domingo, 27 de janeiro de 2019

OSCAR 2019 - Como nasce uma estrela

 
Nasce uma estrela: otimismo de uma vontade
Por Pablo Spinelli
Dedicado aos meus alunos e à memória das vítimas de Brumadinho
 
 
Bradley Cooper e Lady Gaga em cena do filme 
 
Nos dias atuais não é costumeiro usar uma resenha crítica de um filme para tergiversar sobre política. Nem sempre foi assim. Muitas resenhas sobre teatro, literatura e cinema sempre tiveram grandes intérpretes que faziam analogias entre as obras e a conjuntura da sua época, a trajetória do diretor, do escritor; a escolha e o método dos atores; os enfoques e sutilezas de um roteiro;  a escolha de cores num figurino ou de um ângulo da câmera ou ainda, a presença (ou ausência) da trilha sonora.  Assim foi com os famosos críticos franceses que viraram cineastas como Godard e Truffaut; com uma crítica na Itália com forte presença em periódicos de onde se destacou um Bertolucci; assim também o foi do Leste europeu socialista a uma New Yorker, revista considerada vanguardista nos EUA e, no caso brasileiro, há o exemplar caso de Paulo Emílio Sales Gomes, dentre outros.
A partir dos anos 1980, seja por mudanças nos cursos de comunicação social, seja por questões mercantis onde o espaço de uma folha de jornal tinha como meta o anúncio, a propaganda, as resenhas críticas – e aqui me fixo nas de cinema – caíram de qualidade tanto de analogia com a conjuntura política e social, quanto na capacidade de intertextualidade, salvo exceções como a do crítico Rodrigo Fonseca e o decano Ely Azeredo. O que o leitor se acostumou a ver foi a posição de bonequinhos, a quantidade de estrelas ou coisa que o valha. Bonequinho em pé, sinônimo de fila cheia. Uma estrela, condenação ao cadafalso do esquecimento. O valor do filme passou a ser meritocrático obedecendo a critérios subjetivos como excesso de explosões, currículo do diretor, pancadaria demasiada, ator carismático ou canastrão, dentre outros. Isso é muito pouco para qualificar uma obra.
Se assim o fosse, Sergio Leone jamais teria sucesso nos dias de hoje por escolher um ator com tão poucos recursos cênicos como Clint Eastwood para fazer a trilogia mais famosa sobre o faroeste americano, assim como Laurence Olivier poderia ser criticado pelos seus maneirismos teatrais levados à tela ou um Marlon Brando que parecia grunhir ou mastigas as palavras. Da mesma forma, a obra de Chaplin seria jogada ao lixo por conta do seu envolvimento com as atrizes de tenra idade ou Elia Kazan seria considerado um diretor menor por conta do seu apoio espontâneo ao macarthismo nos anos 1950.
 Dessa forma, colocamos que seja pela visão rasa determinada pelos espaços de informação, seja pelo subjetivismo político que torna o olhar da crítica muito reducionista e limitado por questões de natureza política, as resenhas viraram as costas para uma tradição belamente construída desde os anos 1920, para não ir além.
Longe de dizer que somos monopolizadores da forma correta de análise de um filme, não somos os únicos e  nem temos essa pretensão. Há blogs bons, mas a maioria se concentra no filme em si de forma primorosa, como o Adorocinema ou Omelete, mas pecam por não abranger mais a sua interpretação. Não podemos criar uma superinterpretação, ir para além daquilo que a obra nos proporciona ao olhar, sentir, dialogar. Mas, como nos ensinou Umberto Eco, podemos ter olhares sobre uma obra que o diretor não imaginou ou se imaginou, não publicizou. A obra de arte pode ser apropriada pelo espectador para dialogar com o seu tempo. Não só pode, como deve, pois se assim não o fosse,  a arte estaria condenada a ter mais e mais fatias de bacon e ser consumida como um sanduíche num fast food.
É muito comum ouvir os espectadores mais jovens falarem: “gostei”, “legal”, “chato”, “nada a ver”, “um porre, não entendi nada, muita viagem”. Não se pode subestimar o público. Claro que uns terão mais sensibilidade, outros menos. Há todo um capital simbólico de cada um, mas independente da formação prévia de quem vê um filme – e no caso do público jovem atual há poucas nuances de percepção e de expressividade como a colocada acima, independente das classes sociais ou gênero – o que se pode deduzir é que desde os anos 1980 e, principalmente, nos anos 1990 (quando o cinema brasileiro foi quebrado pelo governo do primeiro presidente eleito após a ditadura militar) e 2000 houve a falta de uma pedagogia molecular das massas para ver um filme a partir dos mais variados itens já expostos: trajetória do diretor; o que estava acontecendo no momento de sua produção e do ano de seu lançamento; as escolhas dos atores por aquele papel ou filme (nem sempre é o cachê); fotografia, música etc. etc. Isso não quer dizer que essa pedagogia tenha como compromisso fixar  o olhar para um determinado viés político ou ideológico, mas ao contrário, quanto mais olhares e interpretações mais a obra fica rica e ganha relevo e perenidade. Essa educação do olhar não é algo de um campo da esquerda. Começou nos vitrais da Igreja Católica do mundo medieval em uma sociedade iletrada, logo, acima de qualquer suspeita de marxismo extemporâneo, algo que se faz mundo nos dias atuais.
