domingo, 25 de fevereiro de 2018

CORRIDA AO OSCAR: A Forma da Água

 
O MUNDO LÍQUIDO DE GUILLERMO DEL TORO

Em homenagem ao centenário de Nelson Mandela

Por Pablo Spinelli
Autores emblemáticos das Ciências Sociais, Norbert Elias e Zygmunt Baumann, ganharam apelo popular e uma demanda mais juvenil a partir de inserções de parte de seus trabalhos nas últimas provas do ENEM. Ambos tiveram seus trabalhos reconhecidos na Academia quando já estavam numa idade bem madura. Algo semelhante ocorreu no campo da literatura com o português José Saramago, autor que convocaremos mais abaixo. O polonês Baumann e o alemão Elias trouxeram, cada um de forma específica, uma herança de outro “maldito” na Academia, Georg Simmel, hoje, bem mais popularizado que Sartre ou Durkheim no mundo universitário. Em todos os citados – à exceção de Saramago – há o problema da “questão judaica” como um obstáculo para seus nomes terem figurado em Universidades europeias. O que isso tem com a resenha de um filme? - o ansioso leitor ou a inquieta leitora pode se perguntar. O tema da modernidade que causa distância, o avanço do mundo urbano que cria isolamento, a polidez dos costumes e das pulsões dos indivíduos que em troca, recebem isolamento, o avanço dos direitos com a permanência dos outsiders. Todos esses pontos foram abordados – cada um com sua ênfase -  por Simmel, Elias e Baumann.


Pois bem, esses são os temas da belíssima fábula “A forma da água”. O mundo líquido aparece das mais distintas formas da vida rotineira e sem sentido da personagem vivida por Sally Hawkins. O líquido e o tempo. Tempo para acordar, para cozinhar ovos, para o prazer solitário no banho. Vítima da orfandade, cabe a essa subalterna que não pode falar, ser a guia da cooperação, tema caro a um outro  cientista social, Richard Sennett. Uma muda que fala mais do que todos, pois fala pela emoção e pela razão. A sua política é na defesa da humanização daqueles que são desumanizados nos anos 1960 em plena Guerra Fria – ambiente de The Post – os outsiders dos EUA que nos são tão próximos: uma mulher subalterna muda que é vítima de assédio; uma negra que convive com um machismo da classe subalterna; um idoso homossexual recolhido à nostalgia dos musicais; um espião soviético em território hostil. A unidade desse grupo ganha força e músculos quando decidem olhar o outro e perceber o quão ele pode ser humano se houver aquilo que é caro para outro “querido” do ENEM – o filósofo alemão Jurgen Habermas – a relação dialógica em tempos de intolerância. Esse grupo seria “Os Vingadores” do mundo das coisas reais.
 
A fábula de Guillermo Del Toro tem endereço certo: a intolerância e a violência personificada pelo competente Michael Shannon, cujo personagem militarista que estimula a indústria automobilística dos EUA com um carro azul-petróleo de forma sutil evidencia os patrocinadores do atual mandatário estadunidense. Além da aparecerem o racismo contra os negros e a homofobia.
O fato de o monstro aquático ter sido capturado na Amazônia em uma suposta ação frustrada de uma exploração dos EUA no petróleo da região nos evoca de Monteiro Lobato e a criação da Petrobras ao “bolivarismo”. A personagem feminina principal quer amizade, companhia e amor. Com isso, desbrava obstáculos e se aproveita da invisibilidade que as profissões subalternas têm para fazer a sua política de salvação do Outro- sob os auspícios de Carmem Miranda, uma das várias citações da música latino-americana no filme que lembram o que esse subcontinente contribuiu para a cultura mundial.
O cineasta dá indícios desde o início de como terminará sua fábula. O nome do cinema que cita o mito de Orfeu é claro. Além do mito de Orfeu, Del Toro, como bom representante da América Latina, nos coloca como filme do cinema vazio “A história de Rute”, a mesma que liberta Malon da sua pedreira, segundo a Sagrada Escritura.
 

