O som e a fúria de Othon Bastos
Pablo
Spinelli[1]
No momento vivemos tempos explosivos,
desafios à democracia, a elegia à ignorância, ao sectarismo. Bombas explodem na
capital federal, central do Brasil, dias depois do lançamento do filme sobre a
morte e a morte de Rubens Paiva. Donald Trump é eleito. Dentre outros motivos,
por falta de história e por murros em pontas de facas equivocadas – a mais
especial, o papel coadjuvante do tema da paz pelos democratas e pelos analistas
políticos. O arauto da paz foi Trump. Uma velha pergunta ressurge: O que fazer?
Eis que surgem lições, sugestões e um
sopro de esperança com a peça “Não me entrego, não!”, de autoria de Flávio
Marinho, a partir da biografia de Othon Bastos, que aos 91 anos, mostra seu
amor ao teatro, à profissão de ator, sem firulas quanto à dureza do ofício de
interpretar tantos que pode se perder em si mesmo, uma dialética entre o ego e
o outro, numa conjuntura da supremacia do primeiro sobre o segundo.
A peça com cerca de 90 minutos de
duração é um tour de force de um ator que é um dos rostos mais marcantes no
teatro, no cinema e na televisão. Bastos, com uma dicção perfeita, com um tom
de voz e uso do corpo de forma quase sobrenaturais – segundo ele, esse mundo é
que vaticinou sua carreira – tem o auxílio da “memória”, interpretada por
Juliana Medela, que tem duplo papel: auxiliar com observações o autor nos seus
70 anos de profissão e ajudar o público mais jovem com o “momento Google” para
ilustrar personagens que surgem na narrativa daquele que é considerado o maior
ator vivo brasileiro.
A narrativa de Bastos é muitas vezes
atravessada pela História do Brasil, país que tanto ama criticamente desde seu
início titubeante como colega de Walter Clark, um dos responsáveis pela Globo
ser o que é com José Bonifácio Sobrinho, o Boni; passando pela formação na
escola de Paschoal Carlos Magno (a referência de Agildo Ribeiro no personagem
da “múmia paralítica” louco pela Bruna Lombardi) e em Londres, para uma
formação shakespearena mais ou menos bem sucedida. Sua trajetória se firma no
cinema com Alex Viany, cineasta comunista que o colocou no filme-denúncia “Sol
sobre lama” (1963) e, principalmente no filme de faroeste à brasileira, “Deus e
o Diabo na Terra do Sol” (1964), vivendo o cangaceiro Corisco, autor da frase
que intitula a peça. Nesse momento, Othon é a síntese da formação do Brasil. Na
crítica à sua escolha para esse papel por conta do seu físico, ele vira aos
olhos um Quasímodo hercúleo, um
baiano atarracado que vira um gigante de 2 metros e que pode lutar de igual pra
igual na faca com Antonio das Mortes.
Othon fala de seu casamento de mais de
60 anos, de sua participação em outros filmes, como a sua soberba interpretação
em “São Bernardo”, baseado no livro de Graciliano Ramos; mas o que salta é seu
amor pela palavra. Ao eleger o ano de 1973 como o ano mais especial de sua
carreira ele nos traz um trecho de Um
grito parado no ar, de Gianfrancesco Guarnieri. É o momento que o ator
rejuvenesce 50 anos e parece que fala com os colegas de elenco numa atuação
brechtiana. O ápice emocional é a lista
de nomes citados pela memória, como Fernando Peixoto, Guarnieri, Paulo José que
o dirigiu em Murro em ponta de faca,
texto que antecede sua fantástica reencenação de seu personagem arrivista em O Jardim das Cerejeiras, de Tchecov.
Esse murro – no espectador por mostrar
a força criativa do teatro e desse extraordinário ator; no governo que tem um
Ministério da Cultura inerte e preso às amarras conceituais do que é o Brasil;
no mercado, que não patrocina monólogo que não seja a comédia fácil e, na
educação, que mostra a dificuldade do aprendizado da memória, da cultura e do
patrimônio nacional, esse último representado por Bastos, aquele que viveu
Tancredo Neves no cinema e divaga sobre o Brasil que poderia ter sido e do
Brasil que ainda pode ser. Essa peça é um ato de resistência do teatro e traz à
tona a importância pecebista no que houve de mais pujante e contundente na
cultura brasileira. Othon conduz os nomes dos mortos à cena para lembrar que
estarão sempre presentes e à mão para os mais jovens construírem uma retomada
da cultura nacional popular democrática, tudo com otimismo da leveza e
pessimismo da crítica.
Corram
para ver Othon Bastos, esse Quasímodo hercúleo tem muito a nos dizer e a nos
ensinar![2]
Peça belíssima! Vale cada segundo! Bastos é singular na interpretação e vivacidade. Uma poesia encenada! O professor Pablo escreveu brilhantemente, o que pude contemplar acompanhada da minha família. Parabéns professor, seus textos são de uma riqueza sincretica.
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