quarta-feira, 21 de agosto de 2019

COLUNA DO PABLO - SOBRE O FILME TAXI DRIVER

 

Taxi Driver ou Quando DeNiro e DaMatta se encontram

Dedico aos amigos Amanda e Leonardo e à jovem Flora, futura condottiere para melhores paragens.

Por Pablo Spinelli

Fazer uma análise sobre um filme que tem como protagonista um motorista de táxi talvez seja um anacronismo diante dos aplicativos de carros particulares que colocam esse ofício como uma peça em extinção. Fazer uma análise sobre um filme dos anos 1970 talvez seja tão antiquado quanto pensar em comprar uma autonomia de táxi no mundo das startups.

Porém, o filme é um dos maiores expoentes do cinema da “nova” geração de Hollywood que floresceu nos anos 1960 e 1970; geração que dominou as telas e influenciou a política, os costumes, vestuários, expressões no vocabulário e diretores mais jovens de todo o planeta.

Martin Scorsese foi e é um dos maiores nomes de sua geração. Conseguiu ter maior longevidade artística que seus contemporâneos, como Francis Coppola, George Lucas e Peter Bogdanovich. Conseguiu passar por problemas pessoais melhor do que os que Woody Allen enfrentou. Foi mais rico em abordagens temáticas e ousadias que o mais nerd do grupo, Steven Spielberg. A carreira desse ex-seminarista dialogou da máfia ao budismo; da corrupção policial à invenção do cinema sob o olhar de uma criança. Porém, mesmo que tenha feito filmes sobre jesuítas (e Jesus) ou homens milionários loucos; sua temática mais forte, seu laço mais afetivo provém dos personagens que lhe deram mais sucesso nas telas: os subalternos; os fracassados; aqueles que buscam a redenção.  Mafiosos de segunda categoria; boxeadores em sua decadência; prostitutas; policiais corruptos; mulheres solitárias; e, por que não, taxistas enlouquecidos, fazem parte do caldo mais interessante de Scorsese.

Seus filmes dialogam muito com a sua formação católica. O mundo perdeu um padre, mas ganhou um dos maiores amantes e conhecedores do cinema de todos os tempos. Um diretor que tem em seus filmes a questão da culpa, da moral ou sua ausência, da lealdade ou traição, o amor e o pecado como seus motes principais. Taxi Driver talvez seja um dos filmes que melhor traduzem tudo o que foi descrito acima, mesmo que para muitos críticos seu melhor filme tenha sido “Os Bons Companheiros”, mas cremos que não haveria Scorsese sem “Taxi Driver”, assim como provavelmente, não haveria “Apocalypse Now” de Coppola sem esse ter feito antes “O Poderoso Chefão”.

No cinema há grandes parcerias. Os mais jovens sabem que Samuel L. Jackson trabalhou em vários filmes de Tarantino. François Truffaut, diretor francês, fez vários filmes com Jean-Pierre Leáud. No Brasil, Glauber Rocha e Othon Bastos fizeram poucos, mas memoráveis filmes. O diretor inglês Alfred Hitchcock tinha dois ícones, James Stewart e Cary Grant para vários de seus filmes, fora o fetichismo com louras. O cineasta sueco Ingrid Bergman trabalhou com os atores Max Von Sindow (o corvo de 3 olhos de GoT) e Liv Ullman incontáveis vezes; Woody Allen teve como referências Diane Keaton, Mia Farrow e Scarlett Johansson para seus trabalhos; Ridley Scott com Russel Crowe desde “O Gladiador” ou o seu falecido irmão, o também diretor Tony Scott com Denzel Washington; e, o caso mais mítico, a dupla Federico Fellini-Marcello Mastroianni que entrou para a história ultrapassando as fronteiras do cinema italiano. Algo mais próximo aos italianos talvez seja a simbiose entre Martin Scorsese e aquele que foi o seu melhor alter ego entre os anos 1970 e 1990, Robert DeNiro. As carreiras de ambos são indissociáveis. Essas linhas, caros leitores, são para mostrar que a escolha de um elenco não passa pelo acaso. Filmes ou personagens são pensados para determinados atores e isso muito depende da ação do diretor.

