Marco
Aurélio Nogueira, interprete da realidade brasileira contemporânea
Ricardo
José de Azevedo Marinho
Boa
noite a todos. Coube a mim, a pedido do nosso anfitrião o professor Gaudêncio
Frigotto, a tarefa de apresentar a vocês o professor Marco Aurélio Nogueira,
diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da
Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Não
é trivial falar dele para mim. Eu conheci o Marco nas páginas de um jornal que se chamava Voz da Unidade.
Era um jornal comunista, ligado ao Partido Comunista (PCB) e que disputou a sua
direção por ocasião de seu Sétimo Congresso.
Quando da morte de um grande amigo de sua
geração, o saudoso Gildo Marçal Brandão (1949-2010), dirigente daquele
periódico comunista de 1980 a 1981, o Marco (que também é de 1949) talvez tenha
escrito os textos que mais revelam de si mesmo e estão disponíveis tanto na
revista Lua Nova do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea
(CEDEC) como na Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS) da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS).
Numa daquelas publicações Marco dirá que “as gerações nos ajudam a desvendar a vida.” Na sequência afirma que
“Gerações intelectuais são feitas de amizades e companheirismo, mas não só. São feitas também de instituições e pontos de referência, simbólicos e materiais. Por essa via, trazem consigo rusgas, atritos, disputas, às vezes dilacerantes. Amizades podem até se desfazer, mas as gerações seguem em frente, como se protegidas por uma rede oculta de pequenas e grandes cumplicidades que operam no subterrâneo, ligando as agregações e cauterizando as feridas abertas pelos choques e golpes da vida.
Gerações intelectuais não são comunidades amorfas, desfibradas, insossas. São comunidades imperfeitas, forjadas no fogo. São internamente diferenciadas, múltiplas e plurais, no sentido de que, nelas, nem todas as luzes brilham ao mesmo tempo ou com a mesma intensidade. De algum modo, os representantes de uma geração dividem entre si o trabalho que estão fadados a fazer. Deixam o ar de sua graça, por isso, tanto pelo que é pensado e realizado por um ou outro de seus membros mais destacados, quanto pelo produto derivado do esforço menos perceptível do conjunto.”
Gildo Marçal Brandão
Nessa elegante sociologia dos intelectuais ele
revela o amigo e se revela.
“A morte abrupta, precoce e repentina de Gildo
Marçal Bezerra Brandão, ocorrida em 15 de fevereiro de 2010, abalou ao menos
uma das gerações intelectuais que se lançaram no universo das ideias e da
política no início da década de 1970, no Brasil. Tenho orgulho de pertencer a
ela e de ter podido trilhar um longo trecho de estrada com ele. Conhecemo-nos
em 1973, praticamente no mesmo momento inaugural: o início de uma carreira acadêmica,
a descoberta do jornalismo, o encontro com a política, a formação da identidade
ideológica e das preferências intelectuais. Nossos símbolos e pontos de
referência logo se tornaram comuns: o marxismo, a esquerda, Lukács, Gramsci,
Visconti, a USP, a Escola de Sociologia e Política, a Unesp, a Livraria e
Editora Ciências Humanas, o PCB, a revista Temas
de Ciências Humanas, o PCI, a Folha
de São Paulo, o jornal Voz da Unidade,
o ensino, a pesquisa, a democracia, depois o Cedec, a revista Lua Nova, a Anpocs, a Revista Brasileira de Ciências Sociais.
Fizemos ou participamos de tantas coisas juntos
que é no mínimo estranho que esteja eu aqui, sozinho, subscrevendo esse
registro memorialístico em tom de homenagem póstuma.”
Só essa breve passagem já diz muito dele e de sua
geração. Mas, essa outra me repõem na trajetória da minha descoberta de Marco
que compartilho com vocês nessa noite. Dirá ele
“Sua geração – que é a minha e a de tantos outros
que frequentam o Cedec, que leem ou lerão Lua
Nova, que têm a política como valor – deixou pegadas na história
brasileira. Sem cabotinismo (ah, como ele adorava essa palavra!) e sem falsas
modéstias, ainda que também sem o devido reconhecimento. Foi uma geração que
viveu com intensidade. Experimentou de tudo, imaginou cenários épicos, abriu
muitas sendas. Atracou-se com a resistência à ditadura e a transição
democrática, com a luta armada e a luta eleitoral, jogou-se nos espaços da
intransigência e da negociação, construiu instituições. Absorveu praticamente
todos os influxos dessa movimentação, combinados em maior ou menor medida com
as ressonâncias e os desdobramentos de 1968, da Tchecoslováquia, do
eurocomunismo, da cristalização da ideia de democracia como valor universal,
das novas formas do movimento operário, da questão feminina, da
reconstitucionalização do país, do Muro de Berlim, do desaparecimento dos
partidos comunistas, da vida líquida e informacional. Não foi uma geração que
se limitou a assistir a tais acontecimentos portentosos. Pôde participar deles,
interferir neles, protagonizá-los. Talvez por isso tenha ido tão longe e possa,
hoje, proclamar sua personalidade geracional.
