quarta-feira, 3 de agosto de 2011

CONJUNTURA

Foto: Mapa da corrupção no Mundo (quanto mais vermelho maior seria o índice de ocorrência)

Tese sobre o veneno da corrupção e o antídoto democrático
Ricardo Marinho (Professor de História na UNIGRANRIO)


Periodicamente, ainda que de forma irregular, o Brasil se vê abalado por noticias de alta corrupção financeira e política. Invariavelmente, a mídia denuncia indignada a imoralidade da vez, como se isso deixa-se claro que, com exceção de uns poucos, o país seguiria impoluto e inocente. Entretanto, não se menciona as normas e práticas de corrupção intrínsecas a dimensão sistêmica do capitalismo, em especial em sua versão financeira contemporânea.
Nos dias correntes, as manchetes têm focado o Ministério dos Transportes e o seu Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), tendo seus ex-dirigentes supostamente responsáveis por atos de corrupção, que envolveu o Senado Federal uma vez que o ex-mandatário da pasta ministerial voltou para sua cadeira naquela casa legislativa. Mas esse case é brincadeira de criança quando comparado com todo o esquema de anos do PSDB-PT que, somados, constituem na maior perpetuação de fraudes financeiras na nossa história. As operações realizadas nesses 16 anos demonstraram o que há décadas já acontecia, pois esses esquemas constituem o coração da política estratégica e uma combinação útil de negócios e eleições. O estouro do sucesso financeiro do ex-Ministro da Casa Civil - tolerada pelo Governo, revelou o esquema piramidal político e econômico. Contudo isto é compreensível no contexto de uma cultura e prática de corrupção mais enraizada, o que explica as dificuldades de Dilma para separar o joio do trigo, quando da formação do seu gabinete, uma vez que a equipe originalmente pensada para compor o Palácio do Planalto e eleger seu círculo íntimo de assessores, se fez sob o signo e sombra desses dezesseis anos.
"Corrupção" é realmente uma palavra, um conceito muito controverso, especialmente quando se intenta usá-lo na retórica aplicada aos conflitos políticos. Sua carga negativa, que inclui a extorsão, suborno, nepotismo, entre outros adjetivos proibitivos é utilizada para buscar mobilizar o apoio popular dos partidos supostamente denunciantes contra os seus concorrentes e/ou rivais. Entendido, porém, como um fenômeno ligado à ação e psicologia de grupos e das massas, os significados atribuídos à palavra corrupção variam de uma civilização para outra, de um século para outro, de um país para outro e de uma conjuntura para outra. Pensar criticamente as venalidades corruptas exige não só o pensamento no campo da política, mas também na economia, nas finanças, na religião, nos desportos, na arte, na educação e nos conjuntos das interações sociais.
No entanto, a corrupção societal, daqueles que oferecem subornos, quando julgados, são punidos severamente enquanto tal tratamento quando acontece com a corrupção na vida pública se da em menor escala e nunca de forma exemplar e simbólica para com os políticos, funcionários públicos e burocratas na medida em que os envolvidos abjurarão a confiança pública. A assimetria é ainda maior em sociedades onde os ricos são ainda mais ricos, sejam os indivíduos ou as pessoas jurídicas, ocupando uma posição que possibilita corromper os modestos funcionários públicos. Se a venalidade é ou não inata à condição humana, o que de fato importa é de não sermos surpreendidos que os funcionários públicos e os eleitos sejam corruptíveis. Sociedade política não é governada por anjos entregues a uma vida de benevolências. Que "o poder tende a corromper" e que "o poder absoluto corrompe absolutamente" ambas as frases fazem parte do léxico político de Lord Acton é da natureza e da lógica das coisas. Mas se a corrupção na sociedade política e civil é uma doença crônica (e mesmo se há momentos, como Bertolt Brecht disse "encontrar um funcionário que aceita suborno é encontrar a humanidade"), a questão não é a corrupção em si, mas o seu alcance e intensidade.