Destacamos outra questão da película: como se inserir numa sociedade onde a tecnologia pode diminuir com o poder da arte individual e prefere a reprodutibilidade técnica como produto? Essa é a temática do embate entre fotografia e a ilustração. De forma sutil, é o embate do cinema vazio com os serviços de demanda cinematográfica doméstica. O cinema vazio é a demonstração da falta de sociabilidade tal qual o personagem que só consegue viver do passado mítico através da nova tecnologia: a televisão.
A presença feminina é importante. Enquanto em “O Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago, uma mulher conduzia a todos à liberdade, em “A Forma da Água” cabe a outra mulher, vítima de uma violência infantil que a deixou muda buscar o diálogo. Ressaltamos o papel do personagem coadjuvante espião comunista. Através dele temos uma noção do horror que foi a Guerra Fria, uma advertência para os saudosistas de “dias de um futuro esquecido”. A URSS da época da Crise dos Mísseis (enquanto The Post desconstruiu a imagem positiva de Kennedy, aqui o mesmo acontece a Kruschev) não era o “Paraíso Perdido”.
Por fim, a tragédia de uma Eurídice dos tempos modernos acaba por dar uma  volta no parafuso das teorias de Baumann. Será a liquidez, o fim dos tempos ou há espaço para a democracia, diálogo, leveza e amor quando houver a imersão da cooperação e da solidariedade em nossas mentes e corações?

domingo, 18 de fevereiro de 2018

CORRIDA AO OSCAR - The Post: a guerra secreta



THE POST: O RESGATE DO SOLDADO SPIELBERG
Em homenagem às três décadas da Constituição brasileira
Por Pablo Spinelli 
Steven Spielberg teve uma trajetória ziguezagueante na sua produção cinematográfica de quatro décadas. Foi rotulado nos anos 1980 como diretor para crianças e adolescentes a partir de filmes dirigidos ou produzidos por ele, tais como E.T., Indiana Jones, De Volta para o Futuro; Os Goonies, dentre outros clássicos da cultura pop daquela época. Esse rótulo acabou por diminuir algumas pérolas do cineasta. Antes de Ghost, um grande sucesso nos anos 1990, Spielberg já havia dirigido uma história de um fantasminha camarada (Além da Eternidade); dirigiu um dos mais belos filmes que associam o tema da escravidão com o protagonismo feminino (A Cor Púrpura) e expôs fantasia e guerra antes do filme italiano “A Vida é Bela” em “Império do Sol”. Nos anos 1990, cansado do rótulo de um desdém da Academia e da crítica ao conteúdo da sua obra apostou na temática judaica na II Guerra, apelo que sensibiliza sempre a Hollywood. Aí temos o clássico “A Lista de Schindler” e seu Oscar como diretor. Poucos anos depois encontra aquele que será seu melhor cúmplice como ator, Tom Hanks, no extraordinário “O Resgate do Soldado Ryan”. Apesar de um sucesso de bilheteria como Jurassic Park, seu público ou envelheceu ou lhe deixou de ser fiel, assim como a crítica já não lhe era mais benfazeja como se viu em filmes como O Terminal, Prenda-me se for capaz ou Guerra dos Mundos.
Após filmes de certa polêmica como Munique e As Aventuras de Tintim, o diretor enveredou para temas duros, sem se preocupar mais com o público e se desloca do centro político para um olhar de esquerda moderada, uma volta às suas origens de simpatizante declarado do Partido Democrata. Com o denso Lincoln (2012) quando sua história é a clareza de um Maquiavel que vê a política sem moral (moral sem a conotação do bem ou do mal, para deixar claro). Eis que o diretor volta à cena e dá um Oscar ao seu ator. Naquele filme Spielberg mostra o outro lado do “fim justificar os meios”. É esse o caminho que ele nos dá em A Ponte dos Espiões – ritmo lento, histórico, com densidade psicológica, silêncios, destaque para atores. Seu caminho do Maquiavel da República democrática culmina no recente The Post.
 
