segunda-feira, 8 de julho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 047 - O Sardo de Sassari e o Comportamento Político dos Democratas

Paixão pelo Possível

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

A compostura política não deve ser confundida com a social, que, embora aparente ser menos importante para o futuro das sociedades, carrega um papel sobejo. A compostura social refere-se às regras de boas maneiras, à ideia de bom gosto e às normas de comportamento social que começam a ser estabelecidas no século XV e que são bem descritas pelo mestre da história dos costumes Norbert Elías (1897-1990) e às quais o grande filósofo Erasmo de Rotterdam (1466-1536), que deixando fluir por um momento seu grande gênio, dedicou em 1530 um pequeno livro que fez muito sucesso a época, De civilitate morum puerilium (Da civilidade pueril), um livro curioso e divertido aos nosso olhos, em que desenvolve o conceito de civilidade também caro ao saudoso Emmanuel Le Roy Ladurie (1920-2023), um conjunto de bons costumes válido para se comportar na vida e que opera para toda a sociedade.

Nesse livro, ele aponta, entre outras coisas, preocupações específicas sobre o muco nasal e a forma como ele deve ser removido. Afirma que não é correto se jogar ele ao leu e muito menos colocar as mãos na comida a torto e a direita.

A compostura política é algo diferente, é uma questão que apela à substância e à forma, ao método como parte inseparável do conteúdo da política democrática. Consiste numa forma de comportamento, num estilo, num tom que reforça na ação política a procura de um caminho reflexivo para liderar a pólis que procura os caminhos dos compromissos e acordos históricos, que aproximam visões avessas a polarizar posições conflituosas, que tentam alcançar o apoio do cidadão, pois deseja proclamar as virtudes dessas propostas.

Procura soluções possíveis que sejam aceitáveis ​​para grandes maiorias e procura olhar o adversário distante do conceito-relação amigo-inimigo, em que o inimigo deve ser destruído.

A compostura política implica decência e decoro nos métodos a utilizar, moderação na linguagem, e descarta a estridência e o insulto, ao desejar fortalecer não só as posições que defende, mas ao mesmo tempo a vida democrática como um todo, protegê-la do declínio, das brigas que reinam nos sistemas políticos decadentes, que acabam por incentivar o surgimento como uma pandemia de ideias rudes e autoritárias que se propõem a estabelecer a ordem a todo custo, mesmo quando há direitos e liberdades pisoteados.


Este tom, este estilo, não significa renunciar as convicções e a objetivos e metas ousados ​​e necessários, não devem corresponder a uma posição política fraca e vazia, mas procura os seus objetivos de forma serena, gradual, comedida, sem pretender possuir verdades absolutas, mas com ouvidos abertos aos outros, a quem pensa diferente e age de forma ponderada e ajustada às circunstâncias, ao tempo e ao lugar.

Isso não significa que aqueles que a praticam como o recém-empossado primeiro-ministro do Reino Unido Keir Starmer do Partido Trabalhista não tenham temperamento e sangue nas veias, mas sim que tenham uma capacidade de autocontrole que é sempre útil para qualquer pessoa, mas é essencial para um líder que aspira a liderança dirigir os destinos de um país, competindo em um sistema pluralista e diversificado.

Há poucos dias completaram-se quarenta anos do falecimento, em 11 de junho, de Enrico Berlinguer (1922-1984), secretário-geral do Partido Comunista Italiano, ocorrida no meio de uma manifestação, dramaticamente devido a um acidente vascular cerebral durante um discurso. Berlinguer liderou o maior Partido Comunista do Ocidente naqueles anos e realizou uma transformação gradual da sua tradição histórica e teórica, conduzindo-o a um horizonte democrático e reformador. Ele nunca liderou um governo, mas para o seu funeral a Itália rendeu todas as honrarias de chefe de Estado, com apoiantes e adversários homenagearam-no, mesmo os mais ferozes, houve um sentimento de perda não só política, mas cultural, ele deixou uma marca profunda por ter ajudado a Itália a passar por momentos infelizes durante o recomeço da democracia.

Anos depois de sua partida, o partido que contribuiu poderosamente para mudar deu origem, juntamente com outras tradições políticas progressistas, ao atual Partido Democrático, que nas últimas eleições europeias alcançou 24,8% dos votos, sendo o segundo partido em Itália, uma enorme garantia democrática em tempos de ascensão da extrema direita e de tendências iliberais.

Sandro Pertini (Presidente da Itália e filiado ao Partido Socialista) no velório de Berlinguer

Algumas de suas ideias não duraram, mas sua figura permanece sendo muito respeitada mesmo entre as novas gerações. Nestes quarenta anos perdurou um respeito, um apreço e até uma reverência que percorre todo o arco político, as mais diferentes posições e de muitos cidadãos afastados da política.

Berlinguer faz falta porque ele incorporava com impressionante precisão o que tememos que a nossa comunidade planetária possa perder: a compostura. A capacidade de manter um estilo público e uma respeitabilidade em seu cotidiano que não pode ser apagada pelos acontecimentos, como se entre os deveres de um líder, estivesse o de demonstrar, não como algo menor, mesmo nas mais duras e dramáticas tempestades políticas um estilo.

Um estilo de decência, austeridade e altivez em todas as suas batalhas desde a libertação da Itália, quando era muito jovem, até à sua morte demasiada precoce.

Afinal, foi essa a marca que ele deixou, algo humano, corajoso e que transpirava brandura. Muito poucos políticos sobrevivem a um respeito profundo, duradouro e horizontal pela sua compostura política. Berlinguer não é o único, claro, e há outros de diversas tendências políticas, mas são poucos.

Estamos próximos ao início de um período eleitoral que pode fortalecer ou enfraquecer a nossa democracia, que apesar da sua resiliência e resistência não nos encontramos no melhor momento, a atmosfera existente e o nível dos debates são mesquinhos e dolorosos.

Não será hora de refletir sobre o tom, o estilo e o método de ação política? Talvez esta reflexão nos ajude a abandonar como fez em uma semana a França, ao pôr de lado as visões extremas, os interesses particulares que por vezes parecem ocupar a maior parte do espaço público e a regressar, pouco a pouco, ao caminho do bem comum.

 

7 de julho de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

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