Taxi Driver ou Quando DeNiro e DaMatta se encontram
Dedico aos amigos
Amanda e Leonardo e à jovem Flora, futura condottiere
para melhores paragens.
Por Pablo Spinelli
Fazer uma análise sobre um filme
que tem como protagonista um motorista de táxi talvez seja um anacronismo
diante dos aplicativos de carros particulares que colocam esse ofício como uma
peça em extinção. Fazer uma análise sobre um filme dos anos 1970 talvez seja tão
antiquado quanto pensar em comprar uma autonomia de táxi no mundo das startups.
Porém, o filme é um dos maiores
expoentes do cinema da “nova” geração de Hollywood que floresceu nos anos 1960
e 1970; geração que dominou as telas e influenciou a política, os costumes,
vestuários, expressões no vocabulário e diretores mais jovens de todo o planeta.
Martin Scorsese foi e é um dos
maiores nomes de sua geração. Conseguiu ter maior longevidade artística que
seus contemporâneos, como Francis Coppola, George Lucas e Peter Bogdanovich.
Conseguiu passar por problemas pessoais melhor do que os que Woody Allen
enfrentou. Foi mais rico em abordagens temáticas e ousadias que o mais nerd do grupo, Steven Spielberg. A
carreira desse ex-seminarista dialogou da máfia ao budismo; da corrupção policial
à invenção do cinema sob o olhar de uma criança. Porém, mesmo que tenha feito
filmes sobre jesuítas (e Jesus) ou homens milionários loucos; sua temática mais
forte, seu laço mais afetivo provém dos personagens que lhe deram mais sucesso
nas telas: os subalternos; os fracassados; aqueles que buscam a redenção. Mafiosos de segunda categoria; boxeadores em
sua decadência; prostitutas; policiais corruptos; mulheres solitárias; e, por
que não, taxistas enlouquecidos, fazem parte do caldo mais interessante de
Scorsese.
Seus filmes dialogam muito com a
sua formação católica. O mundo perdeu um padre, mas ganhou um dos maiores
amantes e conhecedores do cinema de todos os tempos. Um diretor que tem em seus
filmes a questão da culpa, da moral ou sua ausência, da lealdade ou traição, o
amor e o pecado como seus motes principais. Taxi Driver talvez seja um dos
filmes que melhor traduzem tudo o que foi descrito acima, mesmo que para muitos
críticos seu melhor filme tenha sido “Os Bons Companheiros”, mas cremos que não
haveria Scorsese sem “Taxi Driver”, assim como provavelmente, não haveria
“Apocalypse Now” de Coppola sem esse ter feito antes “O Poderoso Chefão”.
No cinema há grandes parcerias. Os
mais jovens sabem que Samuel L. Jackson trabalhou em vários filmes de
Tarantino. François Truffaut, diretor francês, fez vários filmes com
Jean-Pierre Leáud. No Brasil, Glauber Rocha e Othon Bastos fizeram poucos, mas
memoráveis filmes. O diretor inglês Alfred Hitchcock tinha dois ícones, James
Stewart e Cary Grant para vários de seus filmes, fora o fetichismo com louras.
O cineasta sueco Ingrid Bergman trabalhou com os atores Max Von Sindow (o corvo
de 3 olhos de GoT) e Liv Ullman incontáveis vezes; Woody Allen teve como
referências Diane Keaton, Mia Farrow e Scarlett Johansson para seus trabalhos;
Ridley Scott com Russel Crowe desde “O Gladiador” ou o seu falecido irmão, o
também diretor Tony Scott com Denzel Washington; e, o caso mais mítico, a dupla
Federico Fellini-Marcello Mastroianni que entrou para a história ultrapassando
as fronteiras do cinema italiano. Algo mais próximo aos italianos talvez seja a
simbiose entre Martin Scorsese e aquele que foi o seu melhor alter ego entre os
anos 1970 e 1990, Robert DeNiro. As carreiras de ambos são indissociáveis.
