quinta-feira, 28 de março de 2024

ESPECIAL - 1964/2024 - NÚMERO 03


Um tanque de guerra do Exército em frente ao Palácio da Guanabara no Rio de Janeiro em 8 de abril de 1964 (Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo) 

1964 e a “bestialização” carioca

Em memória ao centenário de Lindolpho Silva

Vagner Gomes de Souza

 

1964 marca um profundo impacto para a antiga sede da Assembleia Constituinte de 1823, 1891, 1934 e 1946. Seu esvaziamento político institucional se aprofundou sob os parâmetros da perseguição política que muito atingiram cariocas e seus residentes como a memória do chamado “Massacre de Manguinhos” nos faz lembrar[1]. O Rio de Janeiro formado como a cidade da consolidação da unidade nacional em suas linhas tortuosas e ibéricas se abriu para uma “americanização” de seu subúrbio transformado num “Novo Oeste” americano ao Sul do Equador. Na expansão da ocupação do espaço urbano desordenado sob a égide de uma modernização conservadora muito de perversão do americanismo assolou a nossa cultura carioca.

A falta de autonomia da antiga capital do Império e da República não impediu que houvesse uma vida dinâmica se fizesse perceber nas favelas no pré-1964 com a dinâmica disputa política pela organização de seus moradores entre setores da Igreja Católica e os comunistas. As principais favelas cariocas, sob nossa medida, estavam se transformando com uma semelhança a longa disputa política entre a democracia cristã e os comunistas italianos essa é nossa hipótese que justifica as intervenções urbanas das chamadas “remoções” que fizeram emergir os conjuntos habitacionais de Vila Kenedy e Cidade de Deus.

A cultura do samba carioca no período anterior a 1964 estava em grande conflagração diante de inúmeros exemplos de agremiações com inserção de componentes com militância no PCB e que foram perseguidos ou se afastaram no decorrer da ditadura militar. O mesmo ocorreu no meio sindical carioca com a intervenção do Governo Federal em inúmeros sindicatos aonde podemos mencionar o antigo Sindicato dos Urbanitários do Rio de Janeiro que guardou uma marcante presença na participação e organização do comício de 13 de março de 1964.

Esses exemplos demonstram que a inserção da política não se limitava as fronteiras de uma classe média carioca e universitária. Nos distantes bairros de Campo Grande, Santíssimo e arredores, então Zona Rural da Guanabara, as mobilizações dos sitiantes e posseiros se faziam no intuito de organização dos trabalhadores rurais sob a liderança de um quadro dirigente do PCB, porém com muitas fontes que demonstram lideranças locais que submergiram ao silêncio talvez do medo[2]. Aliás, seguindo a nossa hipótese anterior, havia uma articulação entre os setores rurais do PCI e PCB acompanhado por Lindolpho Silva[3]. Assim, a chamada “grilagem” na atual Zona Oeste carioca ganhou mais força nos tempos da Ditadura Militar transformando a região num amplo espaço de nova orientação política. Os ventos da modernização conservadora fez emergir uma sociedade carioca “bestializada”.

Consequentemente, diante das investigações sobre o assassinato de uma Vereadora e seu motorista no ano de 2018, há muito dessa sociedade que se fez emergir como “besta-fera” diante da “bestialização” até na formulação de políticas daqueles que se encontram na chamada esquerda carioca muito prisioneiras das imagens sem perceber que o Rio de Janeiro é um mundo político das mediações. Um “coronelismo contemporâneo” de lideranças políticas decadentes diante do fator religioso do neopetencostalismo.

1964 fez com que tenhamos uma sociedade aliada a esse processo de política degenerativa, pois o “mercado do crime” que no seu mutiverso tem o “mercado da fé”. A representação da política democrática se faz pelo espelhamento com um uma estranha desconfiança das instituições e maior individualização das manifestações políticas hipermodernas. As mobilizações sociais foram capturadas por um “mercado do identitarismo” que criou uma “reserva de cargos comissionados” a militância política desconectada com os cariocas do dia a dia. Formando um “vazio político” ocupado pelas forças políticas reacionárias uma vez que as análises daquilo que chamam esquerda carioca parecem moldadas na “Ágora da Praça São Salvador ouvindo uma Mafalda”.

Não se percebeu que 1964 fez emergir um laboratório do pinochetismo no submundo do crime desde com suas chacinas executadas por agentes do Estado. O Rio de Janeiro é a hiperatividade do neoliberalismo. Sociedade pura na matriz do interesse individual. A ideia de Estado se foi no “chaguismo” ao mapear politicamente o universo da cidade. A fusão, implementada na Ditadura, esvaziou ainda mais a vida política do Rio de Janeiro pois se fez na égide do clientelismo e com as ações do “Mão Branca” na Baixada Fluminense. Faltam mais estudos recentes no mundo acadêmico fluminense sobre esse processo.

Logo, o bolsonarismo não é nada no Rio de Janeiro e paradoxalmente ele é tudo, pois ele se alimenta desse esvaziamento da política na sua postura antipolítica. Portanto, para ficarmos num problema de comportamento político que nos interessa, se a família Brazão é mais uma no mosaico da Zona Oeste carioca, o “caso do Bairro de Campo Grande” é a demonstração de que a hipótese do “lulismo”, segundo André Singer, se tornou uma pura noção conceitual, pois os interesses se uniram aos intermediários que de “Escritório do Crime” alimentam o “Escritório do Voto”. 




[1] O Massacre de Manguinhos foi um caso de expurgo político ocorrida no então Instituto Oswaldo Cruz (IOC) - hoje unidade técnico científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) - durante a ditadura militar brasileira. Dez cientistas do IOC/Fiocruz foram cassados em 1º de abril de 1970 com base no Ato Institucional n.º 5 (AI-5).

[2] Voz Operária, Edição 213, 1953, página 8. https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=154512&pagfis=2416 Consultado em 28 de março de 2024.

[3] Cf. https://journals.openedition.org/nuevomundo/69678 (Consultado em 28 de março de 2024).




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