sábado, 11 de novembro de 2023

SÉRIE ESTUDOS - LIÇÕES DE BAKHTIN AO CINEMA BRASILEIRO

 

Mussum, a Frentis

Em memória de Luciano Leal dos Santos (Mangueirense, Flamenguista e meu tio)

Por Vagner Gomes de Souza

O filme “Mussum, o filmis” timidamente ganha espaço no imaginário popular uma vez que foi bem em sua primeira semana de estreia no décimo primeiro mês do governo Lula/Alckmin. Se o filme é tecnicamente perfeito, destaquemos que é muito mais que isso se for avaliar sua contribuição cultural do frentismo democrático. Uma vez que Antonio Carlos Bernardes Gomes era um sambista e humorista que fez as pessoas rirem com as mudanças linguísticas. Além disso, ocupou o “lugar de fala” do cidadão comum brasileiro, ou melhor, o carioca que torcia pela Mangueira e o Flamengo.

O roteiro acertou em fazer uma biografia com humor pelo que representou o biografado em sua carreira em Os Trapalhões. Essa opção incomodou algumas vozes que desejavam um Marighella no humor. