terça-feira, 24 de outubro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - ITALO CALVINO E OS LEITORES INVISÍVEIS


 

Um século do escritor que redigiu mundos

 

Para Benjamin, o anjo da história

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Nasci na América… Uma vida em 101 conversas (1951-1985), de Italo Calvino (São Paulo: Companhia de Letras, 2023)

 

É conhecida a anedota entre Jorge Luis Borges e Italo Calvino – que este ano completaria 100 anos – durante o Curso de Literatura Fantástica organizado por Jacobo Siruela e realizado no Hospital dos Veneráveis de Sevilha em 1984. Borges estava no hotel quando chegaram Italo Calvino e sua esposa, a argentina Esther Judith Singer (Chichita). Os dois compatriotas começaram a conversar e depois de um tempo Chichita disse a ele: “Borges, Italo também veio...”, ao que ele respondeu: “Reconheci-o pelo silêncio”. Pois bem, essa pessoa muito quieta e invisível – Um homem invisível é o título do documentário dirigido por Nereo Rapetti em 1974 sobre a vida de Calvino em Paris – se abriu, tanto pessoal quanto literariamente, em inúmeras entrevistas realizadas ao longo dos anos. Mais de trinta anos e publicadas em diferentes meios de comunicação. A editora Companhia de Letras, que desde a sua criação fez de Italo Calvino uma das suas marcas, reuniu estas entrevistas esclarecedoras em Nasci na América… Uma vida em 101 conversas (1951-1985).

É difícil afirmar a que gênero pertencem as peças de Nasci na América, seja jornalístico, biográfico, de crítica literária ou tantas outras possíveis. De qualquer forma, os livros de entrevistas geralmente mostram melhor as ideias e a personalidade do entrevistado – com as inevitáveis ​​reiterações – do que os de artigos e ensaios de crítica acadêmica e não só. Têm ainda a vantagem de nos permitirem apreciar com clareza o desenvolvimento pessoal e da escrita do entrevistado ao longo dos anos. Naturalmente, de fundamental importância nestas conversas é o papel da entrevistadora e do entrevistador, as suas perspicácias na seleção das perguntas e nas suas capacidades de extrair informações e opiniões do protagonista, nesta experiência Italo Calvino.

De Nasci na América… Uma vida em 101 conversas (1951-1985) - (Companhia de Letras, 2023), acompanha a edição original italiana que contém essa centena de textos organizados cronologicamente e compilados por Luca Baranelli, nitidamente voltados para a literatura e aspectos biográficos de Calvino, e distribuídos conforme a data de sua publicação. Um índice onomástico de nomes ao final do volume ajuda a localizar o grande número de personagens (principalmente escritores) que aparecem nessas conversas. Claro está que por baixo da sua simplicidade e modéstia ("Tenho sempre dificuldade em exprimir-me, quando falo e quando escrevo"), Calvino era um homem de grande complexidade - como na época em que viveu - e muito rigoroso nas suas criações. Isso fica evidente nas respostas às perguntas feitas: Calvino tem ideias claras e nunca divaga, suas respostas são concisas, esclarecedoras e sempre expressas com precisão. O último volume desse naipe entre nós foi o livro Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual, do cientista social Luiz Werneck Vianna. A obra de 2018 é uma coletânea de entrevistas realizadas desde o início dos governos do PT-PL, PT-Republicanos e PT-MDB, a partir de 2003. O Gramsci que embala esse volume também é citado por Calvino.

Aliança PT-PL (2002)

Embora não seja habitual este tipo de compilação, interessa observar como as reiterações ocorrem com determinados temas e questões. Daí ser aconselhável ler essas entrevistas aos poucos, de forma tranquila e serena, como livro diverso que é. Quanto ao conteúdo, logicamente há mais falas de época e circunstâncias de Calvino do que aqueles feitos em sua juventude ou após a publicação de suas primeiras obras. De toda forma, é possível acompanhar com algum rigor a biografia de Calvino, desde a infância e juventude passada em San Remo, a sua militância na Resistência, a sua trajetória no Partido Comunista ("Eu era livre antes e sou livre agora"), o longo período de vida em Paris, o regresso parcial a Itália (Roma), os sucessos das suas últimas obras (curiosamente, as mais experimentais) e os anos de envelhecimento.

