Grandeza de espírito do tempo
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
O país não está habituado
aos gestos de grandeza e como eles são cada vez mais raros na vida política,
surpreendem sempre.
Fez-se a pouco quando do aniversário
de 132 anos do Porto de Santos, onde há trinta anos, o saudoso David Capistrano
Filho (1948-2000), na época Prefeito da cidade pelo Partido dos Trabalhadores (PT)
também realizou aceno idêntico quando discursou em evento da campanha eleitoral
de 1994 para o governo do estado de São Paulo em favor da chapa do PSDB com Mário
Covas (1930-2001) e do atual Vice-Presidente do Brasil
Geraldo Alckmin.
Não resta dúvida que os
gestos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Tarcísio
de Freitas (Republicanos) representam um avanço político e institucional a ideia
de construírem junto o túnel imerso de 860 metros de extensão que ligará as
cidades de Santos e do Guarujá, no litoral paulista. A obra, que integra o novo
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e orçada em R$ 6 bilhões, foi anunciada
por eles e será executada por meio de parceria público-privada (PPP). A
conversa entre Lula e Tarcísio para pôr em marcha o projeto em benefício da
população é um gesto de grandeza tão raro nestes tempos de polarizações
improdutivas que precisamos celebrar.
Como se sabe desde
Maquiavel, a fortuna é sempre arredia à nossa vontade, mesmo quando somos virtuosos
e diligentes, e por isso que não temos como antecipar o resultado de nossas
ações.
No ano passado, Lula e
Tarcísio atuaram juntos na resposta à catástrofe das chuvas no Litoral Norte de
São Paulo. A aproximação, mais que necessária para facilitar o socorro às
vítimas, foi celebrada por políticos de ambos os lados, apesar de reações tacanhas
de estranhamento da militância obtusa.
Gestos desse tipo representam
perfis de lideranças profundas, expressões de grandeza na responsabilidade republicana
e democrática de governos em que se enseja certa ideia de Brasil que se aspira
em nossa Constituição ao longo desses 35 anos, capaz de combinar maior
bem-estar para todos e um processo de crescimento, estabelecido no horizonte econômico
que o tornaria possível ao mesmo tempo em que expandia e reforçava a vida
democrática.
A grandeza de uma vida pública
tem muitos ângulos que a compõem. Em primeiro lugar, os seus resultados, o
trabalho concreto, as transformações reais que a sua ação governamental produz.
Ainda que nas complexas
sociedades modernas se obedeçam a outras lógicas, articulando vários sistemas
dotados de movimentos próprios, em que, sob certas circunstâncias, como anotou
Gramsci, os "protagonistas são como que os fatos", que turvam o papel
dos atores na tentativa de condução das coisas do mundo.
Na experiência pregressa de
Lula os números são claros, a economia cresceu superando os obstáculos do
prolongamento da crise asiática, mas ao mesmo tempo a pobreza diminuiu
significativamente e a desigualdade de rendimentos diminuiu.
Um país entregue em 2011 quase
sem dívida pública e com grande prestígio econômico, social e político a nível
global. Mas a grandeza de uma figura pública não termina aí, mas sim na sua
capacidade de exercer liderança através do idealismo pragmático, parafraseando
a bela definição de Jeremy Adelman na sua esplêndida biografia de Albert. O.
Hirschman figura de destaque no desenvolvimento do continente americano.
Claro que, como em todo
percurso, houve erros, tropeços e até mesmo quem cometeu abusos e atos
desonestos que chocaram muito a opinião pública, apesar de a sua dimensão pouco
ter a ver com o que vimos mais tarde. Mas a grandeza de espírito do tempo está
na sua capacidade de aliar as suas convicções e a sua responsabilidade nas
palavras de Max Weber, de ter uma visão construída a partir do sentimento da
história, da curiosidade e de um olhar longo para o futuro, consciência de que
a representação democrática exige governar para todos.
Essas foram as marcas dos governos
de FHC que tiveram seguimento ao seu modo com Lula.
Esse andamento da política
brasileira foi duramente atacado que a fez perder a força motriz dos primeiros trinta
anos da democracia. Gradação, cooperação, acordos viraram palavrões. Eles se
tornaram, pasmem, o caminho de uma má política, contra todas as evidências dos
fatos. Toda virtude foi negada.
O Brasil pagou e paga caro
por esta pós-verdade e falsificação da história por ignorância e/ou
oportunismo.
Surgiram tendências na
direita e na esquerda para rever o método do caminho percorrido e especialmente
a esquerda radical e a extrema direita para negar o valor do que foi alcançado,
terminando assim numa confusão perigosa da qual temos tido dificuldade de sairmos,
como se viu no último dia 8/1.
Lula e Alckmin fizeram expressar no lema governamental a promoção da união de um país que, pela sua população e dimensão, está destinado a ser uma potência e um exemplo. Agora o fizeram com Tarcísio mais um gesto de grandeza, rara avis nesses tempos aziagos.
Nada deveria haver de
extraordinário nesse fato de políticos de filiações partidárias diversas se
unirem em questões cruciais. Sempre deveria ser assim, mas infelizmente tem
sido fato raro no país. Que o acordo Lula-Tarcísio venha inspirar doravante nossa
república e nossa democracia.
4 de fevereiro de 2024
[1] Presidente do Conselho
Deliberativo da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya
Educacional e da UniverCEDAE.