INFILTRADO NA KLAN:
SPIKE LEE FAZENDO A COISA CERTA
Dedicado a um certo capitão Rodrigo, um infiltrado
Por Pablo Spinelli
A construção de um pensamento de
um intelectual pode, em muitas vezes, sofrer flexibilidades, mudanças,
rupturas, reposicionamentos, aprofundamentos, autocrítica, enriquecimentos de
acordo com o avançar da idade. Não é uma lei, mas é o que ocorre na maioria das
situações dos escritos deixados por filósofos, escritores de ficção, poetas,
pintores, cantores em geral. Um caso de uma percepção arguta, perspicaz das
mudanças dos tempos, das variações de um público ao longo de décadas é da
extraordinária e multifacetada Bibi Ferreira que nos deixou recentemente. Dos
musicais americanos traduzidos para a nossa língua; das comédias de costumes e
clássicos de nossa literatura, a atriz mais idosa até há pouco em atividade no
país chegou à “Gota D’Água”, musical
de Paulo Pontes e Chico Buarque que adaptava o clássico grego, a tragédia
Medéia, para o Brasil dos anos de chumbo da década de 1970. Foi Bibi Ferreira que popularizou para
as gerações com mais idade a vida e obra de Edith Piaff, antes do excelente
filme que nos revelou Marion Cotillard. Peça
política, musicais americanos, divas – além de Piaff, a portuguesa Amália
Rodrigues. E muito, muito mais.
Para além da devida homenagem
para Bibi Ferreira, podemos usar – a não sem polêmicas – distinção entre
“jovem” e “velho” para vários pensadores, onde geralmente, o primeiro adjetivo
tem uma carga de arroubos, de insights que se revelariam mais tarde na obra madura,
o jovem, como tal, seria o voluntarista, extremista na análise da vida – seja
pelo excesso de otimismo da mudança, seja pela perspectiva pessimista que nada
há de se fazer. Foi gasto uma energia muito grande para encontrar rupturas e
continuidades entre o “jovem” e “velho” Marx, um labirinto que o filósofo Louis
Althusser criou e poucos querem sair. Assim aconteceu com Hegel, Tocqueville,
Sartre, além dos clássicos gregos, para citar alguns. Claro que o tempo pode
gerar mudanças para o bem ou para o mal, depende de quem lê. Do idealismo para
o materialismo; do liberal conservadorismo para o reacionarismo, do radical
para o moderado, isso tudo fica a gosto do freguês. Há certos parâmetros que procedem.
Uma dessas divisões que já é clássica na literatura acadêmica é o caso do jovem
Gramsci, cheio de revolução nos capilares, que achava que a Revolução de 1917
contrariava O Capital, com o Gramsci
mais velho na cadeia, onde revê seus erros naquela conjuntura, afinal, dissera
que o fascismo seria breve. Algo que não viu ao passar de cárcere em cárcere
pelas mãos daqueles que ocuparam o poder em 1922 e só saíram oficialmente em
1944, não pela ação do movimento da política na sociedade civil, mas pelo uso
da guerra de movimento das tropas aliadas, dentre elas – como tão
simbolicamente ficou retratado em A Vida
é Bela – a dos EUA que ampliaria o seu americanismo e fordismo pela Europa
Ocidental.
Após essa longa introdução cujo
objetivo é dizer que uma obra só não sintetiza o pensamento de um autor; que a
ruptura entre “jovem” e “velho” não quer dizer que seja progressiva e, em
alguns casos tal distinção nem existe, e, não menos importante, identificar que
muitos dos que participam com veemência da paranoia instituída por alguns
intelectuais e youtubbers que Gramsci com seu “marxismo cultural” foi o patrono
da destruição dos valores ocidentais, não leu um terço do que esse autor, professor
de Letras, crítico de teatro, escreveu. Mas, vamos ao que interessa: o que isso
tem a ver com cinema e Oscar?
