segunda-feira, 2 de outubro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 023 - UMA LIÇÃO DE LAMPEDUSA

A Tentação do Simples

 

Pelo Outubro Rosa

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Por compromissos internacionais a 39.º Presidência da República Federativa do Brasil passou quase todo o mês de setembro em viagens, Tão Longe, Tão Perto do que acontecia no Brasil, mas aqui estava por ocasião da condenação pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal das primeiras ações penais sobre os atos antidemocráticos de 8/1.

É claro que muitos acontecimentos ocorreram nos meses anteriores e outros serão implementados posteriormente, com a persistente e intensificada busca pelos demais envolvidos, tarefa mais concreta e proeminente nestes tempos democráticos. Como bem sabemos, o conteúdo do julgamento ainda não conseguiu ser - e talvez nunca o seja - um momento revigorante da nossa textura democrática.

Isto não é apenas o produto de um certo momento difícil, mas também é fruto de confusão pedagógica democrática e de uma falta de capacidade de gestão. Parte disto sem dúvida existe, mas graças as homeopáticas mudanças ministeriais, algumas até com uma interpretação teórico-militar como “giro táctico”, mais o savoir faire de Napoleão de Ridley Scott foi acrescentado à conduta do Estado, embora os resultados positivos sejam até agora muito parciais e fazendo os passos em falsos tenderem a seguir e predominar.

Também não é produto de uma incapacidade de aprender por parte da Presidência, que tem feito um esforço para melhorar a condução do seu staff no Palácio do Planalto no exercício político cotidiano, apesar das suas contradições em ações e palavras, impulsos emocionais numa direção ou outra e alguma atitude cuja lógica racional é difícil de decifrar tanto pelos seus seguidores como pelos seus adversários e, sobretudo, pela maioria dos cidadãos, que tendem a ter uma posição bastante distanciada em face ao poder. A cidadania simplesmente aprova ou rejeita suas ações de acordo com a forma como a percebe.

Apesar das falhas, a Presidência segue dedicada ao seu trabalho, com vontade de acertar, boas intenções e certo espírito democrático que o tem levado a mudar frequentemente de ideias, na maioria das vezes para corrigir erros.

O problema está em outro lugar. O que impede um bom governo parece residir sobretudo na composição da coligação governamental da Frente Democrática, o que torna muito difícil para esta expandir a sua base de apoio num sistema democrático, porque as suas propostas e ações não são inteiramente consistentes na sua orientação e com dificuldade de gerar credibilidade.

Tendo minimamente duas almas desencontradas ou não como certa vez ensinou o saudoso Gildo Marçal Brandão, se a proposta e a ação forem radicais não desperta entusiasmo nos seus setores mais reformistas e se for moderada terá oposição dos setores radicais. A consequência natural é a imobilidade, o páramo.

Podem, consequentemente, encontrar um denominador comum ocasionalmente, mas nem sempre, e dificilmente em questões de longo prazo. A esquerda democrática considera a democracia liberal como um valor permanente e quer reformar e regular como ficou claro no compromisso pelo trabalho e sindicatos firmados por Lula e Joe Biden; mas isso não elimina um momento intransponível de atrito com vários componentes radicais que consideram esse evento como tático e seguem aspirando um regime político e econômico diferente que já não se sabe muito bem em que consiste. Como resultado, a coesão da coligação governamental a longo prazo será sempre fraca, contraditória e insuficiente.


Cena do filme Il Gattopardo (Em lembrança de seus 60 anos) 

É natural que os setores radicais apoiem com sincera convicção os regimes cubano, nicaraguense e venezuelano. Que sentem uma certa simpatia pela Coreia do Norte e, claro, com alguns pontos de interrogação, pelos seus aspectos capitalistas, pelas experiências chinesa e vietnamita. Que eles possam ser tocados por tudo o que o suposto anti-imperialismo passa e também que possam subitamente se envolver com a Rússia oligárquica de Putin, com quem partilham um olhar nostálgico sobre o passado soviético, reconstruindo assim na sua imaginação um mundo simples com amigos e inimigos claros ou não a lá Carl Schmitt.

Afinal de contas, são a sua identidade política, que pouco tem a ver com a cultura democrática e as situações geopolíticas atuais, mas que permanecem a existir nos seus corações e ficam a girar nas suas cabeças. É muito difícil dirigir eficazmente um governo quando nele coexiste um pensamento simples, doutrinário e identitário com outro que, embora tenha hesitações, é mais complexo.

Hoje, as forças de extrema direita seguiram tentando impor as suas visões unilaterais que negam o bom senso alcançado pela sociedade brasileira. Falta-lhes qualquer espessura democrática e aparece o seu duro fundamentalismo político, arrastando a direita institucional para o passado. Se não houver vontade de encontrar soluções aceitáveis ​​para o Grande Número brasileiro, o país corre o risco de uma nova rejeição à política.

É evidente que o Brasil precisa reduzir o peso das posições antipolíticas para reforçar a sua coexistência democrática. Não basta que os novos líderes políticos estejam satisfeitos com o fato de as coisas não piorarem e de as divisões existentes não se aprofundarem. É muito razoável que a Presidência encontre uma zona de conforto ao sentir que tem um apoio, mesmo que as coisas não estejam bem econômica e socialmente.

O discurso ambíguo permite-lhe preservar a coesão da sua coligação governamental, mesmo que não avance para os acordos ​​que possam desbloquear a situação atual. Mas manter a ambivalência também significa resignar-se, acomodando-se na letargia. A mudança é difícil, terá custos emocionais e políticos, exige muita coragem e um grande sentido de Estado.

Entendemos que talvez o que se afirma não passe de um bom desejo, mas se não acontecer, poderemos estar pavimentando um mal caminho para o gattopardismos, que não aspira a modernidade em sua plenitude e abre a possibilidade para a desconfiança de novos avanços democráticos e republicanos.

 

1 de outubro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.


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