domingo, 18 de setembro de 2022

ESPECIAL - DEZ ANOS SEM ERIC HOBSBAWM

Hobsbawm, História & O Poderoso Chefão

Por Pablo Spinelli

À memória de Jabor, de Milton Gonçalves e aos 30 anos do Impeachment de Collor

 

O historiador Eric Hobsbawm foi um fenômeno na venda de livros para um público leitor leigo – especialmente a partir dos anos 1990 com o bem-sucedido “A Era dos Extremos – o breve século XX: 1914-1991”[1] – o que não significa que tenha sido realmente lido e analisado, e mesmo hoje, ao se analisar a bibliografia nas disciplinas de cursos de ensino superior no país é perceptível seu lento desaparecimento quando comparado há duas décadas.

Por mais que sua identificação com o marxismo – foi membro do Partido Comunista britânico, um partido muito discreto dentro no contexto dos partidos comunistas europeus, mas que muito contribuiu para a resistência ao fascismo e na socialização de acadêmicos com o movimento operário inglês.[2] Sua enorme erudição enciclopédica e sua formação política fez estudar movimentos camponeses rurais das Américas – o termo cunhado por ele de “banditismo social” para o fenômeno, dentre outros, do cangaço brasileiro é encontrado em qualquer livro didático de História no país -; com estudos no desenvolvimento da Revolução Industrial inglesa ao jazz, Hobsbawm entrou para a historiografia e no mundo leigo pela tetralogia das “Eras” para explicar a formação; consolidação; expansão; crise e reconfiguração do mundo burguês. [3]

Atualmente, há no meio acadêmico novos olhares da historiografia como “história global” e “história pública” e pelos motivos expostos acima, nos surpreende a raridade ou o sumiço do historiador inglês na bibliografia estudada nesses cursos, pois o historiador teve papel de destaque em ambos os temas. É possível que seja reflexo da persistência do pós-modernismo ao ver a sua obra como uma “grande narrativa” (mesmo que tenha escrito um livro falando das fraturas nos tempos modernos) ou por ser um homem branco europeu (nascido no Cairo e de origem judaica) heteronormativo. Cumpre destacar uma faceta desse historiador que não ganha tanto relevo em suas obras e que nos permite estudos instigantes sobre esse objeto espalhado em várias obras do autor: o cinema.

Eric Hobsbawm recebendo condecoração da Rainha da Inglaterra, em 1998 I (Reprodução: Financial Times)

Hobsbawm, um crítico irônico dos movimentos e manifestos vanguardistas – que muito nos lembram da abordagem do nosso poeta Ferreira Gullar – identificou somente duas manifestações vanguardistas que vieram da América e prosperaram: o jazz e o cinema (criado na Europa e metamorfoseado em produto de massa nos EUA). Foi e é o cinema uma ponte ininterrupta entre os artistas europeus e a indústria americana. O mais popular e genial personagem do cinema foi o inglês Charles Chaplin, assim como o estúdio Universal (de um alemão) bebeu na fonte da literatura do final do XIX para consolidar seu perfil em filmes de terror como Drácula; Lobisomen e Frankestein. O historiador destacava a importância do cinema soviético menos pelo perfil propagandístico e mais pela revolução em sua técnica, como o feito pelo icônico Sergei Einsenstein de “Outubro” (1927) e “Encouraçado Potemkin” (1925) – cuja montagem serviu de base para a revolução no cinema feita pelo recém-falecido Jean Luc-Goddard nos anos 1960.

O cinema, para ele, além do fascínio da imagem em ação tinha um papel democrático porque incorporava uma massa de iletrados ao lazer e que alcançou uma escala internacional. No mundo ocidental a produção de Hollywood era industrial – uma fonte importante para geração de empregos como na Grande Depressão de 1929 – e incorporava de artistas a técnicos europeus que migraram no período entreguerras e, em especial, na ascensão dos fascismos na Europa. De Greta Garbo a Otto Preminger; de Fritz Lang a Marlene Dietrich; de Billy Wilder a Alfred Hitchcock, o cinema americano era inclusivo, sem muros e, com exceção de negros, latinos e asiáticos (cujo cinema japonês era igual ao americano quanto à produção), permitia o esplendor da tela (muitos dos grupos excluídos das telas eram incorporados nos bastidores e com presença expressiva em sindicatos) em milhares de cinema mundo a fora.

