A vida de Alexis de Tocqueville
Em memória de José Murilo de Carvalho
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
O
homem que compreendeu a democracia. A vida de Alexis de Tocqueville, de Olivier
Zunz (Rio de Janeiro: Record, 2023).
Contratado, junto com Gustave de
Beaumont, pelo governo francês para estudar o sistema penitenciário dos Estados
Unidos da América, Alexis de Tocqueville, um jovem intelectual e político com
raízes aristocratas, que não se aliava nem a monarquistas nem aos radicais,
voltou para França em 1832 determinado a promover uma ideia que o movia: “a
marcha irresistível da democracia”.
Um "mundo totalmente novo exige
uma nova ciência política", declarou. Ele a forneceu em Democracia na
América (1835 e 1840).
Em O homem
que compreendeu a democracia. A vida de Alexis de Tocqueville, Olivier Zunz, professor emérito de História na
Universidade da Virgínia e professor visitante no Collège de France e na École
des Hautes Études en Sciences Sociales, entre outros, editou vários outros
livros dedicados a Tocqueville, nos fornece uma biografia muito bem-informada de
Tocqueville, cuja compreensão da complexa dialética entre a liberdade e a
igualdade permanece imensamente influente para o nosso bicentenário do
nascimento do Brasil e alhures.
Zunz explica o que Tocqueville aprendeu
— e o que não percebeu — durante sua viagem em 1831 pelos Estados Unidos da
América. Na América, observou Tocqueville, a riqueza era distribuída de maneira
muito mais igualitária; o respeito pela lei era generalizado. Uma convenção de
livre comércio na Filadélfia deu-lhe a ideia de sua teoria das associações
voluntárias. Com tantos cidadãos capazes de possuir terras, escreveu
Tocqueville, "como alguém pode sequer imaginar uma revolução".
Dito isso, em uma visita a uma cidade
fronteiriça habitada por franco-canadenses e indígenas, ele tomou consciência
das diferenças étnicas e raciais das sociedades americanas.
Tocqueville não sabia que o Canal de Erie
era financiado pelo governo; ele ignorou a industrialização e as fábricas de
algodão em Lowell (Massachusetts). Ele parecia bem arredio ao renascimento do
protestantismo evangélico (que ele condenou como uma forma anacrônica de fé).
Ele teve dificuldade em compreender o significado da formação do sistema
bipartidário.
A análise de Zunz de Democracia na América busca aproximá-lo da sabedoria do senso comum. As posições de Tocqueville, ele observa, muitas vezes são de difícil compreensão face as inconsistentes próprias ao seu endosso à democracia. Mas, escreve Zunz, que ele passou a apreciar o poder das conclusões de Tocqueville sobre liberdade, igualdade e democracia, "porque ele persiste em fazê-las apesar de suas dúvidas".
Zunz também fornece um relato esplêndido da carreira de Tocqueville como um político na França, durante a qual ele procurou ser ao mesmo tempo um patriota, um colonialista e um democrata, embora essas identidades não fossem coerentes. As datas, locais e pessoas da vida de Tocqueville estão todas lá, desde os pulmões fracos ao amor fervoroso até a persistente capacidade de fazer amigos e mantê-los.
Já se passaram mais de uma década desde
a suntuosa biografia de Tocqueville escrita por
Hugh Brogan aqui intitulada de Alexis de Tocqueville: O profeta da democracia e também publicada
pela Record e, embora Zunz seja um dos principais estudiosos do assunto vivos
hoje, A vida de Alexis de Tocqueville conta em grande parte analogamente
essa história, como não poderia deixar de fazê-lo, como também o fez as nossas Tocquevilleanas
exemplares de Marcelo Jasmin e Luiz Werneck Vianna. E essa história é bem
apoiada por ampla documentação, com minúcias do que Tocqueville comeu em Boston
até as maiores visões filosóficas de suas impressões sobre política e, como
prometido, os perigos e o potencial da democracia, que ele testemunhou em
primeira mão nos diferentes laboratórios dos oitocentos.
Crítico ferrenho da monarquia,
Tocqueville relutava em apoiar seu fim após a Revolução de 1848. Assim que
"passou o choque inicial", porém, ele decidiu participar do
"histórico experimento republicano", esperando que isso acabasse por
dar a cada indivíduo "a maior parcela possível de liberdade."
Amargamente desapontado quando Luís
Napoleão voltou ao poder como deixa explicito no póstumo Lembranças de 1848:
As jornadas revolucionárias em Paris, Tocqueville "reconciliou-se com
a ideia de que sua verdadeira vocação era a de pensador". Ele viveu o
suficiente para escrever O Antigo Regime e a Revolução (1856). Ao
avançar nas páginas de A vida de Alexis de Tocqueville deixará leitoras
e leitores com uma noção muito melhor do que Tocqueville pensou e
simultaneamente de quem ele foi.
Tocqueville morreu em 1859, aos 53
anos, antes de completar o segundo volume, mas, conclui Zunz, depois de ter
"direcionou sua ansiedade para uma força criativa e transferiu sua paixão
pela liberdade para uma profunda e exigente valorização da democracia" (Zunz,
2023, p. 371).
E o que é isso tudo? De acordo com
Zunz, é bastante simples. “A crença mais profunda de Tocqueville era que a
democracia constitui uma poderosa, mais exigente, forma política poderosa, mas
exigente” (Zunz, 2023, p. 17), escreve ele. “O que torna sua obra ainda relevante
é que ele definiu a democracia como um ato de vontade de cada cidadão – um
projeto constantemente necessitado de revitalização e da força proporcionada por
instituições estáveis.”
“A democracia jamais pode ser algo dado
como garantido” (Zunz, 2023, p. 17), conclui Zunz, um sentimento que brota da
própria vida de Tocqueville, mas que, no entanto, parece diretamente direcionado
ao nosso próprio momento do século XXI, quando tantas vezes parece que as
únicas pessoas que não consideram a democracia como certa são as pessoas
zelosamente tentando enterrá-la em uma cova sem identificação. Talvez o melhor
resultado do livro de Zunz seja exatamente esse: conseguir que mais pessoas leiam
Democracia na América como um título que descreve o mundo da democracia
como um universo sempre a ser conquistado.
20 de agosto de 2023
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