domingo, 16 de julho de 2023

SÉRIE ESTUDOS - RUY GUERRA NO TEATRO COM DOM QUIXOTE DE LUGAR NENHUM

Ruy Guerra fotografado em O Globo

A Utopia de Guerra

Vagner Gomes de Souza

Ruy Guerra poderia ser reconhecido como um exemplo de um intelectual marcadamente formado pelo lusotropicalismo (se Gilberto Freyre me permitisse a ousadia). Nascido em Lourenço Marques – que os “decolonias” localizem a cidade nos dias atuais – em 22 de agosto de 1931 foi estudar cinema em Paris em 1952 e se radicou no Brasil no simbólico ano de 1958 em plena época do ápice do nacional desenvolvimentismo sob a condução da moderação mineira de Juscelino Kubitschek. Em nosso país, estreou no cinema em 1962 com Os Cafajestes – primeiro filme de nu frontal do cinema nacional – e se uniu ao movimento do cinema novo com Os Fuzis (1964). Sua identificação com os temas políticos sociais urbanos se faz presente no filme A Queda (1978) em que o tema da segurança do trabalho numa obra do metrô do Rio de Janeiro é abordado no ano das greves do ABC. Sem falar na sua vida social que mereceria um belíssimo documentário sobre as fases do feminismo brasileiro se assim houvesse uma diretora disposta a estender esse lugar de fala para tal desafio. Lamentavelmente seu xará Rui Castro ainda não lhe dedicou uma merecida biografia.

Todavia, deixamos a presença de Guerra no contexto do Teatro Brasileiro para merecido destaque, pois sua peça “Dom Quixote de Lugar Nenhum” está em cartaz no Teatro Oi Casagrande (Rio de Janeiro)[1] com preços populares. A peça é um musical (lembrai-vos de Chico Buarque e Ruy Guerra em “Calabar” nos idos de 1973 a enfrentar a censura da Ditadura Militar de onde emergiu a belíssima “Tatuagem”) que é um gênero que o fez dirigir a primeira encenação de “Ópera do Malandro”. Estrelada por Lucas Leto (um Quixote nordestino que foi batizado como Queixada) e Claudia Ohana (atuando como uma satânica anti-heroína) – curiosamente sem trabalhar com o diretor desde o marcante ano de 1989. O musical tem as músicas de Zeca Baleiro numa parceria que mereceria um melhor destaque para os críticos musicais – rarefeitos nos dias da Inteligência Artificial cantada numa publicidade. A história do aragonês Cervantes é inserida no contexto do Nordeste brasileiro para lembrar que ainda temos esse peso demográfico em nossa formação cultural.

Lucas Leto faz história ao ser o primeiro Dom Quixote negro
Reprodução/Instagram

Sob cuidadosa Direção de Jorge Fajalla (premiado por "Senhora dos Afogados"), observamos as cores da iluminação em palco que impactam a visualização do espectador como se fossem as cores de um Almodóvar brasileiro ou de uma Frida Kahlo sem dar seus cochilos. A escolha do musical em forma de cordel foi muito acertada diante de uma apresentação do Coral como se fosse uma “geringonça cultural”. Cego seria quem não quer estar a ver que deixar a escolha da narrativa feita por um personagem com baixa acuidade visual para lembrarmos que os desafios que estão por vir são tamanhas aventuras.

 Entretanto, os tempos são distintos daqueles em que emergiu “Calabar”, pois estava a sociedade brasileira embriagada pela “utopia” de derrotar as forças reacionárias até na aproximação amorosa de Barbara e Ana de Amsterdam sem abandonar a universalidade do debate da questão democrática por linhas do relativismo. Há 50 anos o texto que enfrentou os censores nasceu após a tradução de O Homem de La Mancha (musical da Broadway). Ruy Guerra e Chico Buarque deixaram o projeto pois teriam que trazer os elementos culturais luso-brasileiros para o teatro. Então, em tempos de escolas a ensinar a disciplina Moral e Cívica (que não impediu o surgimento do rock nacional nos anos 80), eles decidiram desenvolver uma peça sobre o elogio da traição uma vez que muitos defensores da Frente Democrática eram denunciados como “traidores e vendidos”. Nosso agraciado com o Prêmio Camões qualifica essa peça como sua única obra política. 

O mesmo não poderá afirmar Ruy Guerra, que em sua eterna busca movida pela utopia de dias melhores pode até reconhecer ter chegado a Lugar Nenhum. |Entretanto, está disposto a continuar na trilha das aventuras com as vitórias adiadas e, quiça, sua aposentadoria.  Portanto, Queixada é o nosso Guerra que ao longo de sua vida intelectual foi transitando da “Guerra de Movimento” para a “Guerra de Posição”. Uma peça em dois atos, mesmo que não se anuncie isso em lugar nenhum, podemos assimilar que a personagem Sancho Pança (interpretado por Danilo Moura) ganha outro tom com sua alma atraída pelo Diabo na Terra do Sol. Digamos que é uma forma suave de provocação ao público que se ausenta de continuar acreditando em fazer as aventuras pelo simples individualismo ou pragmatismo. A dialética sem síntese entre Queixada e Sancho é um alerta para que as novas gerações se dirijam ao Teatro para entender que a esperança se faz com ações não somente digitais. Essa é a utopia de Guerra, ou seja, que os mais novos venham a ocupar os assentos das plateias seja no cinema e nos teatros para viver as aventuras das lágrimas e dos risos como ato de resistência.

[1] Até 23/07/2023 Local: Teatro Casa Grande - Avenida Afrânio de Melo Franco, 290 – Leblon

Horário: Quinta a Sábado às 20h | Domingo às 18h

 






3 comentários:

José Bezerra de Oliveira disse...

Sempre um ótimo texto. Compartilhando!

Anônimo disse...

Excelente texto!

Pedro Ellis disse...

Quanta informação em um texto tão pequeno. Vagner sempre colocando nossas cabeças para trabalhar bastante! --- Fui aluno de Ruy Guerra na faculdade de cinema - e o cara é incrivel. Suas aulas eram maravilhosas e humanas. Vou ver a peça essa semana. Grande Abraço!