Essas linhas, caros leitores, são para mostrar que a escolha de um elenco não
passa pelo acaso. Filmes ou personagens são pensados para determinados atores e
isso muito depende da ação do diretor.
Taxi Driver começa com um
indivíduo solto na multidão. Um homem de bem. A princípio. Um homem com insônia
que precisa do trabalho por terapia. Uma descrição da sociedade atomizada e de
alguns dos diagnósticos mais sombrios para a América escritos por Alexis de
Tocqueville no clássico “A democracia na América”. Eis que surgem as
referências de Scorsese. A música é hipnotizante, assim como as ruelas sujas e
o discurso moralizador do homem de bem de Travis Bickle, personagem de DeNiro.
A cena inicial estampa uma Nova York colorida pelo voyeurismo do personagem com
uma trilha de Bernard Hermann, compositor de alguns dos filmes mais importantes
de Alfred Hitchcock. Mas a homenagem de Scorsese a Hitchcock vai para além da
trilha.
Travis Bickle, um jovem de 26
anos consegue participar de uma frota de táxis e com isso, enquanto dirige,
torce para que um Deus da punição venha a descer a lenha sobre a Sodoma que ele
vê em Nova York, inclusive, sobre seus próprios passageiros. Eis que aparece a maior referência a
Hitchcock. Uma jovem competente, linda e loura (como as personagens centrais do
experiente diretor inglês de Psicose e Um corpo que cai) desloca o seu olhar da
podridão do espaço público. Eis que aparece Cybill Shepherd, uma Vênus que faz a apatia de Travis se desvanecer. Ele se
engaja em uma campanha política porque a sua Afrodite é do marketing e da
campanha de um político ao qual Travis não sabe o partido, o programa, nada.
Algo que nem a equipe do candidato pensa em traduzir, pois Scorsese faz ali uma
breve denúncia do sistema americano das eleições: os partidos como máquinas
eleitorais que vivem um sistema repetitivo e monótono de venda de embalagens,
sem conteúdo.
Travis engata um romance curto, vira um crush, ele e a
personagem de Sheperd estão se “conhecendo”, para usar os termos em voga. Só
que o conhecimento é trágico. O personagem de Bickle, que pode trazer antipatia
pelo que pensa enquanto homem de bem, nos dá um ar desolado por não saber aonde
levar sua “crush” ou o que dar de presente. A experiência de ambos em uma
sessão de cinema já vale o filme, ainda mais ao se saber que a atriz começou a
deslanchar a sua carreira em um clássico dos anos 1970 já esquecido: “A última
sessão de cinema”. A rejeição de Betsy (Shepperd) faz Travis descer ao inferno.
Mais trabalho como autômato. Começa aí a virada do filme, a Bandeira 2.
Porém, antes de fecharmos a corrida, vale destacar outro momento Hitchcock.
Esse diretor – que merecerá uma resenha para esse blog ainda esse ano – tinha
como uma de suas marcas fazer uma ponta em seus filmes. Era um êxtase descobrir
aonde apareceria o diretor. Egos à parte, Scorsese faz uma participação
pequena, mas brilhante no seu filme. Ele é o passageiro que é a síntese do
discurso republicano mais radical – e atual. Racista, misógino e com pretensão
a matar por possuir uma arma de fogo. Essa é quintessência do passageiro que
tem um prazer indisfarçavelmente masoquista em ver sua mulher branca o traindo
com um negro. Seu radicalismo assusta até Travis. Algo semelhante à família
Bush ouvindo o atual presidente dos EUA. Isso para ficarmos nos EUA.
Voltemos à Bandeira 2. Como já escrito, Scorsese tem sua veia católica. Há
a redenção. Travis é um esquisito, uma peça fora do lugar. Mas de forma muito
sutil o filme aborda algo que poucos destacam. A sua crítica à guerra do
Vietnã. Ao lado de filmes como “Amargo Regresso” ou “Nascido a 4 de Julho”, “O
Franco-atirador” e “Rambo” (sim, é isso mesmo, mas o primeiro!), “Taxi Driver”
fala do retorno dos soldados e seus traumas psicológicos e a dificuldade de sua
insersão ao sistema e como ficam descrentes da política, pois se viram
marionetes numa guerra que não entenderam o que foram fazer, como “Forrest
Gump” denuncia com galhardia.
