segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: INFILTRADO NA KLAN

 
INFILTRADO NA KLAN: SPIKE LEE FAZENDO A COISA CERTA

Dedicado a um certo capitão Rodrigo, um infiltrado
Por Pablo Spinelli
A construção de um pensamento de um intelectual pode, em muitas vezes, sofrer flexibilidades, mudanças, rupturas, reposicionamentos, aprofundamentos, autocrítica, enriquecimentos de acordo com o avançar da idade. Não é uma lei, mas é o que ocorre na maioria das situações dos escritos deixados por filósofos, escritores de ficção, poetas, pintores, cantores em geral. Um caso de uma percepção arguta, perspicaz das mudanças dos tempos, das variações de um público ao longo de décadas é da extraordinária e multifacetada Bibi Ferreira que nos deixou recentemente. Dos musicais americanos traduzidos para a nossa língua; das comédias de costumes e clássicos de nossa literatura, a atriz mais idosa até há pouco em atividade no país chegou à “Gota D’Água”, musical de Paulo Pontes e Chico Buarque que adaptava o clássico grego, a tragédia Medéia, para o Brasil dos anos de chumbo da década de  1970. Foi Bibi Ferreira que popularizou para as gerações com mais idade a vida e obra de Edith Piaff, antes do excelente filme que nos revelou Marion Cotillard.  Peça política, musicais americanos, divas – além de Piaff, a portuguesa Amália Rodrigues. E muito, muito mais.
Para além da devida homenagem para Bibi Ferreira, podemos usar – a não sem polêmicas – distinção entre “jovem” e “velho” para vários pensadores, onde geralmente, o primeiro adjetivo tem uma carga de arroubos, de insights que se revelariam mais tarde na obra madura, o jovem, como tal, seria o voluntarista, extremista na análise da vida – seja pelo excesso de otimismo da mudança, seja pela perspectiva pessimista que nada há de se fazer. Foi gasto uma energia muito grande para encontrar rupturas e continuidades entre o “jovem” e “velho” Marx, um labirinto que o filósofo Louis Althusser criou e poucos querem sair. Assim aconteceu com Hegel, Tocqueville, Sartre, além dos clássicos gregos, para citar alguns. Claro que o tempo pode gerar mudanças para o bem ou para o mal, depende de quem lê. Do idealismo para o materialismo; do liberal conservadorismo para o reacionarismo, do radical para o moderado, isso tudo fica a gosto do freguês. Há certos parâmetros que procedem. Uma dessas divisões que já é clássica na literatura acadêmica é o caso do jovem Gramsci, cheio de revolução nos capilares, que achava que a Revolução de 1917 contrariava O Capital, com o Gramsci mais velho na cadeia, onde revê seus erros naquela conjuntura, afinal, dissera que o fascismo seria breve. Algo que não viu ao passar de cárcere em cárcere pelas mãos daqueles que ocuparam o poder em 1922 e só saíram oficialmente em 1944, não pela ação do movimento da política na sociedade civil, mas pelo uso da guerra de movimento das tropas aliadas, dentre elas – como tão simbolicamente ficou retratado em A Vida é Bela – a dos EUA que ampliaria o seu americanismo e fordismo pela Europa Ocidental.
Após essa longa introdução cujo objetivo é dizer que uma obra só não sintetiza o pensamento de um autor; que a ruptura entre “jovem” e “velho” não quer dizer que seja progressiva e, em alguns casos tal distinção nem existe, e, não menos importante, identificar que muitos dos que participam com veemência da paranoia instituída por alguns intelectuais e youtubbers que Gramsci com seu “marxismo cultural” foi o patrono da destruição dos valores ocidentais, não leu um terço do que esse autor, professor de Letras, crítico de teatro, escreveu. Mas, vamos ao que interessa: o que isso tem a ver com cinema e Oscar?
Alguns autores marcaram suas obras por certas idiossincrasias a ponto de ser fácil reconhecer o diretor pelo filme. A loira de Hitchcock, diretor que já dizia quem era o culpado logo no início do filme (exceção é Psicose). O personagem Antoine Doinel, alter-ego na maior parte dos filmes de Truffaut. As questões psicanalíticas e o inconformismo monogâmico de Woody Allen. Os personagens da periferia urbana, como taxistas e gangsters de Scorsese. Os silêncios e os enquadramentos de Ingmar Bergman. O surrealismo de Luis Buñel.  O exagero circense e rabeleisiano de Fellini. A câmera na mão e as alegorias de Glauber Rocha. Hoje, alguns remanescentes do que seriam diretores-autores, são Tim Burton, Wes Anderson e Quentin Tarantino. Suas digitais estão em todos os seus filmes de forma perceptível. No caso do diretor Spike Lee, se tivermos que buscar um espaço a partir de sua trajetória, ele está mais para as mudanças entre o “jovem” e o “velho” colocadas no nosso preâmbulo, prezados leitores, do que o diretor que mantém sua marca sem abrir mão de seus conceitos visuais estéticos e de abordagens de roteiro.
 
