GRANDE ELEIÇÃO: VEREDAS

A cultura política mineira e as eleições municipais de 2024

 

Pacelli Henrique Silva Lopes.

 

Há cem anos, a presidência do Brasil era exercida pelo mineiro Arthur da Silva Bernardes, que se destacou na renovação do Partido Republicano Mineiro na sua segunda geração. Bernardes enfrentou intensas batalhas políticas com grupos rivais dentro de seu próprio partido.

Na época, a bancada mineira na câmara federal era conhecida como carneirada, por votar em bloco, tinha fortes conflitos no seu seio. Os grupos políticos eram obrigados a negociar acordos que envolviam as candidaturas nos níveis municipais, estaduais e federais.

As fontes históricas da Primeira República mostram que adversários de uma mesma localidade chegaram a acordos várias vezes. Esses pactos contemplavam candidaturas municipais e estaduais, evitando assim os conflitos políticos.

Hoje em pleno 2024, vemos a ausência do vivere civile. A ausência de polarização política ilustra a força do nosso Riobaldo de Guimarães Rosa ao dizer que “uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente – dá susto de saber – nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza…”[1]

É neste mundo concreto do personagem que vemos as nuvens reais e densas de fumaça fruto das queimadas que assolam nosso país.

Em Contagem e no Rio de Janeiro vemos candidaturas, cada uma à sua maneira, com propostas palpáveis, pautadas no centro político democrático, com diálogo com o mundo evangélico.

A prefeita de Contagem, Marília Campos (PT), conta com uma quantidade significativa de aprovação do seu primeiro mandato, acima de 70%, um indicativo de que vencerá no primeiro turno. Essa bem poderia ser a de Dirceu, já compreendeu que suas lutas passam pelo mundo de Riobaldo, e que assim como ele que esteve com os conjuradores, precisará se ater à construção de uma política de distribuição fiscal de republicana de novo tipo compatível com a grave crise das Minas Gerais, uma vez que, a atual em e breve encontrará seu fim via STF e o desiderato da reforma tributária.

Em cidades como Juiz de Fora e Muriaé, Margarida Salomão (PT) e Marcos Guarino (PSB), podem seguir o bom exemplo de Contagem e fazer uma campanha benfazeja, para onde seus opositores não constroem alternativas viáveis. Entretanto, na experiência de Juiz de Fora, se reeleita a prefeita terá que fazer aggiornamentos.

Parafraseando Tancredo Neves: “Só há pátria com democracia.” E em ambas é necessária a negociação política. Aos poucos, a realidade corrige o curso de todos distinguindo entre o útil e o mal compreendido no dizer de Tocqueville,

Para isso, será necessário não perdermos mais oportunidades de fortalecer a Frente Democrática vitoriosa em 2022, o que ficou evidente nas negociações que deram origem às chapas para concorrerem à prefeitura de Belo Horizonte.

Teremos uma nova chance no segundo turno. Isso ocorre porque os belo-horizontinos estão rejeitando os dois candidatos das fantasiosas narrativas alienígenas a Riobaldo. Assim, uma nova rodada de negociação se abrirá em breve. Tem-se algo que o fiel da balança pode nos ensinar é que as disputas políticas quando praticadas dentro das regras republicanas permitem que os adversários de ontem, sejam os aliados de hoje. Para isso, é necessário que a linha civilizatória seja traçada.

Portanto, nossa população anseia por cidadania, mesmo se sentindo desorientada em um mundo sem explicação histórica. Até aqui a atual campanha municipal tem deixado claro a preferência do eleitor por uma prefeitura colada nos seus municípios e munícipes que sejam capazes de se apresentar como exemplares cuidadores da saúde, educação e mobilidade urbana.

E para enfrentar o vazio populista, nossos líderes exemplares para ensinar a cidadania que zelam pelo povo significa garantir acesso à esses serviços, o que perpassa por fortalecer a cultura política democrática mineira. Em um país que se move pela emoção e não somente pela razão, só conseguiremos esses feitos se tocarmos a alma da mineiridade, tornando nossos municípios garantidores do bem-estar social.



[1] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Editora Companhia das Letras, 2019. P.08.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 059 - DECIFRANDO O FUTURO DO PRETÉRITO MUNDIAL

Ainda estamos aqui

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Otto von Bismarck, o chanceler de ferro da Prússia que unificou os estados alemães no século XIX, tinha um carácter forte que se refletia na expressão dura do seu rosto, mas ao mesmo tempo possuía grande pragmatismo, algum cinismo e sentido de humor.