Steven Spielberg - Diretor de Cinema

A crítica brasileira associou o filme com o recente Spotlight. Mas entendemos de forma diversa. O filme é recheado de intertextualidade que exige um espectador ativo, que não tenha um olhar passivo aos detalhes. Spielberg talvez tenha construído sua obra mais exigente para a reflexão e participação d espectador. Há um duplo diálogo no seu filme. Um é obrigatório pelas exigências da História. O editor protagonizado por Tom Hanks é o mesmo que foi retratado no filme clássico e obrigatório “Todos os Homens do Presidente” (1976) e o jornal que denunciou os malfeitos do Presidente Richard Nixon é o mesmo, o The Washington Post. A homenagem ao filme que lhe antecedeu é simpática na passagem quando o futuro delator dos papéis secretos de Washington passa por uma sala cheia de cartazes, dentre eles, o do filme “Buth Cassidy”, co-estrelado por Robert Redford, que também co-estrelou “Todos os Homens”. Mas se por um lado Tom Hanks reforça o apelo democrata à liberdade de expressão num claro movimento de protesto ao discurso midiático contra a mídia de Donald Trump, o diretor e o roteiro desconstroem uma atriz que precisava de uma injeção de renovação que é Meryl Streep. No filme, mesmo sendo editora de um jornal familiar que está abrindo seu capital no mercado de ações – algo que mostra a gênese do comprometimento da mídia atual com seus acionistas mais do que com a verdade dos fatos – ela não é a “Dama de Ferro”, filme que fez interpretando Margareth Tatcher, porém, está mais próxima de outro filme que lhe deu grande projeção nos anos 1980, “A escolha de Sofia”. Ali, a personagem de Streep fica em vários dilemas: proteger amigos? Expor a verdade dos fatos? Preocupação com os acionistas? Ficar ou sair da zona de conforto? Quando faz sua escolha acaba por justificar sua “milésima” indicação ao Oscar. Sem bandeiras clichés do feminismo atual, a descida da personagem na escada é um exemplo do protagonismo da mulher cercada de homens, como se vê na redação de um jornal dos anos 1970, diferente dos telejornais e das rádios atuais.
Mas citávamos a intertextualidade do filme e a exigência que ele provoca quanto à atenção do espectador. Por que Clinton perdeu? Como a esquerda e o centro democrático perderam uma eleição para um Berlusconi americanizado? Para responder a essa pergunta Spielberg dialoga criticamente com outro cineasta ao longo do filme e com seu esquerdismo peculiar. Oliver Stone. Parte das obras de Stone aparece no filme como reforço ou para serem desconstruídas. Começa com Platoon. Avança para Snowden. Caminha para JFK, de onde há a maior autocrítica que um diretor democrata jamais fizera no cinema: Kennedy teve ordem ativa no Vietnã, diferente do que Stone colocou em “JFK”. Passa por um paraplégico ex-combatente em um protesto: Nascido a 4 de Julho. E termina com Nixon. O posicionamento de Spielberg e do roteiro são de deferência a Stone, mas ao mesmo tempo de crítica à crítica pela crítica. O filme ainda brinca mais com a intertextualidade. Homenageia Tom Hanks em dois momentos. O primeiro ao atender um telefone e ouvir que “nós temos um problema”, frase que ele deixou em Apolo 13. O segundo é o final, que faz lembrar o inesquecível Forrest Gump que “denunciara” o Watergate. Além disso, a escolha de elenco não é à toa, nos ensina Spielberg. As produções cinematográficas não são – em sua maioria – apenas para comer pipoca, conversar durante a sessão ou namorar. São para refletir também. Diante de um grande problema, o que fazer? Better call Saul. Para quem viu a série Breaking Bad ficará claro que a solução de um grande problema é resolvida pelo ator Bob Odenkirk. Mas a solução de verdade não está nas delações. Não está nos furos da mídia. Não está no protagonismo do Judiciário. A solução de verdade está na Constituição. Esse é o legado de Steven Spielberg.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Filmes de 1968