Taxi Driver começa com um indivíduo solto na multidão. Um homem de bem. A princípio. Um homem com insônia que precisa do trabalho por terapia. Uma descrição da sociedade atomizada e de alguns dos diagnósticos mais sombrios para a América escritos por Alexis de Tocqueville no clássico “A democracia na América”. Eis que surgem as referências de Scorsese. A música é hipnotizante, assim como as ruelas sujas e o discurso moralizador do homem de bem de Travis Bickle, personagem de DeNiro. A cena inicial estampa uma Nova York colorida pelo voyeurismo do personagem com uma trilha de Bernard Hermann, compositor de alguns dos filmes mais importantes de Alfred Hitchcock. Mas a homenagem de Scorsese a Hitchcock vai para além da trilha.

Travis Bickle, um jovem de 26 anos consegue participar de uma frota de táxis e com isso, enquanto dirige, torce para que um Deus da punição venha a descer a lenha sobre a Sodoma que ele vê em Nova York, inclusive, sobre seus próprios passageiros.  Eis que aparece a maior referência a Hitchcock. Uma jovem competente, linda e loura (como as personagens centrais do experiente diretor inglês de Psicose e Um corpo que cai) desloca o seu olhar da podridão do espaço público. Eis que aparece Cybill Shepherd, uma Vênus que faz a apatia de Travis se desvanecer. Ele se engaja em uma campanha política porque a sua Afrodite é do marketing e da campanha de um político ao qual Travis não sabe o partido, o programa, nada. Algo que nem a equipe do candidato pensa em traduzir, pois Scorsese faz ali uma breve denúncia do sistema americano das eleições: os partidos como máquinas eleitorais que vivem um sistema repetitivo e monótono de venda de embalagens, sem conteúdo.
Travis engata um romance curto, vira um crush, ele e a personagem de Sheperd estão se “conhecendo”, para usar os termos em voga. Só que o conhecimento é trágico. O personagem de Bickle, que pode trazer antipatia pelo que pensa enquanto homem de bem, nos dá um ar desolado por não saber aonde levar sua “crush” ou o que dar de presente. A experiência de ambos em uma sessão de cinema já vale o filme, ainda mais ao se saber que a atriz começou a deslanchar a sua carreira em um clássico dos anos 1970 já esquecido: “A última sessão de cinema”. A rejeição de Betsy (Shepperd) faz Travis descer ao inferno. Mais trabalho como autômato. Começa aí a virada do filme, a Bandeira 2.
 

Porém, antes de fecharmos a corrida, vale destacar outro momento Hitchcock. Esse diretor – que merecerá uma resenha para esse blog ainda esse ano – tinha como uma de suas marcas fazer uma ponta em seus filmes. Era um êxtase descobrir aonde apareceria o diretor. Egos à parte, Scorsese faz uma participação pequena, mas brilhante no seu filme. Ele é o passageiro que é a síntese do discurso republicano mais radical – e atual. Racista, misógino e com pretensão a matar por possuir uma arma de fogo. Essa é quintessência do passageiro que tem um prazer indisfarçavelmente masoquista em ver sua mulher branca o traindo com um negro. Seu radicalismo assusta até Travis. Algo semelhante à família Bush ouvindo o atual presidente dos EUA. Isso para ficarmos nos EUA.
Voltemos à Bandeira 2. Como já escrito, Scorsese tem sua veia católica. Há a redenção. Travis é um esquisito, uma peça fora do lugar. Mas de forma muito sutil o filme aborda algo que poucos destacam. A sua crítica à guerra do Vietnã. Ao lado de filmes como “Amargo Regresso” ou “Nascido a 4 de Julho”, “O Franco-atirador” e “Rambo” (sim, é isso mesmo, mas o primeiro!), “Taxi Driver” fala do retorno dos soldados e seus traumas psicológicos e a dificuldade de sua insersão ao sistema e como ficam descrentes da política, pois se viram marionetes numa guerra que não entenderam o que foram fazer, como “Forrest Gump” denuncia com galhardia.
Assim, para o caminho da salvação de Travis, o renegado, há o caminho de Santiago quando ele se vê na obrigação de salvar outra loira – mais Histchcock, numa alusão clara a “Um corpo que cai” – das mazelas do mundo. Assim é que Jodie Forster faz um dos seus personagens mais marcantes do cinema, a jovem prostituta menor de idade (tal qual a atriz que tinha apenas treze anos), Isis, nome de uma deusa egípcia de grande poder, inclusive o de ajudar os mortos, como é o caso de Travis, que coloca seu cabelo como o de um punk, um moicano que assusta os espectadores, pois DeNiro mostra outro personagem com um simples corte de cabelo. É outra persona. O Vietnã reaparece na selva urbana. E sua missão é tirar a jovem Isis das garras de seu gigolô, vivido por Harvey Keitel (amigo de infância de Scorsese e DeNiro, mecenas para Tarantino fazer seu primeiro filme, pelo qual foi chamado de novo... Scorsese). O insucesso com a Vênus terá sua redenção se houver o salvamento de Isis. As charadas do excelente roteiro de Paul Schrader são espetaculares. A sequência final, salientada pela fotografia em vermelho e escuridão é a descida ao inferno em busca de uma Beatriz, como Dante de “A Divina Comédia”.
Uma curiosidade é que a personagem de Forster motivou a um jovem americano a tentar matar o então presidente Ronald Reagan. Segundo o psicopata, era uma forma de chamar a atenção de Jodie Forster. Taxi Driver, ironicamente, sugere um atentado a um político em uma cena.