Todo o volume está repleto de informações, mais ou menos desconhecidas do público em geral. Por exemplo, numa entrevista fala-nos do seu grande amor pelo cinema - já foi membro do júri do Festival de Veneza - e que abomina a dublagem em filmes ("A dublagem parece-me uma barbárie sem sentido e não entendo como ninguém jamais se revoltou." Quanto às repetidas questões sobre a bipolaridade da sua obra literária (realista e fabulosa), Calvino justifica-se dizendo que “vivemos numa civilização literária baseada na multiplicidade de línguas”. Calvino é um leitor de múltiplos interesses, incluindo astronomia como também fora Adam Smith ("Sou um leitor onívoro"), mas admite que seus escritores favoritos foram Ernest Hemingway e Joseph Conrad em seus primeiros dias, e mais tarde Poe, Queneau, Nabokov, Kawabata, Valéry, entre outros. Ele é franco quando fala de si mesmo (“Escrevo porque não tenho capacidade de falar”) e respeitoso quando fala dos outros. Sobre o seu conhecido interesse pelos contos tradicionais e de fadas, declara: “Penso que os contos de fadas correspondem a necessidades profundas de aprendizagem emocional e imaginativa: não é em vão que se diz que estão relacionados com ritos de iniciação”. Do ponto de vista da crítica literária, os textos mais interessantes são aqueles que dizem respeito à sua concepção de arte narrativa, o seu desenvolvimento como escritor e à sua forma de trabalhar. Também as entrevistas dedicadas monograficamente a alguns dos seus livros são de grande interesse para os leitores, especialmente as suas últimas obras:  Os nossos antepassados, As cosmicômicas, Marcovaldo, As cidades invisíveis (o livro com o qual se sentiu mais satisfeito), Se um viajante numa noite de inverno e O castelo dos destinos cruzados. Claro que também reflete sobre Borges e o diálogo que manteve com ele: «É um autor que me interessa muito e que comecei a ler desde o momento em que se tornou conhecido na Europa. Imediatamente senti uma afinidade com seu gosto. Por exemplo, a sua inclinação para a construção geométrica na narração e no raciocínio, a transparência da sua expressão […] Pode-se dizer que Borges pertence a uma constelação de escritores deste século com uma espécie de inteligência fria.” Essas e muitas outras curiosidades são encontradas em Nasci na América, descrito pelo recém-falecido escritor italiano Pietro Citati, como “um livro lindo, inteligente e muito agradável, que fascinará muitos leitores”.

Não há melhor forma de celebrar o centenário de nascimento do Mestre do que mergulhando na sua personalidade e nas suas preocupações. Por esta razão, Nasci na América é um volume essencial que nenhuma leitora e leitor deve perder.

 

17 de outubro de 2023


[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - LIÇÕES DA POLÍTICA DE FRENTE DEMOCRÁTICA AOS HERMANOS

A Argentina no Divã

Dedicado ao trabalho de Edward Said e Amós Oz

Por Pablo Spinelli


Sugerimos que assistam ao vídeo antes da leitura.

Torna-se raro nos dias atuais encontrarmos uma produção escrita de forma leve para temas complexos e do mundo das coisas reais. É assim que lemos o livro ¿QUE PASA, ARGENTINA?: História, política, manias e paixões dos nossos hermanos, Editora Globo, 2023, da jornalista Janaína Figueiredo.

Como destaca a autora, os brasileiros acham que conhecem a Argentina tal como supõem que sabem falar espanhol. Ledo engano. O prefaciador, o embaixador Marcos Azambuja, tece loas à grandeza do país, seus recursos naturais, o nível educacional e cultural do povo, um país com cinco Nobel, dois Oscar, logo, a pergunta: por que a Argentina não deu certo? A capa com figuras míticas do país em plena desordem é uma pista.

O livro vai tratar dos problemas, das manias, dos acertos, dos descaminhos argentinos pelo olhar de uma pessoa que desde a infância convive no país, tem laços familiares e de profunda paixão com a Argentina, mas que não evita um olhar distanciado e crítico numa obra de uma filha apaixonada pelo pai e seu trabalho, o grande jornalista Newton Carlos. O objeto do livro é consequência da importância desse país que nos faz fronteira, carregado de tradições em comum – com adaptações locais – especialmente, no sul brasileiro, nosso terceiro parceiro comercial. Como o livro explicita, o que acontece em um país, reverbera no outro.

