domingo, 22 de dezembro de 2013

DEBATENDO - As Ruas e a Democracia

  Marco Aurélio Nogueira, interprete da realidade brasileira contemporânea
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

Boa noite a todos. Coube a mim, a pedido do nosso anfitrião o professor Gaudêncio Frigotto, a tarefa de apresentar a vocês o professor Marco Aurélio Nogueira, diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Não é trivial falar dele para mim. Eu conheci o Marco nas páginas de um jornal que se chamava Voz da Unidade. Era um jornal comunista, ligado ao Partido Comunista (PCB) e que disputou a sua direção por ocasião de seu Sétimo Congresso.
Quando da morte de um grande amigo de sua geração, o saudoso Gildo Marçal Brandão (1949-2010)[2], dirigente daquele periódico comunista de 1980 a 1981, o Marco (que também é de 1949) talvez tenha escrito os textos que mais revelam de si mesmo e estão disponíveis tanto na revista Lua Nova do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) como na Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS).


[1] Ricardo José de Azevedo Marinho é Bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e Doutor em Ciências Sociais pelo CPDA da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). É Assessor da Presidência da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) e Professor da Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO).
[2] Nogueira, Marco Aurélio. Gildo Marçal Bezerra Brandão (1949-2010) no coração da grande política. Revista brasileira de Ciências Sociais, Fevereiro, 2010, vol.25, nº 72, p.5-7.

 

Numa daquelas publicações Marco dirá que “as gerações nos ajudam a desvendar a vida.” Na sequência afirma que

“Gerações intelectuais são feitas de amizades e companheirismo, mas não só. São feitas também de instituições e pontos de referência, simbólicos e materiais. Por essa via, trazem consigo rusgas, atritos, disputas, às vezes dilacerantes. Amizades podem até se desfazer, mas as gerações seguem em frente, como se protegidas por uma rede oculta de pequenas e grandes cumplicidades que operam no subterrâneo, ligando as agregações e cauterizando as feridas abertas pelos choques e golpes da vida.

Gerações intelectuais não são comunidades amorfas, desfibradas, insossas. São comunidades imperfeitas, forjadas no fogo. São internamente diferenciadas, múltiplas e plurais, no sentido de que, nelas, nem todas as luzes brilham ao mesmo tempo ou com a mesma intensidade. De algum modo, os representantes de uma geração dividem entre si o trabalho que estão fadados a fazer. Deixam o ar de sua graça, por isso, tanto pelo que é pensado e realizado por um ou outro de seus membros mais destacados, quanto pelo produto derivado do esforço menos perceptível do conjunto.”
 
 Gildo Marçal Brandão
 
Nessa elegante sociologia dos intelectuais ele revela o amigo e se revela.
“A morte abrupta, precoce e repentina de Gildo Marçal Bezerra Brandão, ocorrida em 15 de fevereiro de 2010, abalou ao menos uma das gerações intelectuais que se lançaram no universo das ideias e da política no início da década de 1970, no Brasil. Tenho orgulho de pertencer a ela e de ter podido trilhar um longo trecho de estrada com ele. Conhecemo-nos em 1973, praticamente no mesmo momento inaugural: o início de uma carreira acadêmica, a descoberta do jornalismo, o encontro com a política, a formação da identidade ideológica e das preferências intelectuais. Nossos símbolos e pontos de referência logo se tornaram comuns: o marxismo, a esquerda, Lukács, Gramsci, Visconti, a USP, a Escola de Sociologia e Política, a Unesp, a Livraria e Editora Ciências Humanas, o PCB, a revista Temas de Ciências Humanas, o PCI, a Folha de São Paulo, o jornal Voz da Unidade, o ensino, a pesquisa, a democracia, depois o Cedec, a revista Lua Nova, a Anpocs, a Revista Brasileira de Ciências Sociais.
Fizemos ou participamos de tantas coisas juntos que é no mínimo estranho que esteja eu aqui, sozinho, subscrevendo esse registro memorialístico em tom de homenagem póstuma.”
Só essa breve passagem já diz muito dele e de sua geração. Mas, essa outra me repõem na trajetória da minha descoberta de Marco que compartilho com vocês nessa noite. Dirá ele
“Sua geração – que é a minha e a de tantos outros que frequentam o Cedec, que leem ou lerão Lua Nova, que têm a política como valor – deixou pegadas na história brasileira. Sem cabotinismo (ah, como ele adorava essa palavra!) e sem falsas modéstias, ainda que também sem o devido reconhecimento. Foi uma geração que viveu com intensidade. Experimentou de tudo, imaginou cenários épicos, abriu muitas sendas. Atracou-se com a resistência à ditadura e a transição democrática, com a luta armada e a luta eleitoral, jogou-se nos espaços da intransigência e da negociação, construiu instituições. Absorveu praticamente todos os influxos dessa movimentação, combinados em maior ou menor medida com as ressonâncias e os desdobramentos de 1968, da Tchecoslováquia, do eurocomunismo, da cristalização da ideia de democracia como valor universal, das novas formas do movimento operário, da questão feminina, da reconstitucionalização do país, do Muro de Berlim, do desaparecimento dos partidos comunistas, da vida líquida e informacional. Não foi uma geração que se limitou a assistir a tais acontecimentos portentosos. Pôde participar deles, interferir neles, protagonizá-los. Talvez por isso tenha ido tão longe e possa, hoje, proclamar sua personalidade geracional.
Por opções e armadilhas da vida, Gildo chegou relativamente tarde ao trabalho acadêmico mais sistemático. Entre 1973 e 1989, o jornalismo e a política o consumiram. Trabalhou na Folha com Cláudio Abramo, dirigiu o jornal comunista Voz da Unidade de 1980 a 1981, ajudou a editar o Diário do Grande ABC. Especialmente na Voz, com a contribuição de um seleto grupo de colaboradores e companheiros, viveu uma intensa aventura intelectual, de que pude ser testemunha e partícipe. Entregou-se a ela com um sentido de missão que jamais cedeu à tentação do fanatismo ou da prepotência e que buscou explorar ao máximo as oportunidades que se abriam – mas que logo se fechariam – para uma reinvenção do comunismo, de sua cultura, de sua linguagem, de sua forma de comunicação com a sociedade. Perdeu uma batalha, mas nenhuma guerra.”[1]


