A
Argentina no Divã
Dedicado ao
trabalho de Edward Said e Amós Oz
Por Pablo
Spinelli
Torna-se raro nos dias
atuais encontrarmos uma produção escrita de forma leve para temas complexos e
do mundo das coisas reais. É assim que lemos o livro ¿QUE PASA, ARGENTINA?: História, política, manias e paixões dos nossos
hermanos, Editora Globo, 2023, da jornalista Janaína Figueiredo.
Como destaca a autora,
os brasileiros acham que conhecem a Argentina tal como supõem que sabem falar
espanhol. Ledo engano. O prefaciador, o embaixador Marcos Azambuja, tece loas à
grandeza do país, seus recursos naturais, o nível educacional e cultural do
povo, um país com cinco Nobel, dois Oscar, logo, a pergunta: por que a
Argentina não deu certo? A capa com figuras míticas do país em plena desordem é
uma pista.
O livro vai tratar dos
problemas, das manias, dos acertos, dos descaminhos argentinos pelo olhar de
uma pessoa que desde a infância convive no país, tem laços familiares e de
profunda paixão com a Argentina, mas que não evita um olhar distanciado e
crítico numa obra de uma filha apaixonada pelo pai e seu trabalho, o grande
jornalista Newton Carlos. O objeto do livro é consequência da importância desse
país que nos faz fronteira, carregado de tradições em comum – com adaptações
locais – especialmente, no sul brasileiro, nosso terceiro parceiro comercial.
Como o livro explicita, o que acontece em um país, reverbera no outro.
Ao olhar para a
Argentina, o Brasil também se vê. Somos filhos do Iberismo que nos fundou a
partir do herdeiro da Coroa Portuguesa. No caso argentino, há um Estado marcado
por conflitos sangrentos entre unitaristas e federalistas, incessantes guerras
civis num processo que se pacificou a partir da intervenção brasileira na
região. O americanismo argentino foi duro, a discussão federalista muito
difícil e custou muito sangue dos povos nativos, em especial da região da Patagônia,
cristalizando um racismo bivalente que atribui à mestiça cantora Mercedes Sosa
o título de “la negra”.
A autora buscou em
entrevistas com acadêmicos e representantes de governos diversos explicações
para o país. Um país que é rico em grãos, carnes, gás e lítio e que convive com
hiperinflação de décadas, calotes, desconfiança com o sistema bancário (similar
ao que tivemos no Plano Collor), falta de créditos internos e muita, muita
dependência de dólares combinada a uma política protecionista que subsidiou um
parque industrial que está anacrônico e produtores rurais que preferem os
dólares do mercado externo com o desabastecimento do mercado interno.
A autora nos permite um
paralelo entre as transições democráticas em cada país. Generais foram julgados
em 1985 no governo da transição de Raul Alfonsín, sendo que o mesmo presidente,
pressionado, fez uma ampla lei que impossibilitou julgamentos posteriores; além
disso, o nosso processo de transição não teve uma Guerra das Malvinas (evocada
no filme “Um conto chinês”) que solapou a imagem dos militares com um banho de
sangue argentino. Eis a pergunta: a falta de guerras civis sangrentas, uma
quase anomia, uma guerra internacional com uma potência europeia (que levou a
Argentina para uma derrota política, econômica e moral), faz da nossa história
– a da ação, reação e transação; da revolução passiva – uma história menor e
envergonhada? É bom lembrar que enquanto o General Videla estava no banco dos
réus, no nosso cangote estava o General Leônidas Pires Gonçalves[1].
O livro não se furtou
de falar de grandes problemas argentinos contemporâneos – o desgaste do peronismo
(é uma bela introdução para entendermos que o peronismo tem muito mais a ver
com uma igreja multifacetária do que com uma ideologia); o cansaço da sociedade
com os partidos políticos; a perda de jovens para fora do país ou para as redes
de criminalidade que crescem no país; a desvalorização da educação que trouxe a
perda da memória do terrível legado que a ditadura militar (1976-1983) trouxe
para os argentinos. Tal conjuntura leva a jovens e “descamisados”, termo
eternizado pelo mito Evita Perón (que jamais disse “não chores por mim,
Argentina”) a acreditar em uma figura que mistura vulgaridade, ressentimento e
messianismo que é Javier Milei.
Milei é a encarnação da
antipolítica, inspiração para o pastor presidente da série “Vosso Reino”,
segundo a roteirista; o ataque tresloucado à “casta política”, a mesma que quer
participar. Pelo livro de Janaína, vemos um país que tem seus aeroportos
ocupados por desabrigados (pág. 35), cena impensável há três décadas. Milei é
um fenômeno catapultado pelas redes sociais e que encontra força nos grupos da
periferia da Grande Buenos Aires que passa a ser “contra tudo o que está aí”, e
da elite econômica que, paradoxalmente, quer a dolarização de um país que já é
dolarizado. A autora resgata que não é algo inédito na história do país quando
destaca o que foi o Governo Menem, o peronismo mais à direita e de perfil
neoliberal que vigorou naquele país. O livro traz à memória o menemismo e seus
efeitos danosos para a Argentina.
O retrato de um país
que vive no divã por conta da obsessão por terapia acaba por dizer que seu povo
entende como de sua responsabilidade a cena contemporânea. As escolhas
subjetivas são importantes, mas não respondem pelo cenário econômico e social
argentino, pois lá como cá, não enfrentou a questão agrária e o Estado optou
por assistencialismo ao trabalho, flertou com o fascismo antes, durante e após
a guerra – com a criação do Dia da Lealdade Peronista - um típico labirinto de
Jorge Luís Borges.
Ao mesmo tempo, após
lermos sobre Maradona, Evita, Perón, Cristina, Néstor, Darín, Cavallo, Messi
(que se recusou a abraçar Macri), cabe ao Brasil responder a uma pergunta:
“como vamos ajudar a Argentina a passar pelo olho do furacão?”. O livro não
explicita, mas há um norte. Esse sendero está na construção de uma Frente
Democrática (como fizemos no calor da hora) com um programa de governo (que não
tivemos) que inclua a juventude (que abdicamos, mas há uma Secretaria Nacional
da Juventude a nos sorrir por aqui) e com uma pitada inglesa cuja presença está
nos nomes dos times de futebol: “nada lhes prometo, a não ser sangue, suor e
lágrimas”. Para o país do tango, nada como dançar sobre esse drama e dar um
drible desconcertante na extrema-direita, nem que se ganhe por una cabeza, como nos lembra a canção feita por um argentino com
um brasileiro.
[1]
O general Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015) foi nomeado Ministro do Exército
pelo presidente eleito Tancredo Neves. Com a morte de Tancredo, foi quem
garantiu a posse de seu vice, José Sarney, contrapondo-se ao que desejavam
certos setores do exército, que pretendiam dar posse ao Presidente da Câmara
dos Deputados, Ulysses Guimarães. Sua fala famosa foi: "Quem assume é o
Sarney". O senador do PMDB, Pedro Simon perguntara a Ulysses porque
aceitara tão rapidamente a tese de Leônidas. O Sarney chega aqui ao lado do seu
jurista. Esse jurista é o ministro do Exército. Se eu não aceito a tese do
jurista, a crise estava armada’
2 comentários:
Texto leve e profundo. Recomendo a leitura, meditação e compartilhamento.
Muito bom texto!
Postar um comentário