quinta-feira, 18 de julho de 2019

SÉRIE ESTUDOS: RESENHA DE DESMILITARIZAR


Democratizar

 

À memória de Andrea Camilleri, um comunista que escreveu romances policiais sem reproduzir preconceitos.

Por Vagner Gome de Souza

 

Nas eleições de 1998, no estado do Rio de Janeiro, a unidade do campo progressista se fez vitoriosa numa aliança protagonizada pelo PDT e o PT. A duras penas para alguns segmentos mais à esquerda, a eleição da chapa Garotinho / Benedita da Silva impactava na conjuntura nacional diante da segunda vitória tucana as eleições presidenciais já no primeiro turno.

Derrotava-se um Governo estadual que dialogava com uma direita autoritária no campo da segurança pública. Eram tempos do Deputado Estadual Sivuca (eleito pela última vez em 1994) que não se intimidava em repetir: “Bandido bom é bandido morto.” e a sombra da ditadura militar rondava as eleições com acenos para o General Newton Cruz (que nas eleições de 1994 tinha ficado em terceiro lugar com 14% dos votos no Estado). Essas forças reacionárias não tiveram um espaço protagonista pela intervenção da política de frente que se fez com muitas concessões de todos os setores envolvidos na campanha vitoriosa.

Contudo, já observamos que o tema da segurança pública já estava sob hegemonia de uma leitura política alheia a ampliação dos Direitos Humanos. As contradições políticas da gestão Garotinho (1999 – 2002) são fundamentais para compreender o quanto o campo democrático ainda “patinava” no enfrentamento do tema. Agora, temos um cenário que justifica a relevância da leitura do livro Desmilitarizar de Luiz Eduardo Soares (São Paulo, Editora BOITEMPO, 2019), pois o autor foi testemunha dessas contradições na sua atuação. Foi Subsecretário de Segurança e Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro (entre janeiro de 1999 e março de 2000), durante o governo de Anthony Garotinho, quando chegou a denunciar a "banda podre" da polícia do Rio (sobre esse momento sugerimos a leitura do mesmo autor de Meu casaco de general: 500 dias no front da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Cia. das Letras, 2000).

O viés do populismo da gestão Garotinho não incorporou a necessidade da democratização no aparelho de segurança, o que lhe empurrou para as forças conservadoras com bases no fundamentalismo religioso. Eleito graças ao programa de centro-esquerda, aos poucos, atribuía sua vitória a sua conversão a Igreja Evangélica após um acidente de automóvel ocorrido em 1994. Os grupos do neopentecostalismo foram ganhando espaço em torno do Deputado Federal Francisco Silva (evangélico e proprietário da Rádio Melodia). O projeto político presidencial de 2002 definia-se já em 2000. As forças políticas democráticas foram gradualmente sendo afastadas do Governo como ocorreu na demissão de Luiz Eduardo Soares feita numa entrevista pela TV.

Entretanto, a denúncia da “banda podre” da polícia antecipava em muito que observamos na descaracterização da segurança pública no Brasil ao ponto de chegarmos a elementos que sugerem a aproximação de muitas forças políticas a grupos “paramilitares” conhecidos como milícias. Os livros Elite da Tropa e Elite da Tropa 2 (escritos em coautoria) permitem a evolução do pensamento do autor de Desmitarizar até a colaboração para a apresentação da PEC 51/2013, pelo Senador Lindbergh Farias, que defende a desmilitarização das polícias no país. Assim, compreendemos que a contribuição do livro transcende as fronteiras acadêmicas e contribui para que militantes dos movimentos sociais vinculados ao tema dos Direitos Humanos tenham melhores argumentos para o debate político hoje em curso.

Vivemos tempos sombrios que impõe que livros como Desmilitarizar sejam resenhados com todo esse roteiro político para que o campo democrata entenda que poderíamos estar numa outra situação se as unidades programáticas anteriores não se deixassem contaminar pelos “atalhos” do populismo. De Garotinho (1998) até a eleição do atual Governador do Rio de Janeiro, a esquerda contribuiu para o corporativismo partidário e se deixou levar pelo “culto da identidade” dos movimentos sociais sem fazer a necessária articulação da política de frente. Assim, segurança pública e direitos humanos passaram a ser abordado como polos em conflito, o que empurrou o centro político para esse cenário obscuro em que vivemos.