É possível, por exemplo, que as assim chamadas sociedades primitivas foram menos expostos à corrupção, porque eles não tinham a separação liberal entre público e privado necessária para que o suborno subverta as suas práticas de entrega de presentes. Mas houve suborno, especialmente em relação aos juízes, entre os antigos egípcios, babilônios e hebreus. Na Grécia, no século IV AC, o suborno, floresceu ao lado do crescimento das cidades, da economia e do governo, bem como a crescente necessidade de controle via assembleias públicas. Roma nunca foi livre de venalidade, mas só começou a permear a sociedade civil e política durante a República e com a expansão do Império: vendas de cargos públicos, contratos e concessões marcadas pelo clientelismo, cooptação da população por meio de pão e circo. Até pelo cargo de Imperador chegou a se oferecer o maior lance. Na Idade Média, a forma mais comum de suborno foi provavelmente a simonia (venda de "favores divinos", benções, cargos eclesiásticos, promessa de prosperidade material, bens espirituais, coisas sagradas, entre outras possibilidades, em troca de dinheiro) eclesiástica. Novamente, no início da Europa moderna, compra e venda de cargos públicos ou do fisco (o nosso famoso Leão do Imposto de Renda) e como complemento dos títulos hereditários foi freqüente em países como França e Inglaterra. A colonização no exterior, entretanto, abriu novos caminhos para a corrupção nas metrópoles e cidades e nas colônias e províncias imperiais. Na verdade, a corrupção sempre foi um elemento necessário do imperialismo, e incluiu práticas como a compra e venda altamente rentável de licenças, concessões e contratos de exploração econômica e fiscal das colônias, especialmente para a extração de recursos e de bens não renováveis.
Corrupção, em suma, não prevaleceu igualmente em todas as épocas e lugares. Especialmente em tempos de transição social e econômica, quando as estruturas governamentais e legais tornam-se incoerentes e convenções sociais são relaxadas, é quando a corrupção torna-se desenfreada e colorida, com oportunidades tentadoras que nem se teria imaginado ou tentado noutros tempos. Foram o que aconteceu nos EUA entre 1865 e 1890, com a nova safra de Estados pós-coloniais no Oriente Médio, África e Sudeste da Ásia, ou em países que formavam a antiga União Soviética e seus satélites, desde 1989 quando a corrupção e o suborno se alastraram.
Ao dispor de uma margem de manobra econômica via Estado, especialmente num dos momentos desses 16 anos dos governos do PSDB-PT, o Brasil foi terreno fértil para a corrupção. Todas as elites sans phrase comemoraram a suposta entrada do capitalismo brasileiro num surto de modernização grão-burguês, pois erigiram seus impérios econômicos através de um apelo calculado para a corrupção maciça dos diferentes níveis de governo dos entes federados, a fim de se obter vantagens. Em um clima de relativa tolerância e frouxidão moral, a fraude e o suborno foram perpetrados de forma selvagem, especialmente quando tentando obter direitos de exploração para os modais de transporte, para um Código Florestal avesso a Política de Mudanças Climáticas entre outras idiossincrasias e para os minerais, o petróleo e gás, bem como as tarifas e regulamentações favoráveis aos negócios.
Quando olhamos o século XX em perspectiva, com o surgimento dos EUA como uma potência imperial, já se podia antever um novo florescimento da corrupção. Comparando com o Império Romano ou com os Impérios Europeus, a modalidade de governo desses impérios se dava de forma direta, já os EUA optaram em ligações indiretas. Isto levou ao nascimento do complexo industrial-militar que se tornou uma causa e efeito do constante aumento das despesas públicas em alguns contratos militares. O crescimento desta poderosa infraestrutura de "defesa", com bases militares próprias ou de aliados ao redor do mundo, andou de mãos dadas com o salto imperial global norte-americano sobre os bens planetários estratégicos e, por sua vez, majorando contratos cada vez mais lucrativos e com alta capacidade de corrupção. Este desiderato foi fornecido pela liderança dos EUA em áreas como a aeronáutica, telecomunicações, produtos farmacêuticos e de informática, todas as atividades que exigem licenças relacionadas com tráfico de influência.
Em tempos de capitalismo financeiro universalizado, a velha política do clientelismo e troca de favores tem sido deslocada pela corrupção pela política da direta e da extrema direita, legais e ilegais (a Noruega, e não só ela, sabe dos seus laços históricos com esse espaço da geografia política). A desindustrialização varreu os EUA, e não há mais um senador que represente a Boeing e um diretor executivo e futuro secretário de defesa, Charles Wilson como chefe da General Motors, poder afirmar que "o que é bom para General Motors é bom para a América". Os objetivos tornaram-se mais ambicioso: o suborno na forma de contribuições de campanha, procura influenciar, se não comprar, os poderes legislativos e decisões administrativas para beneficiar os interesses inconfessáveis, muitas deles transnacionais. Na verdade, na era da globalização da economia e das finanças a corrupção também se tornou global. As solicitações e demandas são usadas para contratos comerciais e influência política.
