sexta-feira, 15 de novembro de 2024

SÉRIE ESTUDOS - OTHON BASTOS EM "EU NÃO ME ENTREGO, NÃO"

O som e a fúria de Othon Bastos

Pablo Spinelli[1]

          No momento vivemos tempos explosivos, desafios à democracia, a elegia à ignorância, ao sectarismo. Bombas explodem na capital federal, central do Brasil, dias depois do lançamento do filme sobre a morte e a morte de Rubens Paiva. Donald Trump é eleito. Dentre outros motivos, por falta de história e por murros em pontas de facas equivocadas – a mais especial, o papel coadjuvante do tema da paz pelos democratas e pelos analistas políticos. O arauto da paz foi Trump. Uma velha pergunta ressurge: O que fazer?

          Eis que surgem lições, sugestões e um sopro de esperança com a peça “Não me entrego, não!”, de autoria de Flávio Marinho, a partir da biografia de Othon Bastos, que aos 91 anos, mostra seu amor ao teatro, à profissão de ator, sem firulas quanto à dureza do ofício de interpretar tantos que pode se perder em si mesmo, uma dialética entre o ego e o outro, numa conjuntura da supremacia do primeiro sobre o segundo.

          A peça com cerca de 90 minutos de duração é um tour de force de um ator que é um dos rostos mais marcantes no teatro, no cinema e na televisão. Bastos, com uma dicção perfeita, com um tom de voz e uso do corpo de forma quase sobrenaturais – segundo ele, esse mundo é que vaticinou sua carreira – tem o auxílio da “memória”, interpretada por Juliana Medela, que tem duplo papel: auxiliar com observações o autor nos seus 70 anos de profissão e ajudar o público mais jovem com o “momento Google” para ilustrar personagens que surgem na narrativa daquele que é considerado o maior ator vivo brasileiro.

          A narrativa de Bastos é muitas vezes atravessada pela História do Brasil, país que tanto ama criticamente desde seu início titubeante como colega de Walter Clark, um dos responsáveis pela Globo ser o que é com José Bonifácio Sobrinho, o Boni; passando pela formação na escola de Paschoal Carlos Magno (a referência de Agildo Ribeiro no personagem da “múmia paralítica” louco pela Bruna Lombardi) e em Londres, para uma formação shakespearena mais ou menos bem sucedida. Sua trajetória se firma no cinema com Alex Viany, cineasta comunista que o colocou no filme-denúncia “Sol sobre lama” (1963) e, principalmente no filme de faroeste à brasileira, “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), vivendo o cangaceiro Corisco, autor da frase que intitula a peça. Nesse momento, Othon é a síntese da formação do Brasil. Na crítica à sua escolha para esse papel por conta do seu físico, ele vira aos olhos um Quasímodo hercúleo, um baiano atarracado que vira um gigante de 2 metros e que pode lutar de igual pra igual na faca com Antonio das Mortes.

          Othon fala de seu casamento de mais de 60 anos, de sua participação em outros filmes, como a sua soberba interpretação em “São Bernardo”, baseado no livro de Graciliano Ramos; mas o que salta é seu amor pela palavra. Ao eleger o ano de 1973 como o ano mais especial de sua carreira ele nos traz um trecho de Um grito parado no ar, de Gianfrancesco Guarnieri. É o momento que o ator rejuvenesce 50 anos e parece que fala com os colegas de elenco numa atuação brechtiana.  O ápice emocional é a lista de nomes citados pela memória, como Fernando Peixoto, Guarnieri, Paulo José que o dirigiu em Murro em ponta de faca, texto que antecede sua fantástica reencenação de seu personagem arrivista em O Jardim das Cerejeiras, de Tchecov.

          Esse murro – no espectador por mostrar a força criativa do teatro e desse extraordinário ator; no governo que tem um Ministério da Cultura inerte e preso às amarras conceituais do que é o Brasil; no mercado, que não patrocina monólogo que não seja a comédia fácil e, na educação, que mostra a dificuldade do aprendizado da memória, da cultura e do patrimônio nacional, esse último representado por Bastos, aquele que viveu Tancredo Neves no cinema e divaga sobre o Brasil que poderia ter sido e do Brasil que ainda pode ser. Essa peça é um ato de resistência do teatro e traz à tona a importância pecebista no que houve de mais pujante e contundente na cultura brasileira. Othon conduz os nomes dos mortos à cena para lembrar que estarão sempre presentes e à mão para os mais jovens construírem uma retomada da cultura nacional popular democrática, tudo com otimismo da leveza e pessimismo da crítica.

Corram para ver Othon Bastos, esse Quasímodo hercúleo tem muito a nos dizer e a nos ensinar![2]



[1] Doutorando em Ciência  Política pela UNIRIO e professor de História da Educação Básica em Saquarema e no Rio de Janeiro.

[2] Não me entrego, não. Teatro Vanucci. Shopping da Gávea, terceiro andar. Sextas, sábados e domingos até 1 de dezembro.

Um comentário:

Olhares pela janela disse...

Peça belíssima! Vale cada segundo! Bastos é singular na interpretação e vivacidade. Uma poesia encenada! O professor Pablo escreveu brilhantemente, o que pude contemplar acompanhada da minha família. Parabéns professor, seus textos são de uma riqueza sincretica.