Alguns autores marcaram suas
obras por certas idiossincrasias a ponto de ser fácil reconhecer o diretor pelo
filme. A loira de Hitchcock, diretor que já dizia quem era o culpado logo no
início do filme (exceção é Psicose). O personagem Antoine Doinel, alter-ego na
maior parte dos filmes de Truffaut. As questões psicanalíticas e o
inconformismo monogâmico de Woody Allen. Os personagens da periferia urbana,
como taxistas e gangsters de Scorsese. Os silêncios e os enquadramentos de
Ingmar Bergman. O surrealismo de Luis Buñel.
O exagero circense e rabeleisiano de Fellini. A câmera na mão e as
alegorias de Glauber Rocha. Hoje, alguns remanescentes do que seriam diretores-autores,
são Tim Burton, Wes Anderson e Quentin Tarantino. Suas digitais estão em todos
os seus filmes de forma perceptível. No caso do diretor Spike Lee, se tivermos
que buscar um espaço a partir de sua trajetória, ele está mais para as mudanças
entre o “jovem” e o “velho” colocadas no nosso preâmbulo, prezados leitores, do
que o diretor que mantém sua marca sem abrir mão de seus conceitos visuais
estéticos e de abordagens de roteiro.
Spike Lee é um diretor que
começou jovem no início dos anos 1980. Começou com documentário que tratavam de
forma virulenta o tema do racismo contra os negros. A questão da identidade
negra está presente desde sua infância, pois nascera em Atlanta, no sul dos
EUA, o mesmo Estado retratado no clássico do cinema que defendeu a causa
sulista na Guerra de Secessão, “...E o
vento levou”. Sua juventude foi no Brooklin, local onde a vida societária é
segmentada: brancos, latinos, negros, orientais. Sua carreira deslanchou no
filme Faça a coisa certa (1989) onde aponta uma metralhadora giratória para
todas as etnias que teriam como denominador comum o preconceito. Seu filme mais
ambicioso – herdeiro de seu início como documentarista – é o polêmico Malcolm X (1992) que foi encarnado
magistralmente por Denzel Washington que perdeu para o Oscar porque havia um Al
Pacino cego dançando tango. Por falar em dança, Spike Lee, admirador confesso
de um cantor de cabelo afro com uma voz singular e uma dança singular, Michael
Jackson, acabou por produzir um dos seus álbuns e disse que passou pela
filmagem mais difícil de sua vida ao subir em uma comunidade (Dona Marta, em
Botafogo) onde o tráfico garantiu a segurança de sua equipe. E assim foi feito
o clipe de They Don’t Care About Us,
de 1996.
Spike Lee com um cantor que
estava sendo alvo de bombardeios por conta de motivos inconfessáveis não
assumia sua negritude. Esse é um Spike Lee diferente da pauta da identidade, da
valorização da diferença como forma de ampliar direitos. Michael Jackson acabou
por ser um ponto gradativo da virada de um diretor que começou a visar os
problemas políticos da política americana para além da pauta de um ou outro
movimento. É o Spike Lee da frente política. Um dos filmes mais “estranhos”
para alguns críticos do já sexagenário diretor é O plano perfeito (2006), estrelado por Denzel Washington, Clive
Owen e Jodie Forster. Esse filme, sem querermos adiantar sua trama, é a semente
que floresce em Infiltrado na Klan (2018).
A partir de um episódio real que
parece inacreditável, Lee resgata a trajetória de um policial negro que
consegue se infiltrar na KKK através da sua astúcia e da tecnologia da época:
telefone com fio. Spike Lee começa o filme fazendo um ajuste de contas com o
seu Estado de origem. Aparece Scarlet O’Hara perdida entre centenas de feridos
do Sul à procura de “seus negros” diante
daquele massacre. Logo em seguida, uma homenagem aos filmes que eram tinham diretores
e elencos negros (é, leitor jovem... Pantera
Negra e Corra não colocaram o ovo
em pé), o que foi chamado de blaxpoitation.
O mais famoso deles foi Shaft
(1971). A musa foi a atriz Pam Grier, a mesma que foi resgatada por Quentin
Tarantino em Jackie Brown (1995).