Ao olhar para a Argentina, o Brasil também se vê. Somos filhos do Iberismo que nos fundou a partir do herdeiro da Coroa Portuguesa. No caso argentino, há um Estado marcado por conflitos sangrentos entre unitaristas e federalistas, incessantes guerras civis num processo que se pacificou a partir da intervenção brasileira na região. O americanismo argentino foi duro, a discussão federalista muito difícil e custou muito sangue dos povos nativos, em especial da região da Patagônia, cristalizando um racismo bivalente que atribui à mestiça cantora Mercedes Sosa o título de “la negra”.  

A autora buscou em entrevistas com acadêmicos e representantes de governos diversos explicações para o país. Um país que é rico em grãos, carnes, gás e lítio e que convive com hiperinflação de décadas, calotes, desconfiança com o sistema bancário (similar ao que tivemos no Plano Collor), falta de créditos internos e muita, muita dependência de dólares combinada a uma política protecionista que subsidiou um parque industrial que está anacrônico e produtores rurais que preferem os dólares do mercado externo com o desabastecimento do mercado interno.

General João Batista Figueiredo (Brasil) e General Jorge Raphael Videla (Argentina): tempos da Ditadura

A autora nos permite um paralelo entre as transições democráticas em cada país. Generais foram julgados em 1985 no governo da transição de Raul Alfonsín, sendo que o mesmo presidente, pressionado, fez uma ampla lei que impossibilitou julgamentos posteriores; além disso, o nosso processo de transição não teve uma Guerra das Malvinas (evocada no filme “Um conto chinês”) que solapou a imagem dos militares com um banho de sangue argentino. Eis a pergunta: a falta de guerras civis sangrentas, uma quase anomia, uma guerra internacional com uma potência europeia (que levou a Argentina para uma derrota política, econômica e moral), faz da nossa história – a da ação, reação e transação; da revolução passiva – uma história menor e envergonhada? É bom lembrar que enquanto o General Videla estava no banco dos réus, no nosso cangote estava o General Leônidas Pires Gonçalves[1].

O livro não se furtou de falar de grandes problemas argentinos contemporâneos – o desgaste do peronismo (é uma bela introdução para entendermos que o peronismo tem muito mais a ver com uma igreja multifacetária do que com uma ideologia); o cansaço da sociedade com os partidos políticos; a perda de jovens para fora do país ou para as redes de criminalidade que crescem no país; a desvalorização da educação que trouxe a perda da memória do terrível legado que a ditadura militar (1976-1983) trouxe para os argentinos. Tal conjuntura leva a jovens e “descamisados”, termo eternizado pelo mito Evita Perón (que jamais disse “não chores por mim, Argentina”) a acreditar em uma figura que mistura vulgaridade, ressentimento e messianismo que é Javier Milei.

Milei é a encarnação da antipolítica, inspiração para o pastor presidente da série “Vosso Reino”, segundo a roteirista; o ataque tresloucado à “casta política”, a mesma que quer participar. Pelo livro de Janaína, vemos um país que tem seus aeroportos ocupados por desabrigados (pág. 35), cena impensável há três décadas. Milei é um fenômeno catapultado pelas redes sociais e que encontra força nos grupos da periferia da Grande Buenos Aires que passa a ser “contra tudo o que está aí”, e da elite econômica que, paradoxalmente, quer a dolarização de um país que já é dolarizado. A autora resgata que não é algo inédito na história do país quando destaca o que foi o Governo Menem, o peronismo mais à direita e de perfil neoliberal que vigorou naquele país. O livro traz à memória o menemismo e seus efeitos danosos para a Argentina.

O retrato de um país que vive no divã por conta da obsessão por terapia acaba por dizer que seu povo entende como de sua responsabilidade a cena contemporânea. As escolhas subjetivas são importantes, mas não respondem pelo cenário econômico e social argentino, pois lá como cá, não enfrentou a questão agrária e o Estado optou por assistencialismo ao trabalho, flertou com o fascismo antes, durante e após a guerra – com a criação do Dia da Lealdade Peronista - um típico labirinto de Jorge Luís Borges.