Spike Lee é um diretor que começou jovem no início dos anos 1980. Começou com documentário que tratavam de forma virulenta o tema do racismo contra os negros. A questão da identidade negra está presente desde sua infância, pois nascera em Atlanta, no sul dos EUA, o mesmo Estado retratado no clássico do cinema que defendeu a causa sulista na Guerra de Secessão, “...E o vento levou”. Sua juventude foi no Brooklin, local onde a vida societária é segmentada: brancos, latinos, negros, orientais. Sua carreira deslanchou no filme Faça a coisa certa (1989) onde aponta uma metralhadora giratória para todas as etnias que teriam como denominador comum o preconceito. Seu filme mais ambicioso – herdeiro de seu início como documentarista – é o polêmico Malcolm X (1992) que foi encarnado magistralmente por Denzel Washington que perdeu para o Oscar porque havia um Al Pacino cego dançando tango. Por falar em dança, Spike Lee, admirador confesso de um cantor de cabelo afro com uma voz singular e uma dança singular, Michael Jackson, acabou por produzir um dos seus álbuns e disse que passou pela filmagem mais difícil de sua vida ao subir em uma comunidade (Dona Marta, em Botafogo) onde o tráfico garantiu a segurança de sua equipe. E assim foi feito o clipe de They Don’t Care About Us, de 1996.
Spike Lee com um cantor que estava sendo alvo de bombardeios por conta de motivos inconfessáveis não assumia sua negritude. Esse é um Spike Lee diferente da pauta da identidade, da valorização da diferença como forma de ampliar direitos. Michael Jackson acabou por ser um ponto gradativo da virada de um diretor que começou a visar os problemas políticos da política americana para além da pauta de um ou outro movimento. É o Spike Lee da frente política. Um dos filmes mais “estranhos” para alguns críticos do já sexagenário diretor é O plano perfeito (2006), estrelado por Denzel Washington, Clive Owen e Jodie Forster. Esse filme, sem querermos adiantar sua trama, é a semente que floresce em Infiltrado na Klan (2018).
A partir de um episódio real que parece inacreditável, Lee resgata a trajetória de um policial negro que consegue se infiltrar na KKK através da sua astúcia e da tecnologia da época: telefone com fio. Spike Lee começa o filme fazendo um ajuste de contas com o seu Estado de origem. Aparece Scarlet O’Hara perdida entre centenas de feridos do Sul à procura de “seus  negros” diante daquele massacre. Logo em seguida, uma homenagem aos filmes que eram tinham diretores e elencos negros (é, leitor jovem... Pantera Negra e Corra não colocaram o ovo em pé), o que foi chamado de blaxpoitation. O mais famoso deles foi Shaft (1971). A musa foi a atriz Pam Grier, a mesma que foi resgatada por Quentin Tarantino em Jackie Brown (1995).
O curioso é que ainda há um pouco do jovem e intempestivo Spike Lee no atual. Um exemplo disso foi uma polêmica onde acusou Tarantino de ser racista por conta do vocabulário que seus personagens de todos os tons de melanina aplicam aos afro-americanos. O estopim foi Django Livre (2013). Tarantino respondeu que além de ter trabalhado com Pam Grier, é notória sua relação com Samuel L. Jackson, além de ter revelado para o grande público Ving Rhames, o temido Marcellus Wallace de Pulp Fiction (1994). O resultado disso foi a provocação com mais dureza ao personagem de Samuel Jackson em Os oito odiados (2015). O ponto paradoxal é que a abertura do filme e algumas cenas e falas remetem justamente a filmes de Tarantino. Seria um indicativo da mudança do radicalismo do diretor?
Infiltrado na Klan é um filme de narrativa irregular. Tem pontos que parece documentário. Outros, drama, outros, comédia de erros (como as dos Irmãos Coen). Não deve ganhar nenhuma estatueta, na melhor das hipóteses, por conta da ardente paixão de Spike Lee, o Ken Loach americano, a de roteiro adaptado. Porém o filme tem méritos. Revela um ator que lembra aos espectadores de mais de 40 anos os maneirismos de outro ator negro (preto, afro-americano) Richard Pryor; o protagonista e herói improvável John David Washington. Um caso semelhante ao do clã Carradine e de Michael Douglas, o poder da genética: o policial que trabalha usando a lei e a política de unidade com um policial judeu contra o racismo é filho do mesmo ator que fez o ativista Malcolm X, Denzel.



