Ainda
estamos aqui
Ricardo José de
Azevedo Marinho[1]
Otto von Bismarck, o chanceler de ferro da Prússia que unificou
os estados alemães no século XIX, tinha um carácter forte que se refletia na
expressão dura do seu rosto, mas ao mesmo tempo possuía grande pragmatismo,
algum cinismo e sentido de humor.
Christopher M. Clark confirma o personagem como o criador de
inúmeras imagens linguísticas e uma delas é a que atribui aos EUA o seguinte:
“A graça de Deus tem um lugar especial em seu coração para proteger os bêbados,
os loucos e os Estados Unidos da América”.
A despeito de tudo, pode-se dizer que alguma razão há, porque à
medida que se aproximava a próxima eleição presidencial em novembro, que os
anos alcançaram o mandatário Joe Biden, que, enfraquecido pelo peso da idade,
tomado por lapsos de toda sorte, parecia incapaz de encarnar a esperança no
futuro, apesar do exercício quase findo de uma boa presidência, com mais
virtudes do que erros, com decência e dignidade. Trump, até então seu
adversário que nada tem de um lírio, que comete erros não forçados com uma alta
frequência (na verdade não se sabe se são produto da idade ou da sua
ignorância), parecia mais forte e vigoroso, brincava de gato e rato com Biden,
sem piedade, com insultos e sarcasmos, usando apelidos infantis, como destacou
Obama, e desfilava seguro da sua vitória, acentuando com desdém a sua mensagem
reacionária, ameaçadora e exclusiva.
Mas um acontecimento mudou tudo: a desistência de Biden à
nomeação democrata e o empoderamento quase instantâneo de uma mulher que
demonstrou uma capacidade notável, Kamala Harris. Em poucos dias transformou-se
numa esperança no futuro, com inteligência e graça e com uma firmeza civilizada
que abriu uma ilusão não só para os EUA, mas para todos os democratas do mundo
que enfrentam com angústia o futuro da um mundo turbulento e inseguro,
perigoso, com duas guerras em curso, nas quais se fortalecem posições
autoritárias e violentas.
O perigo de que um personagem como Trump, que de fato mostrou o
seu desprezo pela alternância democrática, volte a liderar a principal potência
mundial não está, no entanto, evitado. Vivemos tempos voláteis, de mudanças
aceleradas, em que muitos setores sociais se percebem, com razão, como
excluídos e florescem os demagogos e as suas promessas simplistas como acontece
também nas nossas eleições municipais. As corridas eleitorais são estreitas e
difíceis.
Alexis de Tocqueville, o grande analista francês do alvorecer
dos EUA, destacou que “é mais fácil para o mundo aceitar uma simples mentira do
que uma verdade complexa”.
Mas isto não é inevitável como parecia há apenas algumas
semanas. Os números mudaram, as frases bélicas foram atenuadas e renasceu o
entusiasmo de quem não insulta, raciocina e não considera o adversário um
inimigo.
O sorriso largo de Kamala e as suas propostas destinadas a combinar
mais liberdade, mais pluralismo e mais igualdade iluminaram uma perspectiva
sombria para a democracia. A diferença entre as vozes racionais e humanistas
que os rodeiam e a face taciturna de um messianismo brutal apresentado por
Trump e pelos seus seguidores é enorme. Não está totalmente claro se ele mudará
a sua estratégia eleitoral, mas não lhe será fácil encarnar uma personagem com
fins intelectuais mais refinados.
Os resultados dessas eleições não serão estranhos ao nosso
futuro.
Vivemos tempos difíceis, com um grande abismo entre os avanços
científicos e tecnológicos no mundo instrumental e a capacidade de convivência
pacífica que gere uma humanidade melhor e um planeta sustentável e civilizado
no mundo normativo.
Nem Zygmunt Bauman se enganou quando falou de tempos líquidos,
nem Ulrich Beck quando falou da sociedade de risco, só que na atual desordem
geopolítica a liquidez, a volatilidade, a desigualdade e o risco tornam-se cada
vez mais difíceis de gerir. A atual fragmentação económica torna o mundo mais
inóspito, as diferenças mais irredutíveis, a violência maior e torna-se cada
vez mais difícil conviver.
A política e especialmente o sistema político democrático, que
recordemos mais uma vez, não é majoritário no mundo, exige cada vez mais
esforço para que os seus valores sobrevivam e se adaptem aos novos desafios que
mudarão radicalmente o nosso modo de vida.
Se isto não for alcançado, a tentação autoritária crescerá, os
sujeitos políticos tenderão a desaparecer e as identidades fechadas, os fanatismos
e finalmente as guerras florescerão. A coexistência baseada numa démarche civilizacional com valores partilhados será
restringida.
Já temos Scrooge’s de todas as cores no poder, não precisamos de
mais Putins, mais Netanyahus, mais Khameneies, mais Orbán, mais Erdogans, mais
Maduros, mais Bukeles ou mais Ortegas, só para citar alguns.
Neste contexto, é muito importante que no Brasil não percamos
uma visão realista e ponderada do que avançamos e alcançamos como país, bem
como dos problemas e desafios que enfrentamos, evitando percepções simplistas
ou fanáticas e ideias cruas.
Para enfrentar os problemas e desafios de hoje e de amanhã,
todos precisamos uns dos outros. Há mais de dez anos cometemos demasiados erros
e enganos, o que nos levou à estagnação. Só a Frente Democrática nos impediu de
nos afundarmos numa segunda mediocridade em 2022.
Precisamos seguir o caminho de agora significativamente e
urgentemente combater eficazmente o crime organizado e globalizado, fortalecer
a nossa democracia através de um adversário construtivo, que combina com o
debate e a crítica bem como uma procura sincera de acordos. Só assim o Brasil
seguirá o caminho que o levou ao G8, G20 e a COP30.
Não são tempos de mesquinhez e de brigas, esperamos que todos os
partidos de orientação democrática, sejam de esquerda, de centro ou de direita,
para além da competição eleitoral, compreendam que um desacordo infundado
permanente e o mau humor degradam a vida democrática e só favorecem, como bem
sabemos, a cultura autocrática de vários matizes.
9
de setembro de 2024
[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e
professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do
Instituto Devecchi.
Joe Biden não desistiu: deram um golpe no velho. Obama foi o líder.
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