Ao mesmo tempo, após lermos sobre Maradona, Evita, Perón, Cristina, Néstor, Darín, Cavallo, Messi (que se recusou a abraçar Macri), cabe ao Brasil responder a uma pergunta: “como vamos ajudar a Argentina a passar pelo olho do furacão?”. O livro não explicita, mas há um norte. Esse sendero está na construção de uma Frente Democrática (como fizemos no calor da hora) com um programa de governo (que não tivemos) que inclua a juventude (que abdicamos, mas há uma Secretaria Nacional da Juventude a nos sorrir por aqui) e com uma pitada inglesa cuja presença está nos nomes dos times de futebol: “nada lhes prometo, a não ser sangue, suor e lágrimas”. Para o país do tango, nada como dançar sobre esse drama e dar um drible desconcertante na extrema-direita, nem que se ganhe por una cabeza, como nos lembra a canção feita por um argentino com um brasileiro.



[1] O general Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015) foi nomeado Ministro do Exército pelo presidente eleito Tancredo Neves. Com a morte de Tancredo, foi quem garantiu a posse de seu vice, José Sarney, contrapondo-se ao que desejavam certos setores do exército, que pretendiam dar posse ao Presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães. Sua fala famosa foi: "Quem assume é o Sarney". O senador do PMDB, Pedro Simon perguntara a Ulysses porque aceitara tão rapidamente a tese de Leônidas. O Sarney chega aqui ao lado do seu jurista. Esse jurista é o ministro do Exército. Se eu não aceito a tese do jurista, a crise estava armada’

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

VAMOS AJUDAR NÚMERO 001 - SOMOS PELO CESSAR FOGO AQUI E ACOLÁ - EM DEFESA DA PAZ


 SAARA (Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega) - RJ
 SAARA é um centro comercial a céu aberto que se formou na convivência entre árabes e judeus.

Os conflitos aqui e acolá

Marcio Junior[1]

 

Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron

Rimos com as doces meninas sem sair do tom

O que fazer chegando aqui?

As camélias do Quilombo do Leblon brandir

 

Caetano Veloso e Gilberto Gil

As Camélias do Quilombo do Leblon

 

As responsabilidades do Brasil frente ao prosseguimento do conflito Hamas-Israel e vice-versa, espaço de história complexa e cuja boa compreensão passa pelo retorno também há tempos longínquos, possuem grande importância haja vista a nossa tarefa ao presidir o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Essa mediação, mesmo com a sua temporariedade, não deixa de ser oportuna para o avanço da civilização em direção à paz, principalmente se nossa resposta for, como está sendo até o momento da escrita destas linhas, alinhada aos valores da nossa República e da nossa Democracia, corroboradas por, como bem diria o nosso Gênio da Raça Gilberto Freyre, um novo tipo social ainda em formação, cuja plasticidade resultante de sua miscigenação fornece a este povo um possível caminho do meio, dotado de maior equilíbrio e moderação, que apareceu com maior visibilidade também em experiências recentes e fundamentais, como na confecção da Constituição cuja promulgação completou 35 anos no dia 5 deste mês de outubro. Experiência singular nesta Rússia Americana, de Guerra e Paz.

A aproximação antropológica que permeou a nossa formação em seu início, marcada inclusive pelo sexo, constituiu o ponto primordial da nossa abertura à modernidade. Não se tratou de cancelar os nossos antagonismos, mas de equilibrá-los; criamos aqui condições de amortecer, em muito e/ou em pouco, o choque entre eles. Assim, não é estranho para o mundo, como não é para nós, a formação de uma sociedade pautada por elementos antagônicos, cujo equilíbrio que aqui compõe nosso processo formador foi investigado pelo nosso pensamento social. Outras sociedades não tiveram a mesma sorte, e em outros espaços não há, dentre os aglomerados humanos que ali vivem e a sociabilidade que estanque o permanente conflito. Talvez haja, pelo contrário, incentivos internos e externos para seguir em sentido contrário e quiçá piorá-lo.