O policial judeu vivido por Adam Driver nos trouxe a percepção da má condução dos últimos filmes da franquia de Star Wars. Adam Driver é ator, e dos bons, e não um genérico mal resolvido de neto de Darth Vader. No filme há a presença do ator, cantor e ativista Harry Belafonte, uma das maiores vozes contra a segregação racial no século passado. Todo o elenco de brancos racistas foi bem conduzido pelo diretor e seu roteiro. Infiltrado na Klan nos faz acreditar que Spike Lee ao ver o resultado da última eleição presidencial dos EUA se perguntou: por que perdemos? Lee saiu do Brooklin, de Nova Yorque, do Bronx. Foi para a América profunda do escritor William Faulkner, do dramaturgo Tenesse Williams. Infiltrado na Klan tem muito a dizer para o Brasil atual. Primeiro, porque uma parcela da esquerda ainda acredita que movimentos que apostam cada vez mais na diferença terão mais força do que um princípio da universalidade – quem valoriza a diferença é o extremista conservador, como os membros da Klan, os nazistas, os homofóbicos, os misóginos, como nos revelou o professor Antonio Pierucci no livro As ciladas da diferença (1999).
Segundo, porque parcelas dessa mesma esquerda ignoraram o Brasil profundo, o brasileiro das pequenas e médias cidades; os  brasileiros de Barradinho, do interior de Goiás, Tocantins, Roraima. Terceiro, assim como já fizera em o Plano perfeito, Spike Lee convoca os judeus americanos para dizerem em Infiltrado que está tudo na mesma cruz a pegar fogo. Para superar uma provável reeleição de Trump é necessário invenção na política, criatividade. Obamas e Clintons. A personagem ativista feminista seria uma jovem Michelle Obama? Mulher, negra e protestante. Por fim, mas não menos importante, será que teríamos ineptos que não perceberam que havia um infiltrado no governo que num conchavo com a maior emissora do país passava vazamentos sobre movimentações financeiras? Ou isso é cortina de fumaça para encobrir o que o público conservador adorou, foi ao delírio, quando ouviu o diretor de Marighella falar no final de Tropa de Elite 2 sobre milícias, sistema e Brasília?

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