Christopher M. Clark confirma o personagem como o criador de inúmeras imagens linguísticas e uma delas é a que atribui aos EUA o seguinte: “A graça de Deus tem um lugar especial em seu coração para proteger os bêbados, os loucos e os Estados Unidos da América”.

A despeito de tudo, pode-se dizer que alguma razão há, porque à medida que se aproximava a próxima eleição presidencial em novembro, que os anos alcançaram o mandatário Joe Biden, que, enfraquecido pelo peso da idade, tomado por lapsos de toda sorte, parecia incapaz de encarnar a esperança no futuro, apesar do exercício quase findo de uma boa presidência, com mais virtudes do que erros, com decência e dignidade. Trump, até então seu adversário que nada tem de um lírio, que comete erros não forçados com uma alta frequência (na verdade não se sabe se são produto da idade ou da sua ignorância), parecia mais forte e vigoroso, brincava de gato e rato com Biden, sem piedade, com insultos e sarcasmos, usando apelidos infantis, como destacou Obama, e desfilava seguro da sua vitória, acentuando com desdém a sua mensagem reacionária, ameaçadora e exclusiva.

Mas um acontecimento mudou tudo: a desistência de Biden à nomeação democrata e o empoderamento quase instantâneo de uma mulher que demonstrou uma capacidade notável, Kamala Harris. Em poucos dias transformou-se numa esperança no futuro, com inteligência e graça e com uma firmeza civilizada que abriu uma ilusão não só para os EUA, mas para todos os democratas do mundo que enfrentam com angústia o futuro da um mundo turbulento e inseguro, perigoso, com duas guerras em curso, nas quais se fortalecem posições autoritárias e violentas.

O perigo de que um personagem como Trump, que de fato mostrou o seu desprezo pela alternância democrática, volte a liderar a principal potência mundial não está, no entanto, evitado. Vivemos tempos voláteis, de mudanças aceleradas, em que muitos setores sociais se percebem, com razão, como excluídos e florescem os demagogos e as suas promessas simplistas como acontece também nas nossas eleições municipais. As corridas eleitorais são estreitas e difíceis.

Alexis de Tocqueville, o grande analista francês do alvorecer dos EUA, destacou que “é mais fácil para o mundo aceitar uma simples mentira do que uma verdade complexa”.

Mas isto não é inevitável como parecia há apenas algumas semanas. Os números mudaram, as frases bélicas foram atenuadas e renasceu o entusiasmo de quem não insulta, raciocina e não considera o adversário um inimigo.

O sorriso largo de Kamala e as suas propostas destinadas a combinar mais liberdade, mais pluralismo e mais igualdade iluminaram uma perspectiva sombria para a democracia. A diferença entre as vozes racionais e humanistas que os rodeiam e a face taciturna de um messianismo brutal apresentado por Trump e pelos seus seguidores é enorme. Não está totalmente claro se ele mudará a sua estratégia eleitoral, mas não lhe será fácil encarnar uma personagem com fins intelectuais mais refinados.

Os resultados dessas eleições não serão estranhos ao nosso futuro.

Vivemos tempos difíceis, com um grande abismo entre os avanços científicos e tecnológicos no mundo instrumental e a capacidade de convivência pacífica que gere uma humanidade melhor e um planeta sustentável e civilizado no mundo normativo.

Nem Zygmunt Bauman se enganou quando falou de tempos líquidos, nem Ulrich Beck quando falou da sociedade de risco, só que na atual desordem geopolítica a liquidez, a volatilidade, a desigualdade e o risco tornam-se cada vez mais difíceis de gerir. A atual fragmentação económica torna o mundo mais inóspito, as diferenças mais irredutíveis, a violência maior e torna-se cada vez mais difícil conviver.


A política e especialmente o sistema político democrático, que recordemos mais uma vez, não é majoritário no mundo, exige cada vez mais esforço para que os seus valores sobrevivam e se adaptem aos novos desafios que mudarão radicalmente o nosso modo de vida.

Se isto não for alcançado, a tentação autoritária crescerá, os sujeitos políticos tenderão a desaparecer e as identidades fechadas, os fanatismos e finalmente as guerras florescerão. A coexistência baseada numa démarche civilizacional com valores partilhados será restringida.

Já temos Scrooge’s de todas as cores no poder, não precisamos de mais Putins, mais Netanyahus, mais Khameneies, mais Orbán, mais Erdogans, mais Maduros, mais Bukeles ou mais Ortegas, só para citar alguns.

Neste contexto, é muito importante que no Brasil não percamos uma visão realista e ponderada do que avançamos e alcançamos como país, bem como dos problemas e desafios que enfrentamos, evitando percepções simplistas ou fanáticas e ideias cruas.