Porém, como um dia salientou Caio Prado Junior, esse sentido da nossa experiência nessas terras somente iria desabrochar com o tempo, e o conflito permanece, mesmo o Brasil sendo um lugar onde sabemos evitar certos conflitos que outros países de experiências análogas não conseguiram evitar. Dentre as várias pistas, próprias de um país ainda em início de formação (só temos 200 anos), a violência não nos é estranha; seja em ambientes urbanos, como é visto a olhos nus principalmente no Rio de Janeiro e na Bahia, seja em ambiente agrário. Os nossos antagonismos permanecem assumindo formas outras, sempre complexas, no crime, na religião, nas classes. Ainda estão em curso, lentamente como recordou Caetano ao musicar Nabuco, as correções das marcas que a escravidão deixou entre nós.

Com a chamada à guerra por todos os cantos, inclusive aqui pelo crime organizado e grupos extremados na política, o pessimismo da razão nos mostra um futuro dificílimo, que vai se podando as saídas civilizatórias. Por mais que tenhamos lufadas de ar fresco, problemas específicos como o abandono da educação por nós mesmos (e por muitos que deveriam zelar por ela) apontam que estamos descendo o rio em direção ao Coração das Trevas, como mostrou Joseph Conrad.

Nesses tempos sombrios e fraturados, onde a dimensão conflitiva atinge a tudo e a todos esgarçando o tecido social e separando as pessoas, é imensa a nossa responsabilidade, quanto a nós e quanto ao resto do planeta, para trilharmos um caminho de flores e votos para um cessar das balas. Aí está, quem sabe, um bom motivo para equilibrarmos, também, nosso pessimismo com o otimismo da razão.



[1] - Doutorando em Ciências Sociais em Agricultura, Desenvolvimento e Sociedade pela UFRRJ.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

DEMOCRACIA SE COMEMORA


Os 35 anos da Alvorada da Democracia

Julio Lopes[1]

No ano em que se consuma o centenário da morte de Rui Barbosa, o qual discutiu, pioneiramente, a questão democrática brasileira em inéditas campanhas presidenciais populares, em que a Carta cidadã de 1988 completa 35 anos de vigência, e no qual houve a primeira tentativa organizada de abolir o Estado Democrático de Direito no Brasil, cabe uma resposta institucional que ultrapasse a lamentável tentativa política ditatorial.

Neste sentido, além dos Poderes republicanos reagirem em defesa da democracia constitucional ameaçada, também é necessário, inclusive porque condizente com o dever cívico de democratas, renovarem, anualmente, seu compromisso institucional, cultivando a memória democrática brasileira.

É através de atividades diversas, e condizentes com a natureza institucional de cada Instituição pública, que recordem, discutam e comemorem as lutas sociais e políticas que propiciaram a atual Magna Carta brasileira, na qual a cidadania foi expressamente inscrita como nunca antes, que sua memória nacional vivificada poderá contribuir para a ainda necessária construção de uma cultura cívica democrática ou participativa, junto à e com a população brasileira.

Para isso, é necessária uma política cultural regulatória da memória democrática brasileira, que nem implica quaisquer gastos públicos acrescidos, já que seriam atividades memoriais inerentes às programações anuais das Instituições públicas. Tal regulação da memória da conquista da liberdade política, pela soberania popular brasileira, apenas destacaria sua previsão ordinária na governança habitual das Instituições dos Poderes estatais e sem tolher ou mesmo estimulando outras iniciativas análogas pela sociedade civil no Brasil. Cujas associações civis também poderiam, eventualmente, articular eventos conjuntos com órgãos públicos na promoção da memória coletiva pela democracia brasileira.

Afinal, também cabe a um governo de conciliação nacional, pela reconstrução democrática, propor articulações amplas com os Poderes Legislativo e Judiciário (ameaçados diretamente ou indiretamente pelo golpismo autoritário que têm grassado, recentemente, em nosso País), para fomentar a circulação de informações cuja veracidade histórica tanto correspondem aos arquivos institucionais já tão consolidados, quanto contribuintes para a formação de uma consciência coletiva mais sólida à cidadania brasileira.