[1] Nogueira, Marco Aurélio. O valor de uma geração. Lua Nova, 2009, nº 78, p.23-28. Todas as citações do Marco Aurélio anteriores são desse texto.

 
 Carlos Nelson Coutinho
Está claro que a batalha a que Marco se refere era aquela que ele e os seus da sua geração e de outras gerações disputaram a direção da política do PCB.
E assim, ao retornar a minha trajetória de descoberta do Marco, gostaria de agora finalizar essa breve apresentação dessa noite.
As Ruas e a Democracia, o livro e a palestra do Marco que vamos vivenciar ocorre do quase fechamento do ano de 2013. A nossa Constituição chegou nesse ano aos seus 25 anos. Não têm faltado, felizmente, comemorações à efeméride, e as magistrais passagens de As Ruas e a Democracia sobre a dita convocação de um plebiscito sem eira nem beira como resposta governamental as jornadas de junho são a comprovação cabal de que a tal propositura não passava de uma fuga para frente daquela difícil conjuntura.[1] Sabendo-se, porém, com que rapidez – qualidade a ser cultivada no presente milênio como queria Italo Calvino (1923-1985)[2] – a atenção se fatiga quando as circunstâncias lhe impõem que se aplique o exame rigoroso das questões candentes, não é arriscado prever que o interesse público pelas jornadas de junho de 2013 só venham a diminuir, dia após dia. Ao contrário, a Constituição de 1988 segue sua sina de ser o enigma decifrável da nossa democracia.
Como declaração de princípios e regras que é, a Constituição criou obrigações legais a República. Todos sabemos, porém, que essas obrigações podem acabar por ser desvirtuadas ou mesmo denegadas na ação política, na gestão econômica e na realidade social. A Constituição é geralmente considerada pelos poderes econômicos e pelos poderes políticos, como um documento cuja importância não vai muito além do grau da boa consciência que lhes proporciona.
Nestes 25 anos não parece que os Governos tenham feito pelos direitos inscritos nela tudo aquilo a que, moralmente e intelectualmente (como diria Gramsci que Marco, ao lado de Carlos Nelson Coutinho (1943-2012)[3] e Luiz Sérgio Henrique, foi responsável pela tradução para o português – de 1999 a 2002 – dos seus Cadernos do Cárcere[4]), quando não por força da lei, estavam obrigados.


[1] Nogueira, Marco Aurélio. As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira / Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p.76-84.
[2] Calvino, Italo. Seis propostas para o próximo milênio - Lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
[3] Nogueira, Marco Aurélio. Socialismo e democracia no marxismo de Carlos Nelson Coutinho (1943-2012). Lua Nova, 2013, nº 88, p.11-21.
[4] Gramsci, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2002.
 


Desta forma, As Ruas e a Democracia aponta, entre outros insignts, que alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lhe permitem os que efetivamente governam com suas hegemonias imperfeitas[1], as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, que vem reduzindo a uma forma sem conteúdo o que ainda resta de ideal de democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. E isso As Ruas e a Democracia também aponta. Por isso uma Constituição da democracia deve ser disputada todos os dias, inclusive nas ruas, uma vez que nenhum dos direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e satisfeitos. Não é de se esperar que os Governos façam nos próximos 25 anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra democracia e a iniciativa das ruas. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos nas ruas, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres da democracia.

Finalmente, o Marco deve lembrar o título da sua contribuição na tribuna de debates levada a efeito na Voz da Unidade por ocasião do Sétimo Congresso do PCB. Talvez o seu As Ruas e a Democracia possa ser lido numa paráfrase daquela contribuição pois só com a devida compreensão do Brasil que temos, poderemos caminhar com passos firmes para o Brasil que queremos, para seguir tornando-o melhor em todas as nossas esquinas e instituições. Obrigado!

 

Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 2013



[1] Nogueira, Marco Aurélio. A hegemonia imperfeita. O Estado de São Paulo, 23 de novembro de 2013.

Um comentário:

Unknown disse...

Vagner, estive no evento, e vi alguém parecido contigo, mas fiquei na dúvida se era e não fui falar. Pela posição das fotos, reconheço que era mesmo você.
Sobre o livro, li a introdução e o primeiro capítulo, pois estou no meio da leitura de outros dois sobre a mesma temática, e depois terminarei este.
Mas a proposta é muito boa. Vários pontos eu usarei na minha produção pessoal sobre o mesmo tema.

Assim que terminar de ler todo o livro, volto aqui pra comenta-lo.

Samuel Braun