quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

BOLETIM ROMA CONECTION/EDIÇÃO EXTRA - O BICENTENÁRIO DE DOSTOIÉVSKI


Um lugar ao sol para Dostoiévski

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Nos idos de 4 a 6 de outubro de 2021 a Universidade Estatal de São Petersburgo, com o apoio de várias instituições, realizou o V Foro Internacional "Rusia e Iberoamérica en el mundo globalizante: historia y perspectivas". Naquela ocasião apresentamos A Pandemia da Desigualdade Global & O Futuro Planetário, bem como saudamos os irmãos russos do nosso bicentenário partidário da Rússia Americana.

Na ocasião recordávamos a exclamação de Fiódor Pávlovitch Karamázov, o personagem sombrio e cruel que abalou a vida de seus filhos no romance Os Irmãos Karamázov (1879).

– Por enquanto ainda sou um homem, apesar de tudo, tenho apenas cinquenta e cinco anos, mas ainda quero permanecer uns vinte no rol dos homens, porque vou envelhecer, ficar um trapo e elas não vão querer vir à minha casa de boa vontade, e é por isso que vou precisar de um dinheirinho. É por isso que venho juntando cada vez mais e mais só para mim, meu amável filho Alieksiêi Fiódorovitch, que fiquem vocês sabendo, porque quero viver até o fim em minha sujeira, fiquem vocês sabendo. Na imundice é que é mais doce: todos falam mal dela, mas nela todos vivem, só que às escondidas, enquanto eu sou transparente. Pois foi por essa minha simplicidade que todos os sujos investiram contra mim. Já para o teu paraíso, Alieksiêi Fiódorovitch, não quero ir, fica tu sabendo, e para um homem direito é até indecente ir para o teu paraíso, se é que ele existe mesmo. A meu ver, a pessoa dorme e não acorda mais, descobre que não existe nada; lembrem-se de mim se quiserem, e se não quiserem o diabo que os carregue. Eis minha filosofia.

Duzentos anos se passaram desde o nascimento do escritor russo (1821-1881), que morreu pouco antes de atingir a sexta década de vida. Este russo cuja vida era comum e que conseguiu mostrar a tragédia que acompanhou a pobreza da sociedade russa daqueles tempos: servidão desde a época medieval (e renovada na primeira metade do século XVII), apesar dele estar situado no coração do século XIX europeu; camponês, apesar do czarismo se dizer aspirante aos ventos iluministas franceses de sua burguesia nascente e seus tribunais; relutante em face da ilustração apesar de ter dado origem a um conjunto de escritores extraordinários que alteraram a alma da literatura e do sentimento da humanidade. Fiódor Dostoiévski, ele mesmo epiléptico, é encurralado numa reunião de pessoas que faziam oposição ao regime do czar Nicolau I e é condenado a ser fuzilado, para mais tarde comutar sua sentença por outra de trabalhos forçados na Sibéria, onde longos anos de vida do escritor se passam; anos amargos e lentos enquanto ele os desenha nas suas Recordações da Casa dos Mortos (1862).



Em seu ensaio sobre Dostoiévski, o crítico da carnavalização Mikhail Bakhtin (1895-1975) observa que a alma russa é capaz de se embriagar com sua própria perdição, e enfoca o perfil poético e filosófico que o escritor faz do sofrimento: o sofrimento é um dos meios pelo qual nós humanos somos capazes de tomar consciência das coisas. Bakhtin percebe em Dostoiévski as origens dos naródniki (versão clássica russa do populismo - que nada tem a ver com as polifonias que o conceito adquiriria no tempo e espaço), mas trágico e permanente, como escreve seu no primeiro romance Gente Pobre (1846): "Os pobres e os desgraçados deviam viver longe uns dos outros, para que as suas misérias não se agravassem mutuamente." Dostoiévski era viciado em jogos de azar, em roleta, em ser vítima da força do acaso. Em O Jogador (1866), descreve claramente a vocação russa para o abismo que se abre quando se está a ponto de perder tudo. O romance confessa que o russo joga para perder, não para ganhar; se no jogo não houvesse possibilidade trágica de perder tudo, não seria mais interessante para o temperamento econômico vigente na pasta brasileira afeta.

O livre arbítrio foi o problema filosófico mais profundo e óbvio revelado na maioria de suas obras. O livre arbítrio dá origem à existência do bem e do mal e, portanto, à culpa e/ou arrependimento, à dúvida moral, como o observamos no que se tornou seu romance mais famoso Crime e Castigo (1866). A liberdade impede a felicidade, pois, se o livre-arbítrio existe, seria necessário escolher com responsabilidade e assumir o controle até dos acidentes do acaso. Ele também fecha o paraíso terrestre e sabe que a razão e/ou a verdade não impedem o sofrimento, o desastre moral em curso para Bárbara de Um lugar ao sol, as adversidades que afetam todo russo, toda a humanidade que usa a razão para acreditar que pode abalar e/ou construir uma vida feliz. Já em Memórias do subsolo (1864), Dostoiévski escreveu: "não se podia sequer culpar as leis da natureza, embora, realmente, as leis da natureza me ofendessem sempre e mais do que tudo, a vida inteira."

No portal de entrada do terceiro ano da pandemia poderíamos dizer no espírito russo de Dostoiévski que a barbaridade da barbárie grita tanto quanto a barbárie da barbaridade, mas esses aspectos das pluralidades de vozes e consciências independentes e distintas típicas de suas personagens expressam suas capacidades de exporem e contrastarem diferentes visões das realidades representadas, e daí o que seus universos e multiversos que, sem se fundir, se combinam na unidade na diversidade da vida concreta e, as vezes, podem apontar para um outro mundo possível melhor planetariamente.

Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 2021

[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


Um comentário:

dallanbaber disse...
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