O
Rio de Janeiro atravessa uma profunda crise política e social após anos de
hegemonia de um grupo político que nasceu sob as bênçãos do ex-Governador
Garotinho e, aos poucos, foi criando uma nova trilha mais burguesa que
populista de viés conservador. Entretanto, há a necessidade de termos
intelectuais refletindo e atuantes para a melhor intervenção dos atores
políticos na superação democrática dessa crise. Portanto, a seguir, teremos uma
longa e densa entrevista como professor Marcelo Burgos (PUC – RJ).
O
professor Marcelo Burgos é Doutor em Sociologia pelo IUPERJ (1997) e tem
trabalhado em pesquisas de sociologia urbana, com ênfase em territórios
segregados e periféricos.
1)
Professor
Marcelo Burgos, como chegou a essa profunda crise cívica na Cidade do Rio de
Janeiro? A economia fragmentada do estado do Rio de Janeiro é causa ou
consequência disso tudo que testemunhamos desde a passagem das Olimpíadas?
Crise social e política
é uma condição latente ao Rio de Janeiro, que tem uma história caracterizada
por descontinuidades político-administrativas (Brasília e a fusão dos estados são
dois momentos extremamente complexos para a cidade), e por uma relação muito
singular entre elite e povo, da qual também faz parte a forma pela qual a
estrutura social está organizada em nosso espaço urbano. Nesse sentido, não
seria exagero dizer que, aqui, a economia depende muito da política e da
cultura popular, em uma escala muito maior do que em São Paulo, por exemplo,
onde o mercado tem maior autonomia. A economia do petróleo e gás, a maior força
dos interesses da indústria do turismo, e a presença mais marcante da principal
empresa de comunicação do país na vida do Rio são, desse ponto de vista, alguns
dos fatores que tornaram ainda mais complexa a estrutura econômico-social da
cidade e da metrópole. Por um momento, parecia que os governos Cabral/Paes
significavam uma virada que indicava que a burguesia finalmente tinha assumido
o controle da gestão da cidade e do estado, mas logo ficou claro que o que se
tinha era uma forma muito perversa e mafiosa de articulação entre o mercado e a
política, que somente se sustentava a partir do controle da vida popular por
máquinas políticas, inclusive de milícias, e também por estratégias de
neutralização da mídia, do Ministério Público e do Poder Legislativo.
2)
O Governo
Federal sinalizou nos dois últimos anos com duas iniciativas que teria como
objetivo superar a calamidade e salvar um campo político conservador. O acordo
de ajuda financeira, que levou o Orçamento do Estado a se comprometer com uma
ampla redução de sua capacidade de investimento, e a Intervenção Federal na
Segurança Pública, que ainda não foi além das medidas “paliativas”. Qual a sua
avaliação sobre essas iniciativas?
Talvez
se pudesse afirmar que o custo político da ajuda financeira foi cobrado no
momento da intervenção na segurança pública. A ajuda financeira foi uma costura
complexa e inconclusa, que inclusive colocou a Cedae como moeda de troca,
cobrada por um governo federal orientado por um fundamentalismo de mercado, e
muito preocupado em dar satisfação a grupos financeiros nacionais e
estrangeiros. Tratava-se de um momento extremamente frágil do governo estadual,
mas o socorro federal não podia arranhar a ortodoxia com que o governo federal
pretendia pautar sua macroeconomia. E qual será o saldo da operação financeira
ainda não sabemos ao certo, pois também é verdade que o preço do barril de
petróleo – de que tanto depende a economia do estado - voltou a subir,
reduzindo momentaneamente a gravidade da situação.
Por
outro lado, com a intervenção militar deu-se quase o inverso: uma tentativa de
usar o Rio para salvar o governo federal do que prometia ser – e ao que tudo
indica será – um final melancólico do mandato do governo espúrio do Temer.
Acuado pelas forças de segurança do estado, e por um quadro de descontrole em
face das milícias, e ainda refém do acordo financeiro não cumprido com o
governo federal, o governador Pezão se viu obrigado a aceitar a proposta,
anulando-se.
Como
se vê, a operação financeira e a intervenção na segurança pública estão
interligadas, como processos interdependentes, tendo sido o Rio, por sua
importância na cena política do país, tomado como uma espécie de laboratório
onde se experimenta um novo tipo de acordo federativo, que combina submissão ao
mercado com submissão à autoridade militar. As consequências desse coquetel são
visíveis a olho nu: profunda crise social e ausência completa de controle
social sobre a política de segurança.
3)
Uma
longa sequência de demissões acompanha o estado do Rio de Janeiro. Sua grande
maioria seriam trabalhadores da construção civil e muitos jovens não conseguem
seu primeiro emprego. Há alguma solução política para isso? A força de
candidatura do Deputado Jair Bolsonaro (PSL), de extrema-direita, teria essa
base no Rio de Janeiro?