 
 
Outra curiosidade. DeNiro e DaMatta. Qual a conexão? O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta escreveu um clássico ensaio presente no livro Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro; no início dos anos 1980. Pois bem, ali, o autor disseca uma característica da cultura do brasileiro, esse povo perdido por conta da colonização ibérica e criado sob o peso do credo católico. DaMatta nos diz que aqui há um certo “jeitinho brasileiro” por conta das relações de pessoalidade. “Você sabe com quem está falando?” seria a frase que mostra uma sociedade hierarquizada e carregada da criação corporativa que veio do mundo católico e foi institucionalizada por Vargas. O Estado patrimonialista descrito por outro autor, Raimundo Faoro, destruiu o nosso liberalismo, as concepções individuais, um ethos que fosse marcado pelo mérito e não pelo sobrenome ou cargo. Esse pessimismo quanto às nossas origens não nasceu com DaMatta e já teve críticas muito melhores do que as que esse autor poderia fazer. A ironia é que DeNiro criou (foi improviso do ator, não fazia parte do roteiro) várias formas de falar uma mesma frase: “Você está falando comigo?”. Ao contrário da idílica formação anglo-saxã, leitura que DaMatta nos permite crer, essa frase mostra a solidão atomística que o ator genialmente resolve: não olhe para mim. Caso persista, sacarei o meu melhor argumento: uma arma em sua direção. Ainda vai querer falar comigo? Esse encontro do ator com o antropólogo ao invés de gerar um maniqueísmo entre a cultura ibérica e a anglo-saxã deve nos alerta para um perigo maior: imagine as relações pessoais, o nepotismo, o patriarcalismo, o uso do sobrenome, presentes no mundo ibérico com o individualismo solitário anglo-saxão que tem como único argumento apontar uma arma para quem está olhando? O pior dos mundos seria a junção do malandro com um herói, um Travis que não aponta a arma para o espelho, mas para todos nós e tenta nos intimidar. Mas como quem cria cadeados antes criou a chave, não há solução sem que o problema tenha a sua solução. Para Travis a sua solução foi salvar a jovem prostituta do perverso mercado do gado humano. Para nós só há uma solução: salvar outra jovem nesse país. A democracia.

 
 

domingo, 18 de agosto de 2019

SÉRIE ESTUDOS: RESENHA DO LIVRO A GRANDE SAÍDA


A Grande Ferida


Para Maria da Conceição Tavares

Por Vagner Gomes de Souza

Desde a transição democrática brasileira (1979 – 1988) houve um gradual afastamento do social em relação à formulação da política. A trajetória de vitórias sindicais do “novo sindicalismo” emergiu sob tutela de uma americanização que foi se tornando hegemônica na sociedade com efeitos contraditórios. De um lado um partido de base popular emergia dos movimentos sociais (Partido dos Trabalhadores) enquanto uma esquerda propositiva vinculada ao tema da grande política declinava (entre suas várias vertentes há os partidos comunistas). Essa “cisão” permitiu um “vazio” na disputa eleitoral presidencial de 1989 que permitiu a vitória do programa neoliberal sob o comando de Fernando Collor.

As medidas econômicas do Plano Collor trouxe a primeira experiência da implantação do neoliberalismo ”puro” no país que se beneficiava de dessa cisão entre política democrática e movimentos sociais. A individualização dos sujeitos deixava no “embrião” essa conjuntura em que vivemos na atualidade. A luta do social pelo social, na verdade, só acelerou a despolitização da sociedade a medida que as classes subalternas se viram diante da “Terra Prometida” dos ganhos individuais sem a necessidade da organização coletiva.

