domingo, 10 de fevereiro de 2019

OSCAR 2019: A FAVORITA

 
A FAVORITA ou “Sabe com quem está falando?
Por Pablo Spinelli”
Dedicado ao grande mestre Ilmar R. de Mattos

Durante cerca de um século, uma frase que foi criada e popularizada entre as elites do Império brasileiro no II Reinado foi muito usada, a ponto, como se percebe pelo recorte temporal, de chegar à República. Essa frase sintetizava um olhar sobre os dois partidos do Império até 1870 (depois foi fundado o Partido Republicano): o Partido Conservador e o Partido Liberal. Em cada um desses partidos havia um núcleo dirigente que mantinha a hegemonia sobre os demais membros do partido (seria bom, prezado leitor, saber que sempre houve, há e haverá disputas internas dentro de um partido político, correntes diversas que são capazes de agredir mais a si mesmas do que o adversário do outro campo, tal marca fez parte da história do PCB, do MDB, do PT, da ARENA, do PSOL e, agora, o partido da hegemonia do nosso atual governo federal, o PSL, reforça tal observação, como no caso do labirinto que os filhos fazem ao General, este à Casa Civil, esta à Câmara dos Deputados etc. etc.)
Voltemos à frase. “Não há nada mais parecido com um Saquarema (núcleo dirigente dos conservadores) do que um Luzia no poder”. Essa frase serviu para a genialidade de Oliveira Vianna afirmar nas primeiras décadas da República que os partidos eram todos iguais, tinham o mesmo plano de governo, que o partido da oposição fazia no poder a mesma política daquele que acabara de sair. Dentro dessa visão, Oliveira Vianna seduz seu leitor para a seguinte reflexão: para que partidos no Brasil se todos são iguais e não representam a sociedade? Daí, um pulo para a criação da ditadura do Estado Novo de Vargas em 1937.
Coube a Ilmar Rohloff de Mattos escrever em sua monumental obra “O Tempo Saquarema” que as coisas não eram assim, como afirma Oliveira Vianna. Além das nuances que essa frase explicita, Mattos faz uma defesa da democracia ao se defender que por mais que seja duro entender, os partidos não eram ou são iguais, podem ter polos invertidos, pontos tangenciais, mas ao se afirmar uma igualdade se defende a sua anulação.
Para que toda essa introdução? Usamos essa frase para dizer que em política é capaz de fazermos a política do “outro” sem percebermos. Não é importante saber quais são as diferenças ou semelhanças dos atores políticos, mas quem tem o controle do tempo, da direção, quem tem a hegemonia.
O filme A favorita, indicado para 10 Oscars, incluindo filme, atriz, atriz coadjuvante (no caso, duas), edição, dentre outras indicações, é uma produção que pensou em fazer uma coisa e acabou por dar como produto, outra. Esse é o nosso entendimento. Mas antes de explicar nosso argumento, creio que o espectador que vá ver ou rever a película tenha a atenção para a linguagem e o roteiro do filme. Ele é um mosaico rico da cultura inglesa tanto na literatura como no cinema. Vai do citado no filme Jonathan Swift até Monty Python, como fica claro na corrida de gansos. Há por todo o filme a influência de vários diretores e seus estilos. Salta à vista a presença de Stanley Kubrick, especialmente quando usa luzes naturais para os interiores, como Kubrick fez em Barry Lindon (1974). A presença da loira fatal é uma homenagem ao fetiche de Hitchcock em seus filmes. Ao privilegiar a perspectiva aristocrática seguiu a extraordinária adaptação que Stephen Frears fez sobre um triângulo amorosa na Corte francesa pré-revolucionária, em Ligações Perigosas (1987). A escolha pelo tom quase farsesco, picaresco dialoga com algumas comédias de Shakespeare e termina com uma cena cheia de coelhos que muito lembra a abertura e encerramento do filme Tudo que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar (1972), de Woody Allen, cujo primeiro episódio é na corte medieval inglesa. Para os amantes da literatura ou do cinema (especialmente os vinculados à “alma inglesa”) é um prato cheio.

