terça-feira, 4 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 040 - OS SAQUEREMAS NO BRASIL

Paixão pelo Ensino da História: os 80 anos de Ilmar Rohloff de Mattos

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Os erros conceituais subjacentes à discussão política atual são péssimos conselheiros quando se tenta caminhos de racionalidade democrática e republicana. Muitos equívocos proliferam em todos os grupos, mas a confusão entre o que significa ser “liberal” e/ou “conservador”, na filosofia política e na práxis histórica, tornou-se um obstáculo importante ao necessário entendimento entre as diferentes correntes.

Parte do problema vem do fato de que muitas vezes parecem ser usados ​​como epítetos e não como conceitos. O Nobel de Literatura de 2010 o peruano Mario Vargas Llosa escreveu que o seu primeiro encontro com estas categorias o levou a acreditar que ser “liberal” era ser libertino; e “conservador” deveria ser “cúmplice de toda a exploração e injustiças de que os pobres do mundo são vítimas”.

São desses equívocos que fazem de figuras como Trump, Bukele e/ou Bolsonaro serem definidos como “conservadores”, e quando pensamos que pensadores como Burke, Tocqueville, Oakeshott e Aron e os nossos próprios Saquaremas, rolariam em seus túmulos e rejeitariam vigorosamente qualquer ancestralidade, no que diz respeito não apenas aos feitos promovidos por esses personagens, mas, ainda mais, no que diz respeito às suas práticas que vilipendiam a política. Porque se há algo que caracteriza o conservadorismo é a moderação e a prudência, que são a conclusão lógica das suas crenças mais profundas.

Como disse certa vez Michael Oakeshott (1901-1990), o conservadorismo não é tanto uma doutrina, mas uma atitude. “Ser conservador significa estar inclinado a pensar e a se comportar de determinada maneira; é preferir certos tipos de comportamento e certas condições das circunstâncias humanas a outros; Eles se resumem na propensão a usar e aproveitar o que está disponível em vez de querer ou procurar outra coisa; deleitar-se com o presente e não com o passado ou o futuro; É ter gratidão adequada pelo que está disponível e, consequentemente, reconhecimento da herança do passado; mas não há idolatria pelo que aconteceu ou passou.”

Ser conservador não exclui a mudança, mas refuta “sacrificar as gerações presentes pelo bem final da humanidade futura”. São céticos em relação aos direitos abstratos; acreditam que as instituições são geradas ao longo do tempo, pela história e pela experiência, e não pela perfeição teórica, e procura um equilíbrio entre a liberdade e a coesão social que advém de uma sociedade civil que faz a mediação entre o indivíduo e o Estado.

O pensamento conservador nasceu com um não ao terror causado na Revolução Francesa; pela violência que gerou e pelas mudanças e transformações abruptas que promoveu em todas as expressões dos acontecimentos.

Entre nós o professor (e nosso orientador) Ilmar Rohloff de Mattos, o recém octogenário, mostrou exemplarmente de que entre nós brasileiros o conservadorismo surgiu numa versão peculiar, precisamente porque nunca tenhamos experimentado esse pathos, ainda que aqui, qualificam-se como revolução movimentos políticos que somente encontraram a sua razão de ser na firme intenção de evitá-la. E é assim que o eixo divisor entre liberais (Luzias) e conservadores (Saquaremas) brasileiros no século XIX refere-se quase sempre ao papel que uma religião poderia desempenhar numa república cada vez mais secularizada.


Nesse sentido, como mostrou no seu magnum opus O Tempo Saquarema: A formação do estado imperial, nunca existiu uma dicotomia clara entre eles nas suas raízes históricas. Assim, por exemplo, em termos econômicos, pensadores e políticos conservadores, como Visconde do Uruguai e Eusébio de Queiroz, foram os grandes defensores da liberdade econômica; foram também os líderes conservadores que defenderam as liberdades individuais e os direitos liberais clássicos, como a liberdade de associação, a liberdade educacional e o direito de reunião; e foram também os promotores da “questão social”.

O Tempo Saquarema, publicado em 1987 e escrito por um professor da educação básica praticamente desconhecido fora dos círculos restritos da velha e da nova intelectualidade, foi instantaneamente reconhecido como um clássico e se tornou o mais influente livro de história do Império. Essa obra combinou paixão e intelecto, os dons do professor e do analista. Nenhuma de suas obras poderia ter sido escrito por outra pessoa.

Hoje a advertência deixada pelo oitentão no final de O Tempo Saquarema é preciso saber recepcionar: passaram-se muitas décadas, muita coisa nova aconteceu, a situação atual é bastante diferente da do século que viu surgir os Saquaremas mas deixar subverter o conservadorismo em reacionarismo implica que nós não joguemos o bebê fora junto com a água do banho. Do contrário poderíamos perguntar se uma conjunção de “neoliberalismo reacionário” funcionaria como uma base sólida para unir certa direita et caterva?

Se a resposta for afirmativa, talvez seja oportuno recordar outra recomendação do conservador irlandês Edmund Burke (1729-1797): “Quando os homens maus se unem, os homens bons devem associar-se; Caso contrário, eles cairão um por um, sendo sacrificados impiedosamente numa luta desprezível.”

 

2 de junho de 2024


[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

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