Neste sentido democrático pela consolidação da democracia brasileira, através da formação de uma cultura cívica correspondente, proponho a seguinte lei:

                                SEMANA DA CIDADANIA

É instituída a Semana da Cidadania, correspondente ao período anual semanal no qual transcorra o dia 05 de outubro, no qual foi promulgada a atual Constituição Brasileira.

Parágrafo único: Durante o período semanal anual supracitado, as Instituições públicas, especialmente federais e que permeiam os Poderes republicanos, devem promover eventos comemorativos, preferencialmente reflexivos, mediante atividades tão pertinentes à suas missões institucionais, quanto relativas à memória coletiva do advento do Estado Democrático de Direito e os direitos constitucionais, nela proclamados.

XXXXXXX

Acesse o link abaixo para registrar seu APOIO. Divulguem em suas redes sociais esse texto.

  https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoideia?id=176537




[1] Pesquisador Titular em Ciências Sociais e Humanas da Fundação Casa de Rui Barbosa. Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Pós-Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco

domingo, 8 de outubro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 024 - ELEIÇÕES DOS CONSELHOS TUTELARES SERIAM O ENSAIO GERAL?

Conselhos Tutelares e Eleições de 2024

Vagner Gomes de Souza

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é um conjunto de normas de proteção dos direitos da criança e do adolescente que foi instituído no Brasil em 13 de julho de 1990. Nosso país estava com as “contas bloqueadas” pelo único tiro possível contra o “tigre da inflação” nas palavras do então Presidente da República. Era para serem os primeiros meses de um novo ordenamento institucional em substituição ao “Código do Menor”.

Um Brasil com menos de 10% da população que se declarava evangélicas. Logo, na esfera religiosa com toda a legitimidade democrática, a atuação marcante da Pastoral do Menor organizada entre os católicos a partir de 1977 como forma de fazer uma missão em favor de crianças e adolescentes empobrecidos. O social estava na ordem do debate do dia para denunciar as tratativas da República e da Democracia como o culto da política de moderação. A “revolução dos interesses” semeava os elementos do empreendedorismo individualizado que mudará em muito o perfil do mundo do trabalho.

O ECA resguardou os direitos num país que foi se aproximando da estabilidade inflacionária, porém passou por poucos momentos de crescimento econômico. Nesses 33 anos a juventude ampliou seu acesso a educação, mas os números de proficiência em leitura e interpretação, matemática e conhecimentos em ciências ainda estão em níveis muito abaixo do adequado. Além disso, surgiu uma pandemia com um grande impacto na vida das crianças e adolescentes que em muitos aspectos não se comenta ao falar das eleições aos Conselhos Tutelares.

As forças reacionárias apresentaram inúmeras propostas legislativas nessas últimas décadas com o intuito da redução da maioridade penal. Diante da capilaridade dos Conselhos Tutelares, eles ganham um valor muito estratégico na resistência a essa e outras propostas em contradição ao Estatuto. O reacionarismo não pode ser confundido com aquilo que chamam pensamento conservador nas eleições do Conselho Tutelar uma vez que atuam democraticamente mobilizando eleitores para legitimar o arcabouço jurídico e institucional do ECA.

 Não podemos deixar de considerar que muitos eleitores atribuem equivocadamente uma das razões do crescimento da violência a falta de punição as ações criminosas que está cada vez mais com o aliciamento das crianças e adolescentes. A narrativa reacionária apresenta a transformação de Dadinho como Zé Pequeno - personagem do filme Cidade de Deus (2002) inspirado em José Eduardo Barreto Conceição que foi um criminoso nos anos 70/80 no mesmo bairro.  Defendem que o “mal” precisa ser combatido pela raiz e o ECA impediria isso. Não nos surpreendamos que muitos ausentes nas eleições aos Conselhos Tutelares sejam dessa opinião ou, mais grava ainda seria o quadro, que haja eleitores ativos com esse perfil.