A Glória d`O Bebê de Rosemary
Por Pablo Spinelli
O cineasta Roman Polansky talvez seja mais conhecido por conta do processo judicial criado nos EUA ainda nos anos 1970, ou pela tragédia com a sua esposa (a atriz Sharon Tate) que foi vítima da invasão de um bando de fanáticos religiosos liderados por Charles Mason que culminou no seu violento assassinato da atriz Sharon Tate, que estava grávida. Os mais ligados ao cinema talvez lembrem do filme que lhe rendeu o Oscar de Direção, “O Pianista”, carregado de passagens de sua família e de sua própria história no período do gueto de Varsóvia determinado por nazistas, algo a ser revisto em dias das mais diversas segregações, de refugiados à Cidade de Deus, de mexicanos aos opositores na Venezuela. A minha obra favorita desse cineasta que trabalhou os diversos gêneros é o excelente “Chinatown” (1974). Filme que teve menor sucesso em premiações e nas citações dos amantes do cinema porque na mesma época foi lançado “O Poderoso Chefão – parte II”. Contudo,  o nosso foco aqui é o filme que completa meio século do então jovem cineasta, “O Bebê de Rosemary”.
Esse filme revisitou o gênero do terror sem recriar os antigos personagens como vampiros ou lobisomens, que estranhamente voltaram à moda.  Seu personagem maligno é a essência mais pura do Mal. Satanás. O filme seria muito ruim caso fosse dado para um cineasta dos EUA, com raras exceções. Polansky carrega em seus filmes muito do que aprendeu na Academia de Cinema da Polônia socialista, da literatura do centro-europeu e, curiosamente, uma adoração pela literatura brasileira a partir dos livros que via enquanto adolescente de Jorge Amado, como “Capitães da Areia” (de certa forma, um tema que reaparece em outro filme seu, “Oliver Twist”).  O que quero dizer com isso tudo? Não espere ver sangue derramado, gritos histéricos de adolescentes, uma música de estourar os ouvidos nos momentos mais tensos. É um filme que domina você lentamente e sem perceber, sua respiração fica mais ofegante, suas pálpebras abertas e a tensão psicológica criada pelo diretor é criada pelo silêncio e por sugestões.


A história é baseada em um livro de baixo valor literário, de Ira Levin. O Diretor conseguiu perceber nessa trama um paralelo com um dos enredos mais clássicos da Europa: Fausto. A história do homem que vende a sua alma ao Diabo é o argumento do filme. Mas o terror psicológico é que a alma vendida não é a sua. Ele permite que sua mulher, sem saber, gere o filho de Satanás. O mais sombrio é que isso parte de um casal de idosos simpáticos, vizinhos do ator que quer o sucesso e estrelato, vivido pelo grande e esquecido John Cassevetes e pela sua doce mulher frágil e um tanto submissa nos dias de hoje, a polêmica Mia Farrow. Será do seu ventre que nascerá o filho da contenda e da discórdia. Os idosos pertencem a uma seita e convencem o marido que a melhor forma de conseguir sucesso rápido é com o pacto com Asmodeu. Polansky usa um artifício antigo de Alfred Hitchcock. O espectador sabe o que está ocorrendo e sofre por não poder ajudar a jovem mãe, que desconhece toda a trama. Assim, ele nos faz de cúmplices silenciosos e indefesos do que pode acontecer. Mais não falarei por conta das síndromes de “spoilers” que tantos detestam.

 
Sim, e daí? Pergunta o paciente leitor dessas linhas. Por que falar de “O Bebê de Rosemary”? Por que fez 50 anos? Também. Pois manteve uma atualidade dramática que não envelheceu, com o elenco excelente – a vizinha idosa, Ruth Gordon, ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante, feito raro para um filme de terror. Mas a metáfora da venda da alma – anda mais quando não é a nossa, mas a do outro, por fama, sucesso, perenidade é algo que muito nos diz em uma modernidade líquida. Sem evangelismo na nossa proposta, perguntamos: o que e o quanto estamos dispostos a vender aos mais variados demônios do mundo para o sucesso, para a vingança, para a beleza eterna, para vitórias eleitorais que permitam que o poder fique na mesma família por duas, três gerações? Polansky nos convida a refletir sobre o ônus da glória, algo que ele sofreu e sofre – esotéricos vêem no filme uma maldição para a sua vida, esquecendo que ele reconstruiu sua carreira e sua família.  Outro ponto não menos relevante cabe à fortuna de Maquiavel. Ações que os homens não controlam.
O filme faz parte de uma trilogia básica para qualquer cinéfilo no gênero do terror moderno. Além dele há “O Exorcista” e “A Profecia”, os três extraídos de livros. Duas curiosidades. Spielberg teria se inspirado nessa onda de terror moderno, psicológico, para fazer um personagem maligno quase invisível, um tubarão. E o prédio onde foi rodado Bebê de Rosemary foi o mesmo onde John Lennon residia quando foi covarde e estupidamente morto anos depois. Morbidez à parte, o filme vale para o enriquecimento da cultura cinematográfica, para conhecer a obra rica de Polansky, para ver (ou conhecer) o tema do Fausto em tempos modernos. Será que uma família venderia sua alma para fazer parte de programas de televisão? Para o religioso Diretor, seu final nos diz que nos resta é esperar o Livro das Revelações. Antes que ele venha, veja o filme.