Assim, para o caminho da salvação de Travis, o renegado, há o caminho de
Santiago quando ele se vê na obrigação de salvar outra loira – mais Histchcock,
numa alusão clara a “Um corpo que cai” – das mazelas do mundo. Assim é que
Jodie Forster faz um dos seus personagens mais marcantes do cinema, a jovem
prostituta menor de idade (tal qual a atriz que tinha apenas treze anos), Isis,
nome de uma deusa egípcia de grande poder, inclusive o de ajudar os mortos,
como é o caso de Travis, que coloca seu cabelo como o de um punk, um moicano
que assusta os espectadores, pois DeNiro mostra outro personagem com um simples
corte de cabelo. É outra persona. O Vietnã reaparece na selva urbana. E sua
missão é tirar a jovem Isis das garras de seu gigolô, vivido por Harvey Keitel
(amigo de infância de Scorsese e DeNiro, mecenas para Tarantino fazer seu
primeiro filme, pelo qual foi chamado de novo... Scorsese). O insucesso com a
Vênus terá sua redenção se houver o salvamento de Isis. As charadas do
excelente roteiro de Paul Schrader são espetaculares. A sequência final,
salientada pela fotografia em vermelho e escuridão é a descida ao inferno em
busca de uma Beatriz, como Dante de “A Divina Comédia”.
Uma curiosidade é que a personagem de Forster motivou a um jovem americano
a tentar matar o então presidente Ronald Reagan. Segundo o psicopata, era uma
forma de chamar a atenção de Jodie Forster. Taxi Driver, ironicamente, sugere
um atentado a um político em uma cena.
Outra curiosidade. DeNiro e DaMatta. Qual a conexão? O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta escreveu um clássico ensaio presente no livro Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro; no início dos anos 1980. Pois bem, ali, o autor disseca uma característica da cultura do brasileiro, esse povo perdido por conta da colonização ibérica e criado sob o peso do credo católico. DaMatta nos diz que aqui há um certo “jeitinho brasileiro” por conta das relações de pessoalidade. “Você sabe com quem está falando?” seria a frase que mostra uma sociedade hierarquizada e carregada da criação corporativa que veio do mundo católico e foi institucionalizada por Vargas. O Estado patrimonialista descrito por outro autor, Raimundo Faoro, destruiu o nosso liberalismo, as concepções individuais, um ethos que fosse marcado pelo mérito e não pelo sobrenome ou cargo. Esse pessimismo quanto às nossas origens não nasceu com DaMatta e já teve críticas muito melhores do que as que esse autor poderia fazer. A ironia é que DeNiro criou (foi improviso do ator, não fazia parte do roteiro) várias formas de falar uma mesma frase: “Você está falando comigo?”. Ao contrário da idílica formação anglo-saxã, leitura que DaMatta nos permite crer, essa frase mostra a solidão atomística que o ator genialmente resolve: não olhe para mim. Caso persista, sacarei o meu melhor argumento: uma arma em sua direção. Ainda vai querer falar comigo? Esse encontro do ator com o antropólogo ao invés de gerar um maniqueísmo entre a cultura ibérica e a anglo-saxã deve nos alerta para um perigo maior: imagine as relações pessoais, o nepotismo, o patriarcalismo, o uso do sobrenome, presentes no mundo ibérico com o individualismo solitário anglo-saxão que tem como único argumento apontar uma arma para quem está olhando? O pior dos mundos seria a junção do malandro com um herói, um Travis que não aponta a arma para o espelho, mas para todos nós e tenta nos intimidar. Mas como quem cria cadeados antes criou a chave, não há solução sem que o problema tenha a sua solução. Para Travis a sua solução foi salvar a jovem prostituta do perverso mercado do gado humano. Para nós só há uma solução: salvar outra jovem nesse país. A democracia.