Era uma vez
em Brasília
Por Vagner Gomes
“Não é nossa culpa
Nascemos já com uma bênção
Mas isso não é desculpa
Pela má distribuição
Nascemos já com uma bênção
Mas isso não é desculpa
Pela má distribuição
Com tanta
riqueza por aí, onde é que está
Cadê sua fração
Com tanta riqueza por aí, onde é que está
Cadê sua fração (...)”
Cadê sua fração
Com tanta riqueza por aí, onde é que está
Cadê sua fração (...)”
Faroeste Caboclo – O filme é um desafio para a geração que
nasceu após a morte de Renato Russo. Um compositor talentoso que foi “levantado
aos céus” como se fosse um neomessias de uma juventude sem bandeiras. Por isso,
há um estranhamento quando jovens entram ao cinema para ver um filme achando
que irão assistir ao “Vídeo-Clip”. Não é uma narrativa “fiel” a todos os versos
da música e nem pretende ser isso em nossa avaliação.
Faroeste
Caboclo é impactante pela ousadia de levar para as telas do cinema nacional o
estilo do “western” ambientado numa Brasília no começo dos anos 80. Tempos de
ditadura militar em que as “Cidades-Satélites” cresciam em pobreza e violência.
Portanto, uma referência que logo surge em nossa mente é o diretor Sergio Leone
através de duas obras: “Três Homens em Conflito” (1966) e “Era uma vez no Oeste”
(1968 ).
Cena de Era uma vez no Oeste (1968)
A primeira cena do filme só faltaria uma gaita como fez Enio
Moricone certa vez na história da trilha sonora dos filmes. Aliás, um bom “westen”
precisa de uma boa trilha sonora que fique na cabeça do público do filme.
Faroeste Caboclo – O filme acertou na trilha sob a condução do integrante da
banda Plebe Rude, Philippe Seabra ao deixar a execução de Faroeste Caboclo – A música
para o momento dos créditos. Outras músicas ganham destaque para reviver a memória
dos contemporâneos do rock nacional e para a nova geração.
O
diretor faz uma secularização de uma inspiração musical. Faz um duelo com
aqueles que desejam transformar a obra de Renato Russo numa filosofia
pós-moderna sem contextualizar. Portanto, a contextualização histórica aparece
em alguns momentos incidentais que o público “fundamentalista” deixa passar sem
muita atenção. A chegada de João de Santo Cristo em Brasília é ilustrada com
cenas da época dos “quebra-quebras” em 1980 que a imprensa pouco exibia na TV.
O slogan do Governo do último ditador militar, General João Baptista, aparece
na narrativa – “Plante que o João Garante”. As manchetes do jornal Correio
Brasiliense que servem para ilustrar as fotos na cadeia. Qual é a primeira
edição? Será que os “fundamentalistas” se lembram? Muito bem, trata-se de uma
referência ao atentado a bomba no RioCentro que foi importante para o
isolamento político da “linha dura” do regime militar de então.
Faroeste Caboclo sem "puritanismo"
Nesse aspecto, o filme inverte o culto a Renato Russo com sua
dessacralização e sua gradual aproximação ao momento político do rock nacional.
Além disso, o filme aborda outros duelos da sociedade brasileira. O geracional:
o Senador e a filha universitária. O social: “enquanto o rico projeta o pobre constrói”.
O racial: lamentavelmente uma parcela do público na região onde assisti (Zona
Oeste carioca) expressa seu “choque” com um romance intraracial entre João de Santo
Cristo e Maria Lúcia. Deixemos a hipocrisia de lado. Fazer o discurso de que o
filme tem cenas de sexo excessivas é um preconceito disfarçado em moralismo.
Que país é esse que observa “putaria” em uma heterodoxa
história de Amor entre uma branca e um negro? Vejam a poesia das cenas de
conteúdo adulto se desejar essa classificação dos tempos da CENSURA da
Ditadura. O Diretor muito bem conduziu esses momentos necessários para servirem
como um “soco” no estômago da nova geração de moralistas. As primeiras cenas há
um contraste da pele negra com a pele branca. Num segundo momento há a engraçada
brincadeira dos cômodos. Por fim, a cena da denúncia ao falso pudor. Numa sala
carregada pelo cenário de inúmeros quadros sacros os dois fazem amor até que
chega o Senador que expulsa os dois. Observem que não são mais de 5% da
película, porém o senso comum comenta como se fosse uma “pornochanchada” dos
anos 80.
O romance da citação ao Kunta Kinte
De fato, o filme expõe outras referências não captadas pelas
vertentes “fundamentalistas” que vão ao cinema. A citação de Kunta Kinte nas
boca de Jeremias é um convite a leitura do romance de Alex Haley para uma
percepção comparativa do escravismo nos Estados Unidos e no Brasil. O balde de
água vazio lembra “Vidas Secas”. Não podemos esquecer-nos de um pouco de “Deus
e o Diabo na Terra do Sol” se seguirmos nossa liberdade de leitura. Por fim,
para não alongar mais, as drogas e a vingança lembram o Diretor Quentin
Tarantino (“Pulp Fiction”, “Kill Bill Vol. 1 e 2” e “DJango Livre”).
Essa é a narração de uma história de um filme que não pode
ser simplesmente descartado por uma nova forma de “fundamentalismo”.
Estranhamente, uma nova geração que cultua ou pensa que cultua Renato Russo não
percebeu que ele era um libertário, ou seja, não aceitaria que sua obra fosse
uma doutrina ou estivesse distante da crítica social. Portanto, citamos uma
passagem da música “Até quando esperar”, que está na trilha do filme, ao começo
dessa resenha.
Três Homens em Conflito (1966)