Não podemos reacender o atalho simplificado da ideia de “polarização” política na escolha dos Conselhos Tutelares uma vez que a linha tênue entre reacionários e conservadores é marcante. No decorrer da campanha aos Conselhos, o espírito de Frente Democrática está deixado em segundo plano, pois averiguamos muitas mensagens nas redes sociais defendendo “perfis” de um “Campo Progressista”. Todavia, a sociedade vive um dia a dia muito dramático para esse tipo de alinhamento. Não buscar a ampliação do “arco de aliados” até entre os evangélicos é o mesmo que o mundo sindical fez nos anos 80 com o líder metalúrgico “Joaquinzão”[1] que era um grande defensor do “imposto sindical”.

Estamos em tempos de transição na demografia e religiosa. Dois fatores que seriam singulares para que as Ciências Sociais estudem seus possíveis impactos na mobilização do voto. Os eleitores do segmento juvenil estão a reduzir e muitos comungam do pensamento reacionário como observamos nas atitudes em salas de aulas e na ascensão de grupos virtuais de jogos com perfil de grande violência. Ilusão considerar que haja uma “juventude progressista” uma vez que esse é o segmento mais alheio a qualquer participação coletiva nos dias atuais. Reagem até a participar de exames nacionais como SAEB ou ENEM. Imagina acordar num Domingo para ir votar ao Conselho Tutelar. A juventude mobilizada está nas instituições religiosas sem estar no aguardo de cargos públicos. O jovem evangélico (nunca mobilizado por uma Frente Democrática) faz pelo futuro como se ainda fosse a expressão da confiança numa utopia.

 Consequentemente, as lideranças de um importante segmento da sociedade não podem ser desconsideradas e/ou ridicularizadas como fanáticas. Não estamos condenados na terra se houver mais política de Frente. Afinal, não é impossível estabelecer um diálogo com os herdeiros do pensamento “Saquarema”, pois defendem o primado da Lei já constituída. A “lacração” só está nos isolando ao disputar o eleitor comum. Esse é o momento de reconhecer que esse sectarismo poderá nos levar a derrota às “casas legislativas” em 2024. Ainda é tempo de sair das “bolhas” dos coletivos e fazer política concreta.


[1] Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo desde 1965. Muito criticado como “pelego”, ou seja, um líder sindical conservador. Três momentos de sua atuação merecem ser lembrados: o protesto contra o assassinato do operário Manoel Fiel Filho nos porões da ditadura, em 1976, a ação judicial, também durante a ditadura, reivindicando perdas salariais e a greve pela redução da jornada de trabalho de 48 para 44 horas semanais, consubstanciada na Constituição de 1988 como marco para colocar o dia 5 de outubro no calendário nacional como Dia da Democracia.


segunda-feira, 2 de outubro de 2023

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 023 - UMA LIÇÃO DE LAMPEDUSA

A Tentação do Simples

 

Pelo Outubro Rosa

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Por compromissos internacionais a 39.º Presidência da República Federativa do Brasil passou quase todo o mês de setembro em viagens, Tão Longe, Tão Perto do que acontecia no Brasil, mas aqui estava por ocasião da condenação pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal das primeiras ações penais sobre os atos antidemocráticos de 8/1.

É claro que muitos acontecimentos ocorreram nos meses anteriores e outros serão implementados posteriormente, com a persistente e intensificada busca pelos demais envolvidos, tarefa mais concreta e proeminente nestes tempos democráticos. Como bem sabemos, o conteúdo do julgamento ainda não conseguiu ser - e talvez nunca o seja - um momento revigorante da nossa textura democrática.

Isto não é apenas o produto de um certo momento difícil, mas também é fruto de confusão pedagógica democrática e de uma falta de capacidade de gestão. Parte disto sem dúvida existe, mas graças as homeopáticas mudanças ministeriais, algumas até com uma interpretação teórico-militar como “giro táctico”, mais o savoir faire de Napoleão de Ridley Scott foi acrescentado à conduta do Estado, embora os resultados positivos sejam até agora muito parciais e fazendo os passos em falsos tenderem a seguir e predominar.

Também não é produto de uma incapacidade de aprender por parte da Presidência, que tem feito um esforço para melhorar a condução do seu staff no Palácio do Planalto no exercício político cotidiano, apesar das suas contradições em ações e palavras, impulsos emocionais numa direção ou outra e alguma atitude cuja lógica racional é difícil de decifrar tanto pelos seus seguidores como pelos seus adversários e, sobretudo, pela maioria dos cidadãos, que tendem a ter uma posição bastante distanciada em face ao poder. A cidadania simplesmente aprova ou rejeita suas ações de acordo com a forma como a percebe.