O curioso é que ainda há um pouco
do jovem e intempestivo Spike Lee no atual. Um exemplo disso foi uma polêmica
onde acusou Tarantino de ser racista por conta do vocabulário que seus
personagens de todos os tons de melanina aplicam aos afro-americanos. O estopim
foi Django Livre (2013). Tarantino
respondeu que além de ter trabalhado com Pam Grier, é notória sua relação com
Samuel L. Jackson, além de ter revelado para o grande público Ving Rhames, o
temido Marcellus Wallace de Pulp Fiction
(1994). O resultado disso foi a provocação com mais dureza ao personagem de
Samuel Jackson em Os oito odiados (2015).
O ponto paradoxal é que a abertura do filme e algumas cenas e falas remetem
justamente a filmes de Tarantino. Seria um indicativo da mudança do radicalismo
do diretor?
Infiltrado na Klan é um filme de
narrativa irregular. Tem pontos que parece documentário. Outros, drama, outros,
comédia de erros (como as dos Irmãos Coen). Não deve ganhar nenhuma estatueta,
na melhor das hipóteses, por conta da ardente paixão de Spike Lee, o Ken Loach
americano, a de roteiro adaptado. Porém o filme tem méritos. Revela um ator que
lembra aos espectadores de mais de 40 anos os maneirismos de outro ator negro
(preto, afro-americano) Richard Pryor; o protagonista e herói improvável John
David Washington. Um caso semelhante ao do clã Carradine e de Michael Douglas,
o poder da genética: o policial que trabalha usando a lei e a política de
unidade com um policial judeu contra o racismo é filho do mesmo ator que fez o
ativista Malcolm X, Denzel.
O policial judeu vivido por Adam
Driver nos trouxe a percepção da má condução dos últimos filmes da franquia de
Star Wars. Adam Driver é ator, e dos bons, e não um genérico mal resolvido de
neto de Darth Vader. No filme há a presença do ator, cantor e ativista Harry
Belafonte, uma das maiores vozes contra a segregação racial no século passado.
Todo o elenco de brancos racistas foi bem conduzido pelo diretor e seu roteiro.
Infiltrado na Klan nos faz acreditar
que Spike Lee ao ver o resultado da última eleição presidencial dos EUA se
perguntou: por que perdemos? Lee saiu do Brooklin, de Nova Yorque, do Bronx.
Foi para a América profunda do escritor William Faulkner, do dramaturgo Tenesse
Williams. Infiltrado na Klan tem
muito a dizer para o Brasil atual. Primeiro, porque uma parcela da esquerda
ainda acredita que movimentos que apostam cada vez mais na diferença terão mais
força do que um princípio da universalidade – quem valoriza a diferença é o
extremista conservador, como os membros da Klan, os nazistas, os homofóbicos,
os misóginos, como nos revelou o professor Antonio Pierucci no livro As ciladas da diferença (1999).
Segundo, porque parcelas dessa mesma esquerda ignoraram o Brasil profundo, o
brasileiro das pequenas e médias cidades; os
brasileiros de Barradinho, do interior de Goiás, Tocantins, Roraima.
Terceiro, assim como já fizera em o Plano
perfeito, Spike Lee convoca os judeus americanos para dizerem em Infiltrado que está tudo na mesma cruz
a pegar fogo. Para superar uma provável reeleição de Trump é necessário
invenção na política, criatividade. Obamas e Clintons. A personagem ativista
feminista seria uma jovem Michelle Obama? Mulher, negra e protestante. Por fim,
mas não menos importante, será que teríamos ineptos que não perceberam que
havia um infiltrado no governo que num conchavo com a maior emissora do
país passava vazamentos sobre movimentações financeiras? Ou isso é cortina de
fumaça para encobrir o que o público conservador adorou, foi ao delírio, quando
ouviu o diretor de Marighella falar
no final de Tropa de Elite 2 sobre
milícias, sistema e Brasília?
Nenhum comentário:
Postar um comentário