Nos meios acadêmicos, a fratura social se embrenhou num mundo de “novidades” fragmentadas na “Nova História” e outras vertentes das Ciências Sociais encasteladas nos Departamentos Universitários. Falar em Pensamento Social Brasileiro seria uma forma política e democrática de resistência acadêmica que não se traduziu em pontes com a formação do ensino básico nacional. Assim, os pensadores da formulação econômica do país foram deixados nas prateleiras do esquecimento enquanto a economia nacional se estabilizava com o Plano Real e na sequência neodesenvolvimentista do Governo Lula/Dilma.

Contradições que aguardam um momento de reflexão do campo democrático pois vivíamos anos de declínio das desigualdades sociais. As forças democráticas não se renovaram para debater a economia política como um campo do saber que esteja a serviço da (re)distribuição de renda. O liberalismo sem a cultura política democrática foi gradualmente cooptado pelo senso comum que tem hoje a “teologia da prosperidade” de fortes núcleos pentecostais como militantes desse mundo sombrio a ser enfrentado.

Abriu-se essa grande ferida que permitiu agora a emergência de uma faceta do neoliberalismo  em segunda onda. O neoliberalismo “puro” se manifesta com a militância digital de grupos cientes da defesa da elite econômica e crítica até das ideias de um capitalismo de face humana. Vivemos o “pinochetismo fora de lugar” com setores militares compromissados com a memória de justificativa dos porões da Ditadura Militar (1964 – 1985) e doutrinados pela ideologia do antipetismo não se incomodam com uma política internacional submissa aos norte-americanos e ao empreguismo.

Esse é o momento em que a leitura do livro A Grande Saída: saúde, riqueza e as origens da desigualdade (Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2017) ganha um peso político para aqueles que defendem que a pobreza é a demonstração da injustiça social. O autor Angus Deaton não está no campo do marxismo, porém é um exemplo de um intelectual liberal comprometido com pesquisas econômicas que nos ajudam a demonstrar as consequências econômicas da nova orientação conservadora mundial. Portanto, merecidamente foi ganhador do Prêmio Nobel de Economia. Contudo, permanece desconhecido entre as forças políticas que defendem uma frente democrática ampliada contra as forças da tirania da “pós-verdade”.

O livro foi originalmente publicado no segundo mandato do Presidente Barack Obama (2013) aonde ainda havia a baixa percepção da durabilidade dos efeitos retrógrados na política depois da crise do capitalismo financeiro em 2008. Sua análise geral sugere que o mundo melhorou em muitos indicadores socioeconômicos, mas a persistência da desigualdade social seria uma “fronteira” a ser enfrentada com ação política. Aqueles que venceram precisam estender suas mãos para aqueles que ficaram atrás.

Não seria uma ação de caridade. Seria o exercício da solidariedade social como escolha e manifestação humana na política. Um diálogo do pensamento do autor com a sociologia de Durkheim nos permite perceber o quanto o papel da saúde tem um sentido maternal em diversas famílias. A solidariedade orgânica pelas agências internacionais (ONU, OMS, UNICEF, etc.) lhe permite entender o progresso como um fator que deve acolher o bem estar do mundo. A globalização poderia melhor observar os efeitos da redução da pobreza na Índia e na China nas últimas décadas. Por outro lado, o leitor sensível ao momento político contemporâneo compararia com os descaminhos que Brasil e Argentina vivem em anos recentes uma vez que as conquistas sociais desses “países chaves” do Cone Sul estão sendo retirados.

O livro é uma importante aula para que cuidemos das feridas existentes no campo democrático. Está dividido em três partes (“Vida e morte”, “Dinheiro” e “Ajuda”). O capítulo “Bem-estar material nos Estados Unidos” deveria ser reproduzido entre as forças progressistas para questionar as forças conservadoras que assimilam o americanismo como simples desenvolvimento das forças progressistas. Muito bem sabemos que há as contradições das relações sociais de produção e as escolhas políticas sobre o combate a pobreza sempre será uma saída no qual os defensores da democracia devem participar. Assim, A Grande Saída: saúde, riqueza e as origens da desigualdade é um livro “frentista” em oposição a as fraturas sociais que devoram a essência democrática da Carta Constitucional de 1988.