Para enfrentar os problemas e desafios de hoje e de amanhã, todos precisamos uns dos outros. Há mais de dez anos cometemos demasiados erros e enganos, o que nos levou à estagnação. Só a Frente Democrática nos impediu de nos afundarmos numa segunda mediocridade em 2022.

Precisamos seguir o caminho de agora significativamente e urgentemente combater eficazmente o crime organizado e globalizado, fortalecer a nossa democracia através de um adversário construtivo, que combina com o debate e a crítica bem como uma procura sincera de acordos. Só assim o Brasil seguirá o caminho que o levou ao G8, G20 e a COP30.

Não são tempos de mesquinhez e de brigas, esperamos que todos os partidos de orientação democrática, sejam de esquerda, de centro ou de direita, para além da competição eleitoral, compreendam que um desacordo infundado permanente e o mau humor degradam a vida democrática e só favorecem, como bem sabemos, a cultura autocrática de vários matizes.

 

9 de setembro de 2024


[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.

domingo, 8 de setembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 058 - DECIFRANDO O PABLO SEM KARNAL

Enquadramentos sobre as eleições em São Paulo

Vagner Gomes de Souza[1]

 

Os estudiosos do pensamento político brasileiro ainda tem muito que contribuir nas análises do cenário eleitoral municipal em 2024 ao revisitarem as considerações do saudoso professor Luiz Werneck Vianna no ensaio “Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos”[2]. Mais do que referendar uma polarização entre dois campos interpretativos, o autor demonstra como melhor interpretar nosso país poderia nos auxiliar no desafio da previsão em política. Segundo ele,

“Decerto que nos originamos de uma espécie peculiar de Ocidente, a chamada ‘opção ibérica’, como analisou Morse em seu fecundo O espelho de Próspero, a carga de pragas, segundo os liberais, que nos teria interditado o caminho progressista e libertário da região ao norte do nosso continente. Filhos diletos do capitalismo mercantil, não fomos postos no mundo por uma história sem intenções. Nas palavras da forte ensaística de Angel Rama, aqui o ideal precedeu o material; o signo, as coisas; o traçado geométrico do plano, as nossas cidades; e a vontade política de explorar, o sistema produtivo.”[3]

A denúncia da persistência da herança do iberismo não é uma novidade na história política brasileira e muitos observaram esses ventos nas origens do Partido dos Trabalhadores nos anos 80 em que seu “sindicalismo de resultados” que maximizava os ganhos econômicos dos trabalhadores as margens de uma aceitação da institucionalidade política, denunciada como continuidade do “getulismo”, permitiu se embrenhar nas periferias das entidades orgânicas de muitas capitais. A materialidade da vida real acelerada pelos postulados do liberalismo anglo-saxão.

Em especial, São Paulo, aonde em 1988 o Partido dos Trabalhadores ascendeu ao poder pela via eleitoral com a eleição de Luiza Erundina, passou por diversas mutações desse perfil “americanista” até chegar a sua versão “sem freios” na campanha de Pablo Marçal. No mundo das ideias e considerações da política as “moedas sociais” para promover iniciativas empreendedoras fizeram a fermentação dessas forças extremadas à direita. Portanto, as linhas interpretativas sobre as eleições municipais em São Paulo pelo viés da validação de uma polarização entre um suposto “bolsonarismo” versus o suposto “lulismo” caem no vazio diante do reconhecimento dessa emergência do elo subalterno do “americanismo”.

Se o pressuposto de Gramsci de que o americanismo em política seria o ponto de formação do fascismo, as nossas considerações sobre as próximas eleições em São Paulo nos permitem recordar que os valores do mercado aflingem os eleitores conservadores uma vez que testemunham nele a desagregação de seu reconhecimento na ordem social vigente. As narrativas por vias de uma identidade de periferia muito mais alimentou esse “moinho satânico” que as pesquisas eleitorais anunciam a cada dia. O culto da personalidade nos apelos de uma fantasiosa “nova classe média” por uma década nos primórdios desse século nos levou a esse cenário que favorecerá quem tiver menos rejeição entre os eleitores conservadores, mas desejosos de programas sociais.