Sem
dúvida, o Rio tem sido um dos estados que mais sofre com a crise econômica,
política e social porque passa o país. A construção civil recuou no país
inteiro, mas é claro que o dia seguinte ao do ciclo olímpico teve aqui um
impacto mais violento. A ausência de respostas dos governos estadual e
municipal para tentar criar frentes de trabalho agrava o quadro. Quanto ao
Bolsonaro, é verdade que uma parcela da população que está disposta a votar
nele vem desse segmento de trabalhadores desempregados. Mas sua base política
parece bem mais sólida entre setores de classe média e classe média baixa, que
de algum modo o veem como uma resposta ao problema da corrupção e da
insegurança, e do que percebem como a impunidade dos criminosos.
4)
O último
campeonato carioca de futebol foi um dos que menos atraiu um público para os
Estádios. Crise econômica, desemprego e a violência seriam algumas das
explicações. Entretanto, não poderia ser uma mudança da postura do carioca em
relação ao futebol uma vez que a Federação e os meios de comunicação lhe
conferem mais um viés de espetáculo do que de diálogo entre torcedores e
bairros?
É verdade que a questão do futebol
não pode ser desvinculada do modelo arena-televisão que se construiu em torno
dele. De fato, o crime cometido com a desfiguração do Maracanã deixou a cidade
sem sua principal referência popular. Mas outros fatores também entram nessa equação,
como a crise econômica e o desemprego, associada à elevação das vivências de
todo tipo de violência. Mas se aceitarmos que parte dessas variáveis também
estariam presentes no último campeonato brasileiro, e que neste caso a média do
público dos times do Rio não foi inferior ao das principais praças de futebol
do país, precisamos avaliar se, no caso do campeonato carioca, também não estaria
presente uma deliberada desvalorização do certame regional, possivelmente em
função da briga travada entre a FFERJ e a emissora que tem comprado os direitos
de transmissão do campeonato. Seja como for, creio que o campeonato carioca
continua sendo um evento muito querido pelo povo carioca.
5)
Uma Agremiação
de Escola de Samba do Grupo Especial teve um processo eleitoral recentemente
marcado pelas denúncias disputa de influência da contravenção e das forças
milicianas. O Senhor acredita que a iniciativa do Prefeito Marcelo Crivella
(PRB) em reduzir verbas oficiais para as Escolas de Samba agravará esse cenário?
Infelizmente, muitas escolas de
samba estão há muito tempo ligadas à contravenção, por outro lado, a essa
altura há evidências de que bicheiros e milicianos disputam espaços mas também
se unem em muitas ações, como no caso das máquinas de jogos “caça-níqueis”. O
carnaval carioca é um espaço privilegiado de articulação com a vida popular,
servindo por isso mesmo como via de capitalização política. Por isso, é claro
que se o poder público recua muito, a tendência é a de se aumentar ainda mais
os laços de dependência com outras formas de financiamento, bem como de
submissão a contraventores e milicianos. Mas este é um terreno complexo, e
talvez a pergunta formulada seja especialmente oportuna justamente porque nos
obriga a colocar luz sobre a economia do carnaval, bem como sobre sua vida
associativa. Afinal, se é verdade que a vida popular do Rio de Janeiro está
submetida a um controle muito pesado de grupos paramilitares que atuam em
parceria com grupos políticos, e se é verdade que a apropriação dos bens
simbólicos do carnaval por esses grupos é parte importante desse controle,
pode-se concluir que temos aqui uma agenda fundamental para trabalharmos pela
emancipação popular.
6)
O
que aconteceu com o Associativismo de Bairro do carioca? O Senhor conhece
alguma experiência positiva na atualidade?
O associativismo de bairro não
morreu, o problema é que se ele fica muito desgarrado da vida da cidade em um
sentido mais amplo, acaba refém da lógica do “não no meu quintal”, ou seja, de
uma lógica puramente defensiva. Para que ele possa ter uma atuação mais cívica
e democrática, é preciso valorizar sua relação com outras organizações e com a
própria vida partidária. Acho que o movimento contra a construção da Linha 4 do
metrô, realizado com muita energia por parte das associações de moradores, foi
uma demonstração de força importante, pena que foi derrotado pela máfia do
Cabral, que o ignorou completamente, implantando contra todas as opiniões em
contrário “o linhão” que interliga Ipanema à Barra, de modo a atender
interesses particularistas de seus sócios. Perdeu-se ali uma oportunidade de
democratização real da vida da cidade. Hoje, vivemos um momento de recuo,
fortemente guiado pela égide do medo, e por isso é compreensível que o
associativismo de bairro tenha recuado tanto. Mas precisamos combater essa
tendência, pois a cidade precisa muito dele.
7)
O assassinato da
Vereadora Marielle Franco (PSOL) incentivou a emergência de muitas
pré-candidaturas de mulheres e da periferia para o próximo pleito. Entretanto,
as novas regras da campanha eleitoral (menos tempo de campanha, por exemplo)
podem prejudicar essas iniciativas. O que falta para a renovação na política
carioca?