Apesar das falhas, a Presidência segue dedicada ao seu trabalho, com vontade de acertar, boas intenções e certo espírito democrático que o tem levado a mudar frequentemente de ideias, na maioria das vezes para corrigir erros.

O problema está em outro lugar. O que impede um bom governo parece residir sobretudo na composição da coligação governamental da Frente Democrática, o que torna muito difícil para esta expandir a sua base de apoio num sistema democrático, porque as suas propostas e ações não são inteiramente consistentes na sua orientação e com dificuldade de gerar credibilidade.

Tendo minimamente duas almas desencontradas ou não como certa vez ensinou o saudoso Gildo Marçal Brandão, se a proposta e a ação forem radicais não desperta entusiasmo nos seus setores mais reformistas e se for moderada terá oposição dos setores radicais. A consequência natural é a imobilidade, o páramo.

Podem, consequentemente, encontrar um denominador comum ocasionalmente, mas nem sempre, e dificilmente em questões de longo prazo. A esquerda democrática considera a democracia liberal como um valor permanente e quer reformar e regular como ficou claro no compromisso pelo trabalho e sindicatos firmados por Lula e Joe Biden; mas isso não elimina um momento intransponível de atrito com vários componentes radicais que consideram esse evento como tático e seguem aspirando um regime político e econômico diferente que já não se sabe muito bem em que consiste. Como resultado, a coesão da coligação governamental a longo prazo será sempre fraca, contraditória e insuficiente.


Cena do filme Il Gattopardo (Em lembrança de seus 60 anos) 

É natural que os setores radicais apoiem com sincera convicção os regimes cubano, nicaraguense e venezuelano. Que sentem uma certa simpatia pela Coreia do Norte e, claro, com alguns pontos de interrogação, pelos seus aspectos capitalistas, pelas experiências chinesa e vietnamita. Que eles possam ser tocados por tudo o que o suposto anti-imperialismo passa e também que possam subitamente se envolver com a Rússia oligárquica de Putin, com quem partilham um olhar nostálgico sobre o passado soviético, reconstruindo assim na sua imaginação um mundo simples com amigos e inimigos claros ou não a lá Carl Schmitt.

Afinal de contas, são a sua identidade política, que pouco tem a ver com a cultura democrática e as situações geopolíticas atuais, mas que permanecem a existir nos seus corações e ficam a girar nas suas cabeças. É muito difícil dirigir eficazmente um governo quando nele coexiste um pensamento simples, doutrinário e identitário com outro que, embora tenha hesitações, é mais complexo.

Hoje, as forças de extrema direita seguiram tentando impor as suas visões unilaterais que negam o bom senso alcançado pela sociedade brasileira. Falta-lhes qualquer espessura democrática e aparece o seu duro fundamentalismo político, arrastando a direita institucional para o passado. Se não houver vontade de encontrar soluções aceitáveis ​​para o Grande Número brasileiro, o país corre o risco de uma nova rejeição à política.

É evidente que o Brasil precisa reduzir o peso das posições antipolíticas para reforçar a sua coexistência democrática. Não basta que os novos líderes políticos estejam satisfeitos com o fato de as coisas não piorarem e de as divisões existentes não se aprofundarem. É muito razoável que a Presidência encontre uma zona de conforto ao sentir que tem um apoio, mesmo que as coisas não estejam bem econômica e socialmente.

O discurso ambíguo permite-lhe preservar a coesão da sua coligação governamental, mesmo que não avance para os acordos ​​que possam desbloquear a situação atual. Mas manter a ambivalência também significa resignar-se, acomodando-se na letargia. A mudança é difícil, terá custos emocionais e políticos, exige muita coragem e um grande sentido de Estado.

Entendemos que talvez o que se afirma não passe de um bom desejo, mas se não acontecer, poderemos estar pavimentando um mal caminho para o gattopardismos, que não aspira a modernidade em sua plenitude e abre a possibilidade para a desconfiança de novos avanços democráticos e republicanos.

 

1 de outubro de 2023



[1] Presidente da CEDAE Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.