As coisas que perdemos no fogo da Nossa parte de noite
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
A realidade pode conter o macabro e o perturbador e
As coisas que perdemos no fogo (2016 lá e 2017 aqui pela Intrínseca), a
coletânea de contos da escritora argentina Mariana Enríquez, faz isso com
maestria mobilizando o medo e o terror cotidiano que vem das profundezas
históricas de seu país (e não só) e deságua no cenário do governo de Mauricio
Macri (2015-2019). Em um olhar de relance, as doze narrativas da escritora
argentina poderiam parecer surreais para os leitores brasileiros. Entretanto,
elas se mostram com uma familiaridade estonteante e o cotidiano se transforma
em pesadelo.
Personagens e lugares comuns não ocultam um
universo insólito e comum de argentinos e brasileiros e tal como ocorreu com o
apagão de 2001 lá e cá e que fez desnudar a luz do dia que a crise energética
que vivenciamos era o resultado de opções históricas equivocadas de nossas
ditaduras, que não planejaram a expansão e a diversificação do sistema
elétrico.
São esses os elementos junto com os da pandemia e
não arroubos revogatórios que devem nos informar na leitura atenta do Decreto
argentino nº 389, de 16 de junho de 2021 que dá nova redação ao artigo 4 e os
apenas derrogados artigos 6, 8, 9, 10 e 11 do Decreto nº 882, de 31 de outubro
de 2017, reposicionando a política anterior pró-mercado dos ativos energéticos
agora considerados estratégicos.
O novo decreto retoma a regulamentação e a política
iniciada em 2005 com Néstor Kirchner (1950-2010) com o Fundo de Investimento no
Mercado Atacadista de Energia Elétrica (FONINVEMEM), que busca uma articulação
de ações com o setor privado. O FONINVEMEM estabeleceu
que as dívidas que o Estado tinha com os entes privados seriam saldados
mediante a cobrança futura dos valores obtidos com a geração de energia
elétrica mais suja carbonácea das usinas termoelétricas Manuel Belgrano e José
de San Martín e que seriam construídas com o remanejamento do orçamento das
dívidas e novos aportes do Estado. Ao reposicionar as dívidas, essas usinas
seriam transferidas para o patrimônio do Estado. Havia uma projeção de que a
demanda por energia estaria em ascensão ao considerar a economia em constante
crescimento, diferente do que acabou por gerar a crise de governo.
O Decreto 389/2021 de igual forma recupera a área
exploratória no oceano atlântico sul argentino (óleo e gás, energia mais suja, pois
carbonácea) localizada na bacia das Malvinas onde, através da Integración
Energética Argentina S.A. (IEASA), onde o Estado durante os anos 2014 e 2015
fez investimentos em estudos técnicos de 50 milhões de dólares. Apesar de
contar com um programa de perfuração exploratório, em 2017 a área ficou a cargo
do Estado junto com todos os estudos sísmicos, técnicos, econômicos e
financeiros que a IEASA tinha desenvolvido com enorme esforço próprio.
O novo decreto revaloriza esse projeto para que,
além de retomar e dar sequência ao FONINVEMEM se redefine por força da pandemia
a presença do Estado argentino com a IEASA na bacia das Malvinas a poucos
quilômetros das ilhas da discórdia.
Sob vários aspectos, a Argentina está
redirecionando os destinos da IEASA segundo as diretrizes e promessas propostas
no ano de sua criação, em 2004. Uma empresa
energética estratégica. Vetor de desenvolvimento energético com inclusão
social. O estado atual do setor onde se busca resolver a equação energética e
se define o desenvolvimento planetário e produtivo da República Argentina,
sempre em colaboração com os demais atores para que a equação inclua a todos.
Contando com a lucidez a IEASA e o Estado sabe que
não farão essa mudança de rumos sozinhos, pois é necessário contar com o
acompanhamento inabalável da república e da democracia que reconhecem na IEASA
o valor do esforço, dedicação e perseverança exigidos pelas suas equipes para
cumprir os objetivos traçados. A partir da pandemia, o Estado argentino mais
uma vez se reposiciona como ator dentro do setor de energia.
Mas onde está a beleza literária nisso tudo? É que Nossa
parte de noite (dezembro de 2019 lá e 2021 aqui pela Intrínseca) romance da
Mariana Enríquez mostra que as crises também existem para fazer com que aqueles
que souberem decifrar seus sinais como o pai Gaspar (não seria ele um
Gasparzinho?) possam crescer e aprender com os erros, e até mesmo tornar
visível a escuridão para que o seu filho Juan não seja tragado por ela. E esse
episódio literário energético nos ajuda a entender o que está acontecendo
conosco e nos conecta com certas partes que queríamos cobrir, mas que a
bandeira vermelha tarifária nos patamares 1 e 2 não nos deixam calar.
Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2022
[1] Professor do
Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
2 comentários:
Excelente!
Sim, excelente texto.
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