Essa longa digressão tem como objetivo mostrar o que permeará  nosso trabalho acerca não só dos filmes indicados ao Oscar, parceria iniciada no ano passado, mas também sobre séries e outros filmes que virão. Escolhemos para começar nossa conversa com vocês, prezados leitores, o filme “Nasce uma estrela” (2018), dirigido por Bradley Cooper.
O filme ganhou notoriedade pela ousadia e certo oportunismo do diretor de pegar uma história que já ganhou três versões no cinema (1937, 1954, 1976) e colocou uma cantora de grande sucesso para atuar. E conseguiu uma dupla proeza. Não só Lady Gaga atuou bem – o que não quer dizer que sempre o fará – como o próprio ator conseguiu sua melhor atuação (bem superior aos filmes que fez como Sniper Americano,  Trapaça, O lado bom da vida). Cooper deu ao seu cantor pop star decadente por conta de sua dependência de álcool e drogas uma voz que propositadamente imita ao do ator que faz seu irmão, o veterano e sempre bom Sam Eliott, uma rouquidão de uma vida cansada do estrelato, das turnês, da solidão e de um passado onde criou um mito que  desmorona ao longo do filme. Cooper já demonstrara em Guardiões da Galáxia o seu talento vocal. O seu bronzeamento artificial para algo californiano vindo de um cantor que veio do meio-oeste americano é uma demonstração do rótulo que a indústria produz.
Esses fardos fazem da sua vida um ritmo sem sentido, que acaba por ter sua epifania quando encontra uma  garçonete em um bar de drags queens cantando Edith Piaf e, com otimismo da  vontade, afirma que “a vida é rosa”. Aqui, o diretor homenageia uma das  mais importantes cantoras do século passado não só pela música como pelo ambiente com que Piaff começou sua carreira: cabarés, baixo meretrício, rodeada de meretrizes e cafetões. Lady Gaga é a Piaff do século XXI com melhor fortuna (em todos os sentidos). Sobre a Lady Gaga, há outra referência interessante no roteiro quanto às determinações estéticas da indústria, quando se refere ao nariz como obstáculo para uma carreira no show bussiness. Propositadamente ou não, a atriz que encarnara a então última versão de Nasce uma estrela, Barbra Streisand, sofreu muito por conta do seu nariz – referência para a criação da porquinha dos Muppets. Curiosamente, o filme rivaliza com outra película, que o vocalista de uma banda inglesa tinha dentes completamente fora dos  padrões  de mercado do entretenimento.
A história de amor dos protagonistas vai lenta como uma balada, mas segue adiante. Cooper não quis privilegiar o sentimento de posse que permeou as versões anteriores ao optar por um distanciamento agravado pelo escracho público, algo que podem destruir carreiras antes de um julgamento e de uma sentença, como o caso do duplamente oscarizado Kevin Spacey que se viu envolvido em um “Spotlight” para atores, que pode ser o primeiro passo para uma onda neoconservadora de costumes que os democratas não percebem que são os criadores dessa “marolinha”.
A partir dos dilemas da política dos EUA onde um ator do porte de Robert DeNiro foi ameaçado de morte de forma efetiva, qual a solução democrata para a reeleição de Trump? Paralisar o serviço federal ou dar estatuetas para mexicanos (como A Forma da Água ano passado ou Roma, esse ano) é muito pouco para uma nova política. Mas o filme de Bradley Cooper é provocativo para o caso dos EUA e para o nosso. Após Obama não se pensou na sucessão, em novas lideranças, na pedagogia cívica, na superação da crise econômica pela política, mas tão somente pela economia. Assim, a estrela que sobrou pode ter sido “a Estrela da Morte”, como adoram os  Siths. Porém, num viés do otimismo da vontade como já apontado por um cientista  político brasileiro, as novas estrelas estão por aí, podem estar num bar de drags, nas escolas públicas ou privadas, num combalido sindicato, numa ONG, num rapper, numa roda de samba. Nasce uma estrela permite a leitura de uma velha política que se vai – e vira uma estrela presa em uma constelação, não mais do que isso – e a nova política que vem  pelo mundo do interesse, do desejo, onde com treinamento, paciência virtuosa, disciplina, encantamento, pode nos dar a chance de novos pontos brilhantes aqui e alhures. Basta querer achar e fazer estudar o mundo das coisas reais. O filme é o misto do otimismo de uma vontade transformadora com o pessimismo da razão dos fatos da vida, mas essa, tal qual um rio, segue seu curso e cabe a velhos e novos marinheiros quererem dirigir as embarcações, mesmo que se esteja à beira de um precipício, como alude a bela (e possivelmente oscarizada) canção do filme.