 
Nos últimos anos, Hollywood tem dado um tom sobre políticas afirmativas. Esse tom se tornou mais retumbante após a surpreendente (para os moradores de Los Angeles, de Nova York, não para os desempregados do “cinturão do aço” ou moradores do Meio-Oeste) vitória de Trump. As cerimônias do Oscar, suas indicações, seus discursos, suas premiações são o ápice do “Sim, nós queremos”. Começou pela salutar reivindicação da presença negra nos filmes; passou pela equivalência salarial e cotas para mulheres nas produções e, diante de um muro no caminho, a celebração do México a partir dos diretores que foram premiados nos últimos 5 anos.
Assim, o filme A favorita tem uma motivação que é um desejo do corpo feminino hollywoodiano há décadas: bons personagens para mulheres. Em um filme onde os homens são acessórios, afetados, agressivos, molestadores, fracos, quase invisíveis (tal qual as camadas subalternas que fazem a roda girar) coube a um naipe invejável de atrizes fazer o navio seguir seu rumo. Olívia Colman – uma atriz de 44 anos que consegue transmitir um peso da idade maior que sua personagem exige – faz uma Rainha Anne mimada, alienada, ranzinza, autoritária e ao final, vingativa, com maestria. Uma personalidade que difere da outra rainha que interpreta, a atual Rainha Elizabeth a série The Crown. As duas oscarizadas Rachel Weisz e Emma Stone fariam o que a mediocridade da mídia diz, uma “disputa pela atenção da Rainha” que daria sentido ao título do filme.
Enquanto que Rachel Weisz usa de artefatos, porte e presença mais masculinizada em sua personagem que – em tese – seria manipuladora dos interesses da burguesia que abria espaço na Inglaterra contra a aristocracia agrária que não queria sustentar uma guerra que interessava financeiramente aos comerciantes e manufatureiros; Stone usa e abusa dos seus olhos e expressões faciais para perceber como são as regras do jogo a partir  do momento que a Fortuna (como diz Maquiavel) poderia lhe gerar uma fortuna se soubesse usar a virtú com a Rainha Anne. Eis aí um breve resumo: o mundo do interesse egoístico. A Rainha seria o canal pelo qual as aspirações da cortesã e da decadente-que-quer-voltar-à-Corte seriam cumpridos.


Diferente de Moulin Rouge (outra inspiração) onde os personagens usavam de artimanhas para o bem comum, dentre eles, o amor, as personagens de Weisz e Stone seriam aquilo que um ex-governador de nosso Estado chamou de “partido da boquinha”. Uma quer a conservação do que tem. A outra, a conquista do que poderia ter tido se não fosse pelas agruras que seu pai a envolveu. Bem, aí voltamos ao ponto inicial. O filme era para ser de um tom onde a mulher fosse o centro, as excepcionais atrizes duelam por conta do protagonismo desejado pelos movimentos feministas mundo afora. Eis o nó górdio.
Sem fazer spoiler, pois em 20 minutos o que será descrito é apresentado ao espectador, a Rainha Anne, após 17 frustrações maternais por gestações interrompidas ou com filhos que não vingaram acaba por ter como escape para suas dores emocionais e físicas o contato carnal com a cortesã de Rachel Weisz. Diante dessa descoberta, Emma Stone corre atrás dos seus interesses e disputa com valentia e amoralidade a cama da Rainha. O duelo é de alcova. O que seria um problema. A Rainha, manipulada pelos desejos carnais sobre uma guerra contra a França, acaba por se tornando exatamente aquilo que os movimentos feministas não querem: a objetificação do corpo numa completa ausência da política. Uma Rainha alienada, mimada, que cria coelhos como filhos ou que se permite ao masoquismo permite a leitura de que a falta do papel de ser mãe cria neuroses, paranoias e obsessões, como se afirmava nos séculos XIX e XX. Os humores da monarca dependem da forma introdutória que as duas personagens usam para criar a felicidade. Não há aqui espaço para um terceiro vértice nesse triângulo (como é explícito no título).
Em um filme que se permitiu uma leitura pop e contemporânea sobre um passado (como fez Moulin Rouge) é algo deveras conservador pensar como Highlander: só pode haver uma, o que soa esquisito para um filme de pegada antenada com seu tempo. Sua mensagem está a léguas de distância de um Bertolucci e Ettore Scola. E o mais curioso: ao se propor que a Rainha é uma alucinada como a eternizada por Lewis Carrol em Alice no país das maravilhas, acaba por reforçar na última cena do filme o poder real, a soberania majestática que coloca de forma uma súdita de joelhos de forma vil uma súdita num famoso sabe com quem está falando? (em pleno terreno anglo-saxão!!! Roberto DaMatta deve ficar horrorizado com isso).  Um filme que desabonaria a monarquia mostra ao final quem tem o cetro nas mãos. Um filme que propôs o protagonismo feminino acabou por repetir clichês machistas sobre a mulher. Um filme que quis ser Luzia e acabou por ser Saquarema.

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