Ao se revelar a sua natureza sistêmica, a corrupção não é apenas praticada no Brasil e nem tão pouco apenas nesses 16 anos, mas o que talvez seja novidade é que a sua pratica pelos CEO (chief executive officer) das mega-corporações e instituições financeiras somou-se as das agências de rating (opinião sobre a capacidade de uma empresa ou país saldar seus compromissos financeiros) e as empresas de contabilidade (e não é por acaso que o mercado e o Estado aqui e em alhures estejam atrasados na adoção das normas internacionais de contabilidade representadas pelo IFRS – International Financial Reporting Standards). Obviamente, nem todos os culpados são as grandes estrelas dos negócios executivos.
No geral, porém, a maioria dos grandes corruptores são executivos anônimos que procuram melhorar a sorte de suas empresas. Eles, junto com os bem-financiados lobistas, que representam a maioria das doações para os maiores partidos políticos, à frente de outras organizações. Na medida em que a doação se torna compra das escolhas e, portanto, controlada, pelas grandes corporações e associações comerciais, os partidos relacionados com o mundo dos negócios tornam-se hegemônicos no poder legislativo, judiciário e executivo do governo tanto a nível federal, estadual e municipal. A simbiose entre o mundo corporativo dos negócios e do governo é possível graças à porta giratória entre os setores privado e público. Sem quebrar os laços com Brasília, os de dentro passam para avançar seus interesses à espera de um retorno. Para consolidar seu pedigree, muitos deles procurar e obter relações com grupos de reflexão (as agencias de consultorias e rating, entre outras modalidades).
Enquanto fora do poder, políticos e funcionários que ganharam visibilidade pública seguem ganhando dinheiro com a sua experiência e contatos com as agências governamentais, as corporações e a alta sociedade empresarial, tanto dentro como fora do país. Com algumas raras exceções (como, por exemplo, a de Carlos Lessa), todos os ex- de notório saber buscam obter grandes somas com seus “discursos” para as grandes empresas. Ex-membros dos gabinetes presidenciais, ministeriais, conselheiros, assessores são passiveis de trafico de influência e lobby para todo o tipo de cliente nacional ou estrangeiro por valores correspondentes ao seu acesso privilegiado aos corredores da política e do poder corporativo.
Dai podermos falar hoje de núcleos de corrupção, que juntamente com aqueles que se encontram ou se encontravam no teatro de operações, temos os escritórios dos grandes estudos jurídicos, dos grandes investimentos, de estudos contábeis, de relações públicas, entre tantos outros que se fizerem fazer necessários, formam nexos formidáveis de influência e poder. Algo semelhante começa a acontecer com militares e paramilitares aposentados ou demissionários, que ganham dinheiro com as suas credenciais para ajudar os empresários na área de segurança ou de analistas do setor para a mídia.
O século XXI testemunhou o nascimento de um novo concerto de nações dominado não por um país, mas vários. Apesar de seus sistemas políticos radicalmente diferentes, todos eles são ligados a uma nova forma de capitalismo de Estado que determina os seus passos. Confrontos entre os atores principais dos Estados vai se intensificar e como resultados seguiremos a ter (pois já temos) uma concorrência brutal para o acesso ao controle dos cada vez mais escassos recursos fundamentais, a saber: energia, água (vide, por exemplo, os últimos plebiscitos italianos) e comida. Adicionado a isso, o crescimento da população permanece incidindo sobre um mundo cronicamente instável, devastado pela pobreza e desnutrição. Para piorar alguns dos Estados mais pobres possuem valiosos recursos naturais, mas desafoturnadamente são controlados por uma elite de espírito completamente venal.
O retorno a um sistema mundial multinacional dominado por várias potencias no esteio de um mercantilismo de novo tipo - para falarmos com Gramsci - é um grande incentivo para a corrupção. Aqueles que se beneficiam da corrupção do capitalismo financeiro de Estado, seja em versões grão-burguesas ou não, trabalham lado a lado com os criativos e destrutivos modos de roubar a cidadania. Os relatos de nepotismo e corrupção bruta e descarada seguirão. Mas, compreende-los e lidar com eles de forma apropriada é a questão chave e a chave para isso é a democracia.
Rio de Janeiro, 31 de julho de 2011.

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