As matrizes eleitorais que elegeram Jânio Quadros, Paulo Maluf e Celso Pitta fazem parte de um “campo conservador” do contrapeso do iberismo. Seu apelo centralizador e autoritário não permite sua fácil captura pelas manifestações “anarco-capitalistas” desse salvacionismo individualista presente no apelo da candidatura de Pablo Marçal. Lembremos que o Maluf lançou um programa de habitação popular, o Cingapura, e o Leve Leite foi sua contribuição pré-histórica ao “Fome Zero” entre os paulistas. O mito da polarização do eleitorado empurra esse eleitorado para um bloco político distante da Frente Democrática que dialoga com os setores conservadores do campo democrático. Consequentemente, as movimentações das placas tectônicas nos eleitores mais pobres sinalizadas na recente pesquisa do DATAFOLHA (05/09) sugerem que a face popular do suposto “lulismo” reeditará o resultado 2022 pela via do voto diante da “cegueira” dos dirigentes políticos do campo da esquerda.



[1] Doutorando do PPGCP-UNIRIO.

[2] O ensaio se encontra em Vianna, Luiz Werneck – A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Revan. Rio de Janeiro. 1997. Livro que mereceria uma justa homenagem quando chegar aos 30 anos de lançamento.

[3] Idem, pp. 125-126.

domingo, 1 de setembro de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 057 - LIÇÕES DOS INGLESES

No começo da “revolução dos telhados” do Partido Trabalhista no Reino Unido

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

A alternância no poder é uma parte essencial da democracia, quatorze anos de governo pode ser um tempo muito longo e nem sempre é necessariamente conveniente. Neste sentido, a vitória do Partido Trabalhista (The Labour Party) nas eleições no Reino Unido foi recebida como uma boa notícia para os seus habitantes. Uma mudança de governo reafirma a conveniência de manter controles e equilíbrios no poder, para que este seja sujeito ao escrutínio público de tempos em tempos. É muito provável que numa democracia representativa coexistam partidos liberais, que promovem a liberdade como eixo das suas políticas, a par de outros, de carácter social-democrata, que lutam por maiores graus de igualdade. O fato de ambos poderem alternar no governo, sem ameaçar a civilidade, garante a representação dos diversos interesses e opiniões existentes. Introduz diversas perspectivas para enfrentar os problemas públicos e permite a competição entre forças políticas e com ela mais inovação em ideias e estratégias para enfrentar os problemas. Além disso, é importante que os eleitores possam expressar o seu descontentamento com o partido no governo e é por isso que, depois de vários erros cometidos pelo Partido Conservador (Conservative and Unionist Party) e da sua atual divisão e confusão, a chegada de Sir Keir Starmer ao poder é positiva.

Ora, isto só foi possível em virtude do aggiornamento que o novo Primeiro-Ministro introduziu no Partido Trabalhista, reforçando a sua matriz social-democrata. Ao tomar posse no dia 5 de julho próximo passado, Starmer optou por enfatizar acima de tudo a sua andata, e explicou: "Não importa quão ferozes sejam as tempestades da história, uma das grandes forças desta nação sempre foi nossa capacidade de navegar para águas mais calmas. E, no entanto, isso depende dos políticos, particularmente aqueles que defendem a estabilidade e a moderação como eu, reconhecendo quando devemos mudar de curso" e sinalizou “Se você votou no Partido Trabalhista ontem… Assumiremos a responsabilidade de sua confiança enquanto reconstruímos nosso país. Mas quer você tenha votado no Partido Trabalhista ou não… Na verdade - especialmente se você não... Eu digo a você, diretamente… Meu governo servirá a vocês. A política pode ser uma força para o bem - nós mostraremos isso. E é assim que governaremos.” O seu lema foi “Primeiro o país, depois o partido”.

Uma análise da votação permitiu-nos aferir o clima da opinião pública que prevalecia no país e assim é possível afirmar que há um singelo processo civilizatório em curso da população e que, sem esta sintonia com essa transformação, o Partido Trabalhista não teria vencido as eleições.

As razões que explicam a mudança de governo são, então, primeiro, o novíssimo ritorno trabalhista e especialmente do próprio Starmer; o declínio dos partidos nacionalistas escoceses que fortaleceram o voto trabalhista; a divisão da direita com o surgimento do novo partido reformista e o tédio com o partido que, depois de 14 anos e vários erros. Mas isto não significa uma hegemonia, uma adesão ideológica, mas um voto de confiança, que aposta que o Primeiro-Ministro Keir Starmer possa ser capaz de cumprir o seu compromisso histórico anunciado e iniciado com um grande alívio e uma mudança de humor.

O grande desafio para o Primeiro-Ministro segue sendo que a sua identidade democrática se enquadra nas hodiernas tendências reformistas da esquerda sem jamais deixar de reforçar a vocação democrática do centro e da direita planetária e definir em novos termos o que significa ser esquerda no século atual, e tudo indica que a revolução dos telhados” aponta para esse sentido.

 

28 de agosto de 2024

[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.