Por outro lado, o autor, contemporâneo do fascismo, nazismo e stalinismo, fez eco aqueles que viram no cinema uma máquina poderosa de propaganda de regimes políticos. O “American way of life” vendido nas telas (uso de cigarros e automóveis, por exemplo) foi uma ferramenta poderosa nas mãos de tiranos. Porém, diferente de analistas pessimistas como Adorno, Eric Hobsbawm via no cinema uma perspectiva poderosa de influir na denúncia, na crítica social, no retrato de um tempo, na adaptação literária que permitiria a popularização de autores como John Steinbeck (As vinhas da ira) e o desconhecido B. Traven (O Tesouro de Sierra Madre).

Por fim, Hobsbawm em um artigo sobre os usos e abusos da memória sobre um bandido siciliano que gerou livros e adaptações cinematográficas, nos deixou um legado valioso enquanto crítico de cinema e historiador, trajetórias sincrônicas na análise de uma obra. No artigo intitulado “Bandido Giuliano[4], o autor, que estudou “rebeldes primitivos”, começa a falar do fenômeno popular que foi e é o filme O Poderoso Chefão, que nesse ano completa meio século. Sua enorme perenidade no imaginário coletivo, a presença na cultura pop nas mais diversas faixas etárias deve-se, segundo Hobsbawm, à perspectiva de organização, planejamento, valores familiares que se incorporam a um estilo empresarial na cadeia de comando (o filme foi lançado em plena Guerra do Vietnã).

A máfia não era a de Bonnie, Clyde, Dillinger, mas a de Vito Corleone e uma hierarquia definida. A família não era diversa da gestão de empresas que passam por gerações – em uma época que não se mascarava a sucessão com termos como meritocracia - e nem era refratária ao Estado, ao contrário, bancava candidaturas de senadores e deputados; subornava juízes e delegados. Por sua vez, o historiador-crítico percebe que a aura dos Corleone é fruto da utopia romântica de um passado no qual as autoridades eram respeitadas; os chefes eram pais substitutos de imigrantes pobres como os italianos do Sul italiano que “iam fazer a América”. Em uma frase que pode gerar o “cancelamento” de Hobsbawm e do filme de Coppola, “os homens eram homens, e as mulheres eram felizes com isso”[5]. Hobsbawm, de forma perspicaz fez um paralelo da vitória de uma família que migrou de uma ilha na Europa nos EUA com a trajetória da mais superestimada e pop família americana, os irlandeses Kennedy; daí seu sucesso no inconsciente coletivo americano além dos valores destacados acima. Ainda nesse artigo, há uma excelente análise comparativa sobre o enfoque dado pelo escritor Mario Puzo (de O Poderoso Chefão) e do filme Francesco Rosi à trajetória conturbada do bandido Salvatore Giuliano – um miliciano que servia aos interesses dos potentados locais da Sicília que depois foi traído nesse e um “Robin Hood” belo, varão e defensor da comunidade aldeã para aquele.

Por fim, Eric Hobsbawm nos deixa um legado nesses tempos fraturados. Ele foi um intelectual no espaço público, sabia escrever para o público leigo, lido por pessoas de ideologia diversa da dele, mas que sabia escrever como se dialogasse com o leitor sentado em um sofá. Seu espírito renascentista – fruto de sua formação política -  lhe deu um inigualável posto no terreno da História, algo esmagado pelos particularismos e sectarismos seja da política ou d academia ou de ambos. A tarefa que se impõe é tirar os livros desse autor da estante e começar a realmente lê-lo.


[1] A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[2] Tempos interessantes: uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Especialmente os capítulos “Contra o fascismo” e “Ser comunista”

[3] Estamos nos referindo aos livros Era das Revoluções : 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2009; Era do Capital: 1848-1875, 1996. São Paulo: Paz e Terra; Era dos Impérios: 1875-191, São Paulo: Paz e Terra, 1988 e o já citado Era dos Extremos. 

[4] In. HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

[5] Idem. p.278.

 

 

2 comentários:

  1. A escola francesa tem sido cada vez mais hegemônica nesse sentido. Exceção ao Eric talvez seja o Thompson, que confesso ter mais proximidade.

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