Democratizar
À memória de
Andrea Camilleri, um comunista que escreveu romances policiais sem reproduzir
preconceitos.
Por Vagner Gome
de Souza
Nas eleições de 1998,
no estado do Rio de Janeiro, a unidade do campo progressista se fez vitoriosa
numa aliança protagonizada pelo PDT e o PT. A duras penas para alguns segmentos
mais à esquerda, a eleição da chapa Garotinho / Benedita da Silva impactava na
conjuntura nacional diante da segunda vitória tucana as eleições presidenciais
já no primeiro turno.
Derrotava-se um Governo
estadual que dialogava com uma direita autoritária no campo da segurança
pública. Eram tempos do Deputado Estadual Sivuca (eleito pela última vez em
1994) que não se intimidava em repetir: “Bandido bom é bandido morto.” e a
sombra da ditadura militar rondava as eleições com acenos para o General Newton
Cruz (que nas eleições de 1994 tinha ficado em terceiro lugar com 14% dos votos
no Estado). Essas forças reacionárias não tiveram um espaço protagonista pela
intervenção da política de frente que se fez com muitas concessões de todos os
setores envolvidos na campanha vitoriosa.
Contudo, já observamos
que o tema da segurança pública já estava sob hegemonia de uma leitura política
alheia a ampliação dos Direitos Humanos. As contradições políticas da gestão
Garotinho (1999 – 2002) são fundamentais para compreender o quanto o campo
democrático ainda “patinava” no enfrentamento do tema. Agora, temos um cenário
que justifica a relevância da leitura do livro Desmilitarizar de Luiz Eduardo Soares (São Paulo, Editora BOITEMPO,
2019), pois o autor foi testemunha dessas contradições na sua atuação. Foi
Subsecretário de Segurança e Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do
Estado do Rio de Janeiro (entre janeiro de 1999 e março de 2000), durante o
governo de Anthony Garotinho, quando chegou a denunciar a "banda
podre" da polícia do Rio (sobre esse momento sugerimos a leitura do mesmo
autor de Meu casaco de general: 500 dias
no front da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Cia. das Letras,
2000).
O viés do populismo da
gestão Garotinho não incorporou a necessidade da democratização no aparelho de
segurança, o que lhe empurrou para as forças conservadoras com bases no
fundamentalismo religioso. Eleito graças ao programa de centro-esquerda, aos
poucos, atribuía sua vitória a sua conversão a Igreja Evangélica após um
acidente de automóvel ocorrido em 1994. Os grupos do neopentecostalismo foram
ganhando espaço em torno do Deputado Federal Francisco Silva (evangélico e
proprietário da Rádio Melodia). O projeto político presidencial de 2002
definia-se já em 2000. As forças políticas democráticas foram gradualmente
sendo afastadas do Governo como ocorreu na demissão de Luiz Eduardo Soares
feita numa entrevista pela TV.
Entretanto, a denúncia
da “banda podre” da polícia antecipava em muito que observamos na
descaracterização da segurança pública no Brasil ao ponto de chegarmos a
elementos que sugerem a aproximação de muitas forças políticas a grupos
“paramilitares” conhecidos como milícias. Os livros Elite da Tropa e Elite da
Tropa 2 (escritos em coautoria) permitem a evolução do pensamento do autor de Desmitarizar até a colaboração para a
apresentação da PEC 51/2013, pelo Senador Lindbergh Farias, que defende a
desmilitarização das polícias no país. Assim, compreendemos que a contribuição
do livro transcende as fronteiras acadêmicas e contribui para que militantes
dos movimentos sociais vinculados ao tema dos Direitos Humanos tenham melhores
argumentos para o debate político hoje em curso.
Vivemos tempos sombrios
que impõe que livros como Desmilitarizar sejam
resenhados com todo esse roteiro político para que o campo democrata entenda
que poderíamos estar numa outra situação se as unidades programáticas
anteriores não se deixassem contaminar pelos “atalhos” do populismo. De
Garotinho (1998) até a eleição do atual Governador do Rio de Janeiro, a
esquerda contribuiu para o corporativismo partidário e se deixou levar pelo “culto
da identidade” dos movimentos sociais sem fazer a necessária articulação da
política de frente. Assim, segurança pública e direitos humanos passaram a ser abordado
como polos em conflito, o que empurrou o centro político para esse cenário
obscuro em que vivemos.
O livro é uma coletânea de artigos que não
foram acessadas pelo grande público e foram revistas pelo autor com o intuito
de fazer esse constante diálogo sobre a necessidade de compreender que a ideia
de segurança está associada ao acesso ao bem estar e seus problemas seriam
agravados pela consolidação das desigualdades sociais. A denúncia do “racismo
estrutural” percorre as páginas de Desmilitarizar
com o uso de dados estatísticos que impõe mais racionalidade ao se defender “atalhos”
autoritários para reduzir os índices de violência. Os artigos estão agrupados
em quatro partes além da Introdução e do Posfácio (Polícia – Drogas – Raízes da
Violência – Direitos Humanos, cultura e poder).
O autor defende
persuadir até aqueles que desejam resultados no combate ao crime para uma
reflexão. Essa é a maior ousadia do livro já presente na Introdução: “A quem
acredita na ‘guerra contra o crime’, dirijo a seguinte ponderação. Meu intuito
é oferecer argumentos persuasivos mesmo àqueles que não se importam com valores
e apenas cobram resultados. (...)” p.14. Ou seja, a leitura do livro é um
convite do diálogo com aqueles que se deixaram iludir que é justificável o
abate de quem porta um fuzil. O debate deve ser feito para “virar” opiniões que
se deixam influenciar pelas redes sociais do ódio.
Portanto, na primeira parte do livro (Polícia)
seria interessante uma leitura atente no artigo “A política nacional de
segurança pública: histórico, dilemas e perspectivas”, originalmente de 2007.
Nesse artigo, se reconhece o quanto o plano nacional de segurança pública, uma
gestação tímida do governo FHC, teve sua ampliação nas gestões posteriores numa
caminhada com inúmeros “ziguezagues”. A implementação do bem estar no Brasil se
faz nessa linha gradual que caracteriza nossa revolução passiva. As iniciativas
mais progressistas são “abortadas”, mas isso não impede que haja avanços. Por
fim, há um posfácio que aborda a recente onda de “contra revolução passiva” que
atravessamos desde o impeachment do Governo Dilma.
Em seguida, na segunda
parte do livro (Drogas), o artigo “A cocaína no mundo, segundo Roberto Saviano”
é um convite para observarmos a questão de repressão do consumo das drogas sob
um olhar de análise da conjuntura internacional. Pensemos na crise do
capitalismo financeiro em 2008 e a expansão do lucro com o tráfico
internacional de drogas principalmente para a Europa dos altos índices de
desemprego na juventude. Juventude, desemprego e consumo de drogas a serviço do
grande capital que “lava seu dinheiro” em outros setores da economia. A “Guerra
contra as drogas” só gerou mais desigualdade social, pois os recursos aplicados
na repressão não deram resultados e poderiam ser mais bem investido em saúde e
educação.
Continuemos a falar
sobre a juventude, na terceira parte (Raízes da Violência), o artigo “Juventude
e violência no Brasil contemporâneo” nos provoca para uma reflexão sobre as bases
do voto conservador obtidos na faixa eleitoral de 18 – 30 anos. A brutalidade
policial contra os jovens negros nas periferias das grandes cidades não impediu
que segmentos significativos dessa juventude referendasse a negação da
democracia e dos direitos humanos. O ódio da juventude no Brasil contemporâneo
é um fragelo da dialética sem síntese que surgiu nas manifestações de 2013.
Inúmeras “bandeiras” sem uma política aglutinadora abriu esse vazio na política
para a juventude. Diante da invisibilidade, os jovens da periferia recorreram
ao “linchamento” da democracia à medida que as lideranças juvenis do campo
democrático abordam o tema da segurança pública ainda com preconceito.
Provavelmente, esse estigma seria rompido na
política carioca pela Vereadora Marielle Franco que foi brutalmente assassinada
em 2018. Assim, o artigo “A segunda morte de Marielle ou Ainda é possível falar
em segurança pública e direitos humanos no Brasil?”, na quarta parte (Direitos
humanos, cultura e poder), tem relevância, pois foi escrito no calor das eleições
de 2018, a primeira versão é de 5 de outubro de 2018. Naquela altura, o autor
não teria condições de antecipar a gravidade do resultado do segundo turno
eleitoral, mas ao longo da leitura perceberemos um sentimento de balanço político
das eleições sob o olhar dos defensores da Democracia. Por fim, o posfácio
recebeu o título de “Lições de Marielle” no qual o autor menciona um pouco
sobre as ameaças que sofreu nos idos de 2000. O desmanche da centro-esquerda
abriu caminho para esse mundo de rancor e ódio. Entretanto, as páginas do livro
nos convidam para seguirmos na perseverança por alianças para democratizar
todos os serviços públicos, principalmente a Polícia.