Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Entre as ruínas do Fórum Romano, muito
perto da Basílica Emília, existiu outrora o templo de Jano que abrigou sua
estátua de bronze. Era um templo pequeno, mas de antiga linhagem. Hoje existe
apenas o vestígio com uma pequena estrutura de tijolos que continua a desafiar
o passar dos séculos.
Jano era um Deus muito singular, pois
não vinha de uma mistura sincrética com a tradição cultural da península grega.
Talvez seja também por isso que os romanos sentiram uma fraqueza particular por
ele. Ele era um Deus popular e amado que geralmente apelava para coisas gentis
e protetoras.
Sua figura foi representada com duas
faces olhando em direções opostas. Ele era um Deus de muitas coisas, do começo
e do fim, da entrada e da saída, do passado e do futuro, ele era o protetor de
Roma tanto na paz, quando seu templo permanecia com as portas fechadas, quanto
na guerra quando aquelas portas se abriam.
Ele era o Deus da mudança das estações e
nem mais nem menos do que o guardião dos portões do céu. Sua condição de dupla
face sugeria que ajudava na reflexão sobre decisões complexas.
Por isso, os romanos deram nome ao
primeiro mês do ano, janeiro (Ianuarus) e chamaram Ianiculus a uma das mais
belas colinas de Roma, aquela que circunda Trastevere e o cemitério que sepultou
Antonio Gramsci, e quem sabe seja o bairro mais romano em Roma, que hoje é
percorrido por milhões de turistas, com olhos ávidos de história e cor.
Mas Jano, com duas faces olhando em
direções opostas, é necessariamente um Deus ambíguo, pede uma dupla
interpretação: para onde ele nos diz para ir? Qual é a direção que devemos
tomar? É sobre isso que queremos refletir, claro que sob o manto protetor de Jano.
Há 100 dias assumiu o governo de Lula e
Alckmin, que possuem ambos uma forma de apego à religião cristã, mas até onde
sabemos nenhuma à mitologia, inclusa a da Roma Antiga antes de tornar o
cristianismo sua religião, e eles tem se revelado diligentes em face às
provações correntes.
Mas cabe esclarecer desde o início que a
ambiguidade não é um conceito necessariamente depreciativo. Tudo circunda no
uso que lhe é dado e, como tantas outras coisas, em que dose é mobilizada. O
ambíguo é o que pode ser interpretado de diversas formas e as diversas
interpretações podem fazer sentido. Isso significa que o uso de certa
ambiguidade é capaz de evitar conflitos, poupar humilhações, abrir
possibilidades de convivência que o excesso de límpida franqueza tornaria
impossível.
Vocês conseguem imaginar a vida
diplomática sem uma dose adequada de ambiguidade? Ou acordos políticos,
relações trabalhistas, sem ao menos um pingo de ambiguidade, sem dúvida seriam
uma dificuldade intransponível.
O atual governo começou a praticá-lo
antes mesmo de existir, durante o segundo turno de sua eleição, quando surgiu
uma segunda faceta agregadora da chapa, serena, simpática, assumindo o véu da Frente
Democrática.
Uma vez no governo, como era de se
esperar, ele nomeou um grupo dirigente para os cargos principais, agradável ao
seu coração, mas muito mais reconstrução do que união; no entanto, ele colocou Nísia
Trindade Lima, uma reformadora proeminente, no Ministério da Saúde. Isso
produziu no Brasil e no exterior uma boa expectativa.
O período de instalação do governo foi
marcado por muitos erros por conta de posições doutrinárias e problemas de
gestão, mas também por acertos na defesa da estabilidade econômica e política
internacional, onde embora houvesse erros pontuais. Nesse sentido, a
ambiguidade do governo permitiu-lhe manter certo equilíbrio.
Sem dúvida, uma boa intuição política
levou Lula e Alckmin a gerar uma nova correlação de forças entre as alianças para
governabilidade, mais condizente com a realidade da Frente Democrática. Isso
também tem gerado uma melhora na gestão, com a inclusão de políticos,
principalmente políticos com capacidade de governo em cargos de decisão.
Mas essa ambiguidade do governo tem
permitido manter a estante de pé, mas não é suficiente para dar boas políticas
públicas ao país. É necessária uma orientação programática mais clara para
melhorar a liderança e a gestão e enfrentar questões muito difíceis nas esferas
econômica e social, como a crescente percepção de insegurança diante da
presença das milícias, do narcotráfico e do crime organizado. Os recentes
passos para avançar nos acordos de segurança publica cidadã é um bom presságio,
que esperamos não ser frustradas por considerações mesquinhas. É necessário
reduzir ao mínimo a ambiguidade e abraçar uma orientação consistente, que evite
o sentimento de confusão, ambivalência, dúvida, desconfiança e turvação que
obscurece toda a clareza sobre para onde vai o país.
Urge, pois, estabelecer uma nova
orientação programática, mais clara e compacta, capaz de promover reformas
sustentáveis e consensuais. Se assim não o fizermos, poderemos ter uma má
surpresa com o fim deste governo, que, tendo prometido ser o mais avançado da
nossa história, pode terminar o seu mandato não só maltratado a língua vernácula
com o uso abusivo de palavras supostamente inclusivas, mas também com os seus
números, podendo mesmo ir ao ponto de mostrar um crescimento da desigualdade.
Isso pode ser evitado. Para isso é necessário um forte senso republicano de
Estado e uma profunda lealdade democrática aos interesses estratégicos do
Brasil sobre quimeras ideológicas e cumplicidades tribais.
É melhor fechar a porta do templo de Jano
e levar a Frente Democrática adiante. Na nossa experiência, não para reconstruir
uma volta seja lá ao que, mas a união por um Brasil mais próspero e justo. Este
é o caminho para se construir, passo a passo, um Estado de Bem-Estar Social firme.
7 de abril de 2023
[1] Presidente da
CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da
UniverCEDAE.
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