Casa-Grande &
Senzala no Pós-Segunda Guerra Francês
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Escrita histórica e geopolítica da raça: a recepção de Gilberto Freyre
na França, de Cibele Barbosa Calvino (São Paulo: Global
Editora, 2023)
Aqui
está uma bela obra sobre Gilberto Freyre oferecida às leitoras e leitores pela
historiadora Cibele Barbosa, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco do Recife.
Escrita histórica e geopolítica da raça:
a recepção de Gilberto Freyre na França é um livro chave para compreender a
riqueza das relações intelectuais que marcaram o período 1950-1970 entre a
França e o Brasil e não só. O livro é fruto da sua tese de doutorado defendida
em 2011 perante a Universidade de Paris-Sorbonne e vencedor do 1º Concurso Internacional
de Ensaios - Prêmio Gilberto Freyre 2020-2021.
A
riqueza da obra aparece antes de tudo no lugar dado pela historiadora a
abordagem que situa a grande obra de Gilberto Freyre na diversidade do
pensamento social brasileiro. Mas a sua principal fortuna está na descrição da
rede de sociabilidade estabelecida entre Gilberto Freyre e os intelectuais
franceses como Lucien Febvre, Fernand Braudel, Roger Bastide entre outros que
saudaram a moderna escrita da história. Ao conhecerem a obra de Gilberto Freyre
publicada no Brasil em 1933, Casa-grande
& senzala é uma revelação para os intelectuais franceses que
notavelmente integraram essa elaboração da formação da sociedade brasileira,
essa civilização em seus conhecimentos da história. A recepção da obra de
Gilberto Freyre tem como ponto de partida trocas intelectuais com os franceses.
No
prefácio de Lucien Febvre a sua obra-prima na primeira edição francesa de 1952,
ele revelava uma ironia fina ilustrando que o livro devia ser lido
observando-se que o Brasil é uma terra de histórias podendo ser confrontado com
as da Europa, só que naquele momento a comparação teria como base o modo pelo
qual cada sociedade lidava com a relação entre diferentes grupos étnicos e
culturais. Desse modo, a Europa daquele tempo terminava por ser descrita, numa forma
própria à Rabelais (que Mikhail Bakhtin apresentou), como obcecado pela
possibilidade de se construir um ideal de civilização incorporadora, visto que
como dirá Febvre, “Agora, o branco se
aflige. Tateia. Hesita. E, prisioneiro de sua reverência por tudo aquilo que
pensou, construiu, inventou e realizou, não consegue oferecer a esses homens
revoltados contra uma civilização da qual se sentem estrangeiros outra coisa
senão invenções de branco, criações de branco que ele insiste em chamar de
'progresso'. Panem et circenses!”
Esta
tradução, publicada sob o título de Maîtres
et esclaves: la formation de la société brésilienne em 1952 na famosa
coleção La Croix du Sud dirigida por Roger Caillois é devida ao filho de
Xangô Roger Bastide que conhecia bem o Brasil. Em 1938, Roger Bastide saiu de
França para lecionar na nova Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo,
onde Fernand Braudel também lecionaria. A partir daí, o Brasil é
reconhecido pelos franceses como uma terra de história.
Mas o
trabalho de Gilberto Freyre também deixou obviamente a sua marca em outros
intelectuais como Georges Gurvitch que orientou as teses de doutorado de Roger
Bastide, Jean Pouillon e Jean Duvignaud, bem como em Roland Barthes.
Quatro
anos depois, em 1956, a obra de Gilberto Freyre esteve no coração de uma
conferência de Cerisy. A questão da racial no ambiente do pós-segunda guerra e
de reposicionamento do tema nas democracias foi então debatido nessa comuna
francesa e essas discussões também animaram a Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Em França surge então a
questão do império colonial nascido com Napoleão, particularmente no continente
africano, estando a experiência da Indochina na Ásia longe de resolução. E a
questão do império colonial francês na África é então objeto de controvérsias
entre os atores da vida política francesa por conta da comparação também com a
dos impérios ibéricos. Um conceito de Gilberto Freyre que povoou as mentes
francesas foi o de lusotropicalismo. Com isso a recepção da obra de Gilberto
Freyre chegou para além da França na África, onde a revista parisiense Présence Africaine publicou, em outubro-novembro
de 1955, um artigo do ativista angolano Mário Pinto de Andrade: “O que é o
lusotropicalismo?" O futuro presidente do Movimento Popular da Libertação
de Angola (MPLA) critica a mobilização deste conceito pelos integrantes da
ditadura portuguesa de Salazar. Os ativistas do Congresso de Escritores e Artistas
Negros realizada em Paris, no anfiteatro Descartes da Sorbonne, por iniciativa
do senegalês Alioune Diop e da revista Présence
Africaine vão se opor a essas e outras apropriações de Gilberto Freyre.
Mas não
há duas leituras da recepção da obra do nosso gênio da raça: a de Casa-Grande & Senzala, que fascinou
os historiadores Lucien Febvre e Fernand Braudel e que se difundiu entre o
pensamento social francês, graças a Roger Bastide, professor na Sorbonne desde
1958; a do “lusotropicalismo” de Salazar e os seus que os ativistas da revista Présence Africaine criticaram duramente
em favor da democracia que marcou e marca a vida política francesa desde o nascimento
do seu império colonial.
Nessas inúmeras
qualidades, Cibele Barbosa traz uma nova perspectiva sobre este período das
relações franco-brasileiras, franco-africanas e afro-brasileiras entre outras, e
com este trabalho lança uma nova luz sobre Gilberto Freyre nos 90 anos de Casa-Grande & Senzala.
13
de novembro de 2023
[1] Presidente da CEDAE Saúde e
professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
É um excelente texto! Compartilhando!
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