terça-feira, 6 de dezembro de 2022

SÉRIE ESTUDOS - WANDINHA


Wandinha e os monstros contemporâneos

Em memória de José Mojica Marins – o “Zé do Caixão”

Por Pablo Spinelli

Vagner Gomes de Souza

 

O lançamento da série “Wandinha” para conquistar a adolescentes/jovens em diversos países nos chama a atenção diante da apatia da juventude inerte à expansão do populismo reacionário aqui e alhures. Em Stranger Things, outro sucesso mundial, o monstro do “reaganismo” se antecipa ao “trumpismo” e outros “ismos” (como o neoliberalismo) do negacionismo da vida em prol dos interesses do presentismo num aqui e agora. Os fãs de Stranger Things devem ter na memória a temporada que ocorre na semana anterior ao Dia das Bruxas e da reeleição de ator-cowboy Ronald Reagan. Suas consequências se desdobram em tons cizentos da “franquia” Star Wars, que, paradoxalmente, muitos se encantaram com Darth Vader ao longo dessas décadas, não com Yoda. Esse poderia ser o prenúncio do fascismo americanizado normalizado na sociedade diante do enfrentamento das Corporações (modelo institucionalizado por Mussolini) à ideia de República.

Os monstros, assim como no século XIX, nos permitem uma metáfora sobre a política contemporânea. Comecemos com Mary Shelley ao escrever seu “romance gótico” Frankenstein: ou O Moderno Prometeu (1818) para demonstrar como o universo de escritoras femininas dialoga muito bem com esse conflito entre Liberalismo e Democracia. Em seguida, Bram Stoker denunciaria o legado da “era dos impérios” da questão irlandesa pela via do romance Drácula (1897). Tanto as forças da “Restauração” quanto as mutilações do “Neocolonialismo” ou do Imperialismo, de Edward Said, seriam denunciadas nesses textos literários metaforicamente.

No cinema, Nosferatu (1922) inaugura essa sensibilidade em tempos de pandemia da Gripe Espanhola e no nascimento do fascismo. O debate imobiliário na Alemanha dos anos 20 pouco é mencionado pelos amantes do cinema, porém desdobraram-se inúmeras lideranças de massas diante do declínio dessas forças da tradição que “moderavam” a ascensão da igualdade. Os temas fascinantes das mudanças mobilizaram muitos jovens em inúmeros ativismos políticos e culturais diante de temáticas universais. A geração das vanguardas e suas filiações políticas se desdobraram nos anos 30 com a Segunda Guerra mundial marcando essa “era dos extremos”.

A série Wandinha é herdeira de toda essa geração. Sua cena de abertura na escola Nancy Reagan com as piranhas devoradoras do neoliberalismo dos anos Reagan é o cartão de visita para aquilo que a série se propõe. Esse spin-off da Família Addams, quadrinhos de Charles Addams, primo de uma das mais importantes líderes feministas das Américas, coloca a adolescente como protagonista numa roupagem de nossa época: individualista, narcisista, apática. Ao parar em uma escola que tem como patrono Edgar Allan Poe, o identitarismo dos ditos excluídos – todos ricos – fica explícito quando se explode uma estátua por uma visão particular sem estudo ou república.


A série tem a boa fortuna de ter um dos poucos diretores do cinema que conseguem ter uma marca própria nos seus filmes. Tim Burton – fã do brasileiro Zé do Caixão -, diretor de Edward Mãos de Tesoura, Batman, Marte Ataca, Os Fantasmas se divertem, dentre outros, é o diretor americano com maior influência do expressionismo alemão e suas histórias são marcadas pelo olhar crítico liberal ao republicanismo conservador e aos interesses do mercado privatista. Portanto, por mais que a Wandinha comece como uma idólatra do self ela só avança como uma Enola Holmes gótica com a ajuda dos outros. Ela aprende a se doar numa frente que reúne lobisomens, sereias, agentes do Estado, professora, mãozinha, família para evitar aquilo que temos nos dias de hoje: a destruição mutiladora da juventude.

Além de todo o acervo literário clássico – Shelley, Stoker, Poe, Conan Doyle – a série resgata os “monstros” da Universal – Lobisomen, Drácula – e o clássico moderno literato do mundo pop, Stephen King, cuja obra sempre foi pontuada contra o individualismo (Conte Comigo), o perigo do fascismo para os jovens (O Aprendiz), a perversidade juvenil (Carrie – que tem a famosa cena do banho de sangue no baile revisitada). A série sabe dosar o tom. Além de evidenciar os desvarios do fanatismo religioso também não poupa os discursos sectários identitários. Prefere, sem causar alarme, ocupar o primeiro lugar no Brasil com referências a um casal lésbico sem que haja abaixo-assinados virtuais. Tim Burton saiu da Disney e reencontrou o que há de melhor em si mesmo. Assim como a Wandinha, que ao se deparar com os monstros que cercam a juventude recorreu aos estudos e ao trabalho em equipe.


19 comentários:

José Bezerra de Oliveira disse...

Excelente artigo pra uma excelente série!

Rayff disse...

Nunca li tanta besteira

Cleyton disse...

Muito bom

John Lennon disse...

Muito bom o artigo, muitas referências.
Rayff diga quais besteiras foi escrita ?

Monique disse...

Sensacional

Pedro Ellis disse...

Sempre um alento suas análises. Sempre me traz olhares por prismas não alcançados antes.

Anônimo disse...

Excelente, mestre! Adorei as referências!

Anônimo disse...

amei ler prof, muito bem observado cada detalhe.

Anônimo disse...

O senhor sempre arrasa professor!!

Anônimo disse...

Infelizmente só pessoas com uma sensibilidade aguçada sabem reconhecer o que é bom do que não presta. Pena vc não ser uma delas.

Mateus Reimão disse...

Ótima análise, Professor. Muito preciso nas observações.

Anônimo disse...

Se você tivesse parado em "Nunca li" estaria mais coerente com seu grau de intelectualidade.

Anônimo disse...

O artigo ficou muito bom indo muito a fundo nos detalhes

BLOG DA SANDRA PAULINO disse...

Besteira é nunca ler.

Anônimo disse...

Excelente! Trazer a juventude para a república e democracia é urgente. Perpassando por trazer eles para a frente ampla, o que só será possível se as escolas se abrirem, permitindo repensar qual o seu papel na sociedade atual.

Anônimo disse...

Que conexões "nada a ver"

Adriano disse...

Ótimo texto e observações,professor!

Anônimo disse...

Artigo muito interessante que mostrou várias referências literárias que eu nunca tinha notado. Mas ficou confuso a parte das picanhas representarem o neoliberalismo (foi isso que entendi). Teria como explicar?

Anônimo disse...

Agradeço a leitura em nome do blog. A referência à picanha é quanto à fala metafórica do então candidato que priorizava o consumo (seja alimentar ou o que for) ao tema caro à origem do candidato e que é mais sensível à geração de Wandinhas e Wandinhos no país: emprego a partir de boa educação pública. O eixo neoliberal prioriza o privado consumista ao público da República. Foi uma crítica construtiva na tentativa de ajudar ao que hoje escutamos do senso comum: "cadê a picanha?". É essa a analogia.