Por opções e armadilhas da vida, Gildo chegou
relativamente tarde ao trabalho acadêmico mais sistemático. Entre 1973 e 1989,
o jornalismo e a política o consumiram. Trabalhou na Folha com Cláudio Abramo,
dirigiu o jornal comunista Voz da Unidade
de 1980 a 1981, ajudou a editar o Diário
do Grande ABC. Especialmente na Voz,
com a contribuição de um seleto grupo de colaboradores e companheiros, viveu
uma intensa aventura intelectual, de que pude ser testemunha e partícipe.
Entregou-se a ela com um sentido de missão que jamais cedeu à tentação do
fanatismo ou da prepotência e que buscou explorar ao máximo as oportunidades
que se abriam – mas que logo se fechariam – para uma reinvenção do comunismo,
de sua cultura, de sua linguagem, de sua forma de comunicação com a sociedade.
Perdeu uma batalha, mas nenhuma guerra.”
Carlos Nelson Coutinho
Está claro que a batalha a que Marco se refere
era aquela que ele e os seus da sua geração e de outras gerações disputaram a
direção da política do PCB.
E assim, ao retornar a minha trajetória de descoberta
do Marco, gostaria de agora finalizar essa breve apresentação dessa noite.
As Ruas e a Democracia, o livro e a palestra do Marco que
vamos vivenciar ocorre do quase fechamento do ano de 2013. A nossa Constituição
chegou nesse ano aos seus 25 anos. Não têm faltado, felizmente, comemorações à
efeméride, e as magistrais passagens de As
Ruas e a Democracia sobre a dita convocação de um plebiscito sem eira nem beira como resposta
governamental as jornadas de junho são a comprovação cabal de que a tal
propositura não passava de uma fuga para frente daquela difícil conjuntura. Sabendo-se, porém, com que rapidez –
qualidade a ser cultivada no presente milênio como queria Italo Calvino
(1923-1985) – a atenção se fatiga quando as
circunstâncias lhe impõem que se aplique o exame rigoroso das questões candentes,
não é arriscado prever que o interesse público pelas jornadas de junho de 2013
só venham a diminuir, dia após dia. Ao contrário, a Constituição de 1988 segue
sua sina de ser o enigma decifrável da nossa democracia.
Como declaração de princípios e regras que é, a Constituição
criou obrigações legais a República. Todos sabemos, porém, que essas obrigações
podem acabar por ser desvirtuadas ou mesmo denegadas na ação política, na
gestão econômica e na realidade social. A Constituição é geralmente considerada
pelos poderes econômicos e pelos poderes políticos, como um documento cuja
importância não vai muito além do grau da boa consciência que lhes proporciona.
Nestes 25 anos não parece que os Governos tenham feito pelos
direitos inscritos nela tudo aquilo a que, moralmente e intelectualmente (como
diria Gramsci que Marco, ao lado de
Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) e Luiz Sérgio Henrique, foi
responsável pela tradução para o português – de
1999 a 2002 – dos seus Cadernos do
Cárcere),
quando não por força da lei, estavam obrigados.
Desta forma, As Ruas e
a Democracia aponta, entre outros insignts,
que alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos,
seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque
não lhe permitem os que efetivamente governam com suas hegemonias imperfeitas, as empresas multinacionais e
pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, que vem reduzindo
a uma forma sem conteúdo o que ainda resta de ideal de democracia. Mas também
não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. E isso As Ruas e a Democracia também aponta.
Por isso uma Constituição da democracia
deve ser disputada todos os dias, inclusive nas ruas, uma vez que nenhum dos direitos poderão subsistir sem a
simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais será exigir
que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e
satisfeitos. Não é de se esperar que os Governos façam nos próximos 25 anos o
que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a
palavra democracia e a iniciativa das
ruas. Com a mesma veemência e a mesma
força com que reivindicarmos os nossos direitos nas ruas, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres da democracia.
Finalmente, o Marco deve lembrar o título da sua contribuição
na tribuna de debates levada a efeito na Voz
da Unidade por ocasião do Sétimo Congresso do PCB. Talvez o seu As Ruas e a Democracia possa ser lido numa
paráfrase daquela contribuição pois só com a devida compreensão do Brasil que
temos, poderemos caminhar com passos firmes para o Brasil que queremos, para
seguir tornando-o melhor em todas as nossas esquinas e instituições. Obrigado!
Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 2013