Um século do escritor que redigiu mundos
Para Benjamin, o anjo
da história
Ricardo José de
Azevedo Marinho[1]
Nasci na América… Uma vida em 101 conversas (1951-1985), de Italo Calvino (São Paulo: Companhia de Letras, 2023)
É
conhecida a anedota entre Jorge Luis Borges e Italo Calvino – que este ano
completaria 100 anos – durante o Curso de Literatura Fantástica organizado por
Jacobo Siruela e realizado no Hospital dos Veneráveis de Sevilha em 1984.
Borges estava no hotel quando chegaram Italo Calvino e sua esposa, a argentina
Esther Judith Singer (Chichita). Os dois compatriotas começaram a conversar e
depois de um tempo Chichita disse a ele: “Borges, Italo também veio...”, ao que
ele respondeu: “Reconheci-o pelo silêncio”. Pois bem, essa pessoa muito quieta
e invisível – Um homem invisível é o
título do documentário dirigido por Nereo Rapetti em 1974 sobre a vida de
Calvino em Paris – se abriu, tanto pessoal quanto literariamente, em inúmeras
entrevistas realizadas ao longo dos anos. Mais de trinta anos e publicadas em
diferentes meios de comunicação. A editora Companhia de Letras, que desde a sua criação fez de
Italo Calvino uma das suas marcas, reuniu estas entrevistas esclarecedoras em Nasci na América… Uma vida em 101 conversas
(1951-1985).
É
difícil afirmar a que gênero pertencem as peças de Nasci na América, seja jornalístico, biográfico, de crítica
literária ou tantas outras possíveis. De qualquer forma, os livros de
entrevistas geralmente mostram melhor as ideias e a personalidade do
entrevistado – com as inevitáveis reiterações – do que os de artigos e
ensaios de crítica acadêmica e não só. Têm ainda a vantagem de nos permitirem
apreciar com clareza o desenvolvimento pessoal e da escrita do entrevistado ao
longo dos anos. Naturalmente, de fundamental importância nestas conversas é o papel
da entrevistadora e do entrevistador, as suas perspicácias na seleção das
perguntas e nas suas capacidades de extrair
informações e opiniões do protagonista, nesta experiência Italo Calvino.
De Nasci na América… Uma vida em 101 conversas
(1951-1985) - (Companhia
de Letras, 2023), acompanha a edição original italiana que contém essa
centena de textos organizados cronologicamente e compilados por Luca Baranelli,
nitidamente voltados para a literatura e aspectos biográficos de Calvino, e
distribuídos conforme a data de sua publicação. Um índice onomástico de nomes
ao final do volume ajuda a localizar o grande número de personagens
(principalmente escritores) que aparecem nessas conversas. Claro está que por
baixo da sua simplicidade e modéstia ("Tenho sempre dificuldade em
exprimir-me, quando falo e quando escrevo"), Calvino era um homem de
grande complexidade - como na época em que viveu - e muito rigoroso nas suas
criações. Isso fica evidente nas respostas às perguntas feitas: Calvino tem
ideias claras e nunca divaga, suas respostas são concisas, esclarecedoras e
sempre expressas com precisão. O último volume desse naipe entre nós foi o
livro Diálogos gramscianos sobre o Brasil
atual, do cientista social Luiz Werneck Vianna. A obra de 2018 é uma
coletânea de entrevistas realizadas desde o início dos governos do PT-PL,
PT-Republicanos e PT-MDB, a partir de 2003. O Gramsci que embala esse volume
também é citado por Calvino.
Embora não seja habitual este tipo de
compilação, interessa observar como as reiterações ocorrem com determinados
temas e questões. Daí ser aconselhável ler essas entrevistas aos poucos, de
forma tranquila e serena, como livro diverso que é. Quanto ao conteúdo,
logicamente há mais falas de época e circunstâncias de Calvino do que aqueles feitos
em sua juventude ou após a publicação de suas primeiras obras. De toda forma, é
possível acompanhar com algum rigor a biografia de Calvino, desde a infância e
juventude passada em San Remo, a sua militância na Resistência, a sua
trajetória no Partido Comunista ("Eu era livre antes e sou livre
agora"), o longo período de vida em Paris, o regresso parcial a Itália
(Roma), os sucessos das suas últimas obras (curiosamente, as mais
experimentais) e os anos de envelhecimento.
Todo o volume está repleto de informações,
mais ou menos desconhecidas do público em geral. Por exemplo, numa entrevista
fala-nos do seu grande amor pelo cinema - já foi membro do júri do Festival de
Veneza - e que abomina a dublagem em filmes ("A dublagem parece-me uma
barbárie sem sentido e não entendo como ninguém jamais se revoltou."
Quanto às repetidas questões sobre a bipolaridade da sua obra literária
(realista e fabulosa), Calvino justifica-se dizendo que “vivemos numa
civilização literária baseada na multiplicidade de línguas”. Calvino é um
leitor de múltiplos interesses, incluindo astronomia como também fora Adam
Smith ("Sou um leitor onívoro"), mas admite que seus escritores
favoritos foram Ernest Hemingway e Joseph Conrad
em seus primeiros dias, e mais tarde Poe, Queneau, Nabokov, Kawabata, Valéry,
entre outros. Ele é franco quando fala de si mesmo (“Escrevo porque não tenho
capacidade de falar”) e respeitoso quando fala dos outros. Sobre o seu
conhecido interesse pelos contos tradicionais e de fadas, declara: “Penso que
os contos de fadas correspondem a necessidades profundas de aprendizagem
emocional e imaginativa: não é em vão que se diz que estão relacionados com
ritos de iniciação”. Do ponto de vista da crítica literária, os textos mais
interessantes são aqueles que dizem respeito à sua concepção de arte narrativa,
o seu desenvolvimento como escritor e à sua forma de trabalhar. Também as
entrevistas dedicadas monograficamente a alguns dos seus livros são de grande
interesse para os leitores, especialmente as suas últimas obras: Os nossos antepassados, As cosmicômicas, Marcovaldo, As
cidades invisíveis (o livro com o qual se sentiu mais satisfeito), Se um viajante
numa noite de inverno e O
castelo dos destinos cruzados. Claro que também reflete sobre Borges e o
diálogo que manteve com ele: «É um autor que me interessa muito e que comecei a
ler desde o momento em que se tornou conhecido na Europa. Imediatamente senti
uma afinidade com seu gosto. Por exemplo, a sua inclinação para a construção
geométrica na narração e no raciocínio, a transparência da sua expressão […] Pode-se
dizer que Borges pertence a uma constelação de escritores deste século com uma
espécie de inteligência fria.” Essas e muitas outras curiosidades são
encontradas em Nasci na América,
descrito pelo recém-falecido escritor italiano Pietro Citati, como “um livro
lindo, inteligente e muito agradável, que fascinará muitos leitores”.
Não há melhor forma de celebrar o
centenário de nascimento do Mestre do que mergulhando na sua personalidade e
nas suas preocupações. Por esta razão, Nasci
na América é um volume essencial que nenhuma leitora e leitor deve perder.
17
de outubro de 2023
[1] Presidente da CEDAE Saúde e
professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
Ótima indicação, professor!!
ResponderExcluirExcelente 👏
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