A renovação da política no país
como um todo depende de mudanças profundas na lógica da competição política. Em
todo o país o acesso à política partidária está muito fechado, desencorajando
os mais jovens e talentosos e ingressar nela. No caso do Rio, a forma pela qual
as máquinas políticas se articularam com grupos milicianos agravaram essa
tendência. E isso tem um efeito terrível para os territórios populares, pois
praticamente impede que os jovens periféricos consigam canalizar seus anseios
de mudança pela via da política. A Marielle representava uma exceção em meio a
essa lógica perversa, mas é preciso lembrar que sua votação somente foi tão expressiva
porque furou o bloqueio, alcançando os jovens de classe média da zona sul da
cidade, que apoiaram maciçamente sua candidatura. No fundo, sua trajetória
acenava para o que há de mais promissor na cidade, que é essa aproximação entre
parcelas da classe média e do mundo popular. Este é o caminho do Rio, sua
melhor saída. Não sabemos ainda com certeza quem mandou matá-la, mas seja lá quem
for, é certo que sabia que estava matando mais do que uma talentosa e
promissora liderança política, estava na verdade procurando interditar um
caminho de articulação entre diferentes grupos sociais. Mas o drible de corpo que
a Marielle dera no controle brutal que as máquinas políticas - muitas vezes com
o apoio explícito de milícias - exercem na maior parte dos territórios
populares da cidade e da metrópole, deixou vestígios de um caminho que
precisaremos aprofundar.
8)
Recentemente
foi divulgado que o sociólogo Luiz Eduardo Soares fez uma reunião na sua
residência para buscar a unidade da esquerda do Rio de Janeiro no primeiro
turno. Essa ideia é utópica? Como avalia o quadro da esquerda fluminense desde
as eleições de 2016?
O
problema é qual a utopia? Ou seja, em nome do que estamos nos movendo. A
construção de um estado e de uma cidade mais justos, com geração de empregos e
renda, e ampliação do acesso à segurança pública, educação e cultura, saúde,
habitação e mobilidade urbana; com a melhoria da infra estrutura urbana e de
logística econômica; e com medidas concretas no sentido de favorecer a
emancipação popular do jugo de grupos paramilitares e de máquinas políticas,
tudo isso pressupõe a construção de um ambiente político pautado por uma
articulação capaz de reunir diferentes atores em torno de um campo democrático,
republicano e progressista. Acredito que essa construção pressupõe a
organização de pontes comunicando diferentes grupos políticos, diferentes
classes sociais e também diferentes gerações.
9)
As pesquisas
iniciais ao Senado indicam a possibilidade de vitória do filho do Deputado
Federal Jair Bolsonaro e do vereador César Maia pelo (DEM). Há espaço político
para surpresas nas eleições para o Senado?
A família Bolsonaro se beneficia do
medo e do caos, e também da cultura de escândalos de corrupção que caracteriza
boa parte da grande mídia, e que ganhou espaço na agenda de parte do Judiciário.
É preciso insistir que os Bolsonaros não têm qualquer compromisso com a
democracia, e que embora vivam há muito tempo como parlamentares, apenas
pretendem instrumentalizar a democracia para chegar ao poder, para no dia
seguinte implantarem um governo autoritário, com ou sem o apoio militar. E o
que é pior: ninguém poderá dizer que o chefe do clã não avisou. Por onde anda,
tem dito isso em alto e bom som, e muitas vezes sob o aplauso de diferentes
plateias. Ainda há tempo para tentar impedir esse gesto de loucura e de
suicídio político que viria por parte de parcela do eleitorado, mas para isso
será preciso estarmos mais atentos aos fatores que têm contribuído para
impulsionar o projeto do clã.
Quanto às surpresas, poderão acontecer,
já que são duas vagas para o senado, e o cenário ainda está aberto.
10) Como o Senhor avalia a liderança nas pesquisas do
Senador Romário (PODEMOS) para Governador? Ele seria um exemplo de vitória da
“anti-política”?
Romário conta com a vantagem de que
seu nome é uma lenda do futebol, e isso lhe dá um crédito junto à massa do
povo. Mas a eleição para o executivo vai testá-lo de um outro modo, e não sei até
que ponto ele está preparado para esse desafio. Além disso, para a eleição
majoritária a imagem de “anti-política” ajuda e atrapalha ao mesmo tempo, pois
uma parcela significativa do eleitorado também espera que o candidato a
governador tenha experiência administrativa, perfil de gestor, e bom trânsito e
capacidade de diálogo com outros atores políticos. Se você não tem isso, e
tampouco conta com o apoio da sociedade civil organizada, tem grande chance de
ficar isolado, mesmo tendo o prestígio pessoal de um grande ídolo do futebol.