 O livro é uma coletânea de artigos que não foram acessadas pelo grande público e foram revistas pelo autor com o intuito de fazer esse constante diálogo sobre a necessidade de compreender que a ideia de segurança está associada ao acesso ao bem estar e seus problemas seriam agravados pela consolidação das desigualdades sociais. A denúncia do “racismo estrutural” percorre as páginas de Desmilitarizar com o uso de dados estatísticos que impõe mais racionalidade ao se defender “atalhos” autoritários para reduzir os índices de violência. Os artigos estão agrupados em quatro partes além da Introdução e do Posfácio (Polícia – Drogas – Raízes da Violência – Direitos Humanos, cultura e poder).

O autor defende persuadir até aqueles que desejam resultados no combate ao crime para uma reflexão. Essa é a maior ousadia do livro já presente na Introdução: “A quem acredita na ‘guerra contra o crime’, dirijo a seguinte ponderação. Meu intuito é oferecer argumentos persuasivos mesmo àqueles que não se importam com valores e apenas cobram resultados. (...)” p.14. Ou seja, a leitura do livro é um convite do diálogo com aqueles que se deixaram iludir que é justificável o abate de quem porta um fuzil. O debate deve ser feito para “virar” opiniões que se deixam influenciar pelas redes sociais do ódio.

 Portanto, na primeira parte do livro (Polícia) seria interessante uma leitura atente no artigo “A política nacional de segurança pública: histórico, dilemas e perspectivas”, originalmente de 2007. Nesse artigo, se reconhece o quanto o plano nacional de segurança pública, uma gestação tímida do governo FHC, teve sua ampliação nas gestões posteriores numa caminhada com inúmeros “ziguezagues”. A implementação do bem estar no Brasil se faz nessa linha gradual que caracteriza nossa revolução passiva. As iniciativas mais progressistas são “abortadas”, mas isso não impede que haja avanços. Por fim, há um posfácio que aborda a recente onda de “contra revolução passiva” que atravessamos desde o impeachment do Governo Dilma.

Em seguida, na segunda parte do livro (Drogas), o artigo “A cocaína no mundo, segundo Roberto Saviano” é um convite para observarmos a questão de repressão do consumo das drogas sob um olhar de análise da conjuntura internacional. Pensemos na crise do capitalismo financeiro em 2008 e a expansão do lucro com o tráfico internacional de drogas principalmente para a Europa dos altos índices de desemprego na juventude. Juventude, desemprego e consumo de drogas a serviço do grande capital que “lava seu dinheiro” em outros setores da economia. A “Guerra contra as drogas” só gerou mais desigualdade social, pois os recursos aplicados na repressão não deram resultados e poderiam ser mais bem investido em saúde e educação.

Continuemos a falar sobre a juventude, na terceira parte (Raízes da Violência), o artigo “Juventude e violência no Brasil contemporâneo” nos provoca para uma reflexão sobre as bases do voto conservador obtidos na faixa eleitoral de 18 – 30 anos. A brutalidade policial contra os jovens negros nas periferias das grandes cidades não impediu que segmentos significativos dessa juventude referendasse a negação da democracia e dos direitos humanos. O ódio da juventude no Brasil contemporâneo é um fragelo da dialética sem síntese que surgiu nas manifestações de 2013. Inúmeras “bandeiras” sem uma política aglutinadora abriu esse vazio na política para a juventude. Diante da invisibilidade, os jovens da periferia recorreram ao “linchamento” da democracia à medida que as lideranças juvenis do campo democrático abordam o tema da segurança pública ainda com preconceito.

 Provavelmente, esse estigma seria rompido na política carioca pela Vereadora Marielle Franco que foi brutalmente assassinada em 2018. Assim, o artigo “A segunda morte de Marielle ou Ainda é possível falar em segurança pública e direitos humanos no Brasil?”, na quarta parte (Direitos humanos, cultura e poder), tem relevância, pois foi escrito no calor das eleições de 2018, a primeira versão é de 5 de outubro de 2018. Naquela altura, o autor não teria condições de antecipar a gravidade do resultado do segundo turno eleitoral, mas ao longo da leitura perceberemos um sentimento de balanço político das eleições sob o olhar dos defensores da Democracia. Por fim, o posfácio recebeu o título de “Lições de Marielle” no qual o autor menciona um pouco sobre as ameaças que sofreu nos idos de 2000. O desmanche da centro-esquerda abriu caminho para esse mundo de rancor e ódio. Entretanto, as páginas do livro nos convidam para seguirmos na perseverança por alianças para democratizar todos os serviços públicos, principalmente a Polícia.

 
Resenha: Soares, Luiz Eduardo – Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019.

Um comentário:

  1. Camilleri, lembrado em justa homenagem, e Saviano, de CeroCeroCero, procuraram entender os criminali sem os tratar como inimigos a serem exterminados.

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