Machado, Nélida e o PIRLS
Marcio
Junior[1]
Certa vez, em
entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, a saudosa escritora Nélida
Piñon teceu o seguinte comentário: “O sistema educacional não estimula a
leitura. Não podemos obrigar uma criança a ler Machado de Assis, é um equívoco.
Não é necessário ler Machado de Assis a não ser quando você jura que está
preparado. Machado de Assis não precisa de leitores, precisa de pessoas que vão
amá-lo ao lê-lo. (...) é como amar bem, amar certo. Você vai errando e de
repente você entende que domina um instrumento que é quase amoroso.”
(Disponível em: https://youtu.be/o3rR0PzKtEI).
Nélida,
de quem tive o prazer de ser amigo, falava de algo que vai além do sentimento
único de construir uma relação com um grande autor através de seus textos e
personagens; ler bem demanda estudar, assim como estudar bem demanda ler,
independente do que se estude. Assim, para que a leitura dê certo e o leitor
absorva o conhecimento ali contido, ele precisa ter técnica e disposição que só
é adquirida com treinamento. Afinal, não é por ser uma atividade que pode ser
absolutamente apaixonante, cativante e enriquecedora que ela é desprovida de
método.
Nesse
sentido, não podemos pensar a leitura em termos educacionais, onde os alunos
estão aprendendo coletivamente nas escolas, sem levarmos em consideração que é
necessário alguém que os ensine, objetivamente, como fazer isso. As crianças
precisam não apenas saber ler as palavras, mas serem preparadas para atingir
algo mais profundo e sofisticado. Vejamos, por exemplo, a leitura de um
romance: mesmo que se possa ler uma frase, sua compreensão demanda domínio,
inclusive, das figuras de linguagem, recurso semântico que faz parte dos conteúdos
já do Ensino Fundamental e, evidentemente, elencado na arquitetura da BNCC. Uma
das maiores belezas dos textos de Machado são as suas refinadas metáforas. Como
amá-lo sem ter domínio deste recurso?
Nesse
ponto de vista, não estamos bem. A divulgação do resultado do Progress in
Internacional Reading Literacy Study, o PIRLS (Estudo Internacional de
Progresso em Leitura), nos mostrou. Trata-se de uma pesquisa quinquenal, nesta
edição com 57 países participantes que avalia a compreensão de leitura dos
alunos do 4º ano do Ensino Fundamental, a partir de amostra. Foi feita aqui sob
coordenação do INEP em 2021, segundo ano da pandemia de COVID-19, sendo a nossa
primeira participação, o que significa que não temos histórico dessa pesquisa no
período anterior à pandemia.
A
medição de proficiência, feita nas línguas vernáculas de cada país (o tema é
mais complexo, pois outras sociedades que constituem outros países podem utilizar
mais de uma língua para ler, e essas línguas podem variar, inclusive, no
espaço) resulta em uma escala de 1 a 1000, tendo o Brasil feito 419, valor considerado,
em escala, de nível baixo. Dos 4.941 estudantes avaliados, 38% não conseguia
reproduzir um pedaço de informação declarada no texto, ou seja, não dominava a
leitura mais básica. Grande parte dos alunos está chegando no 4º ano do Ensino
Fundamental sem o conhecimento de leitura que deveria ser adquirido antes, cuja
deficiência compromete o conhecimento que podem ter ao longo da vida.
Assim, fica um pouco mais clara a tarefa de
natureza republicana e democrática que temos pela frente. A perda de gerações
de estudantes que a pandemia nos legou se soma à uma situação que já não era
boa, e será necessário um esforço enorme para conter os danos que, mesmo com o
retorno das crianças às escolas, podem continuar entre nós. Será que temos
profissionais de educação, de professores a gestores, em número suficiente, capazes
de compreender e responder a este problema de extrema complexidade? Exige
trabalho em tempo integral, sem limitação aos muros das escolas e sem aumento
de salário por isso. Há coisas que o dinheiro não compra, inclusive o gosto
pela leitura e a compreensão ensinada de que ela é necessária para enfrentar a
vida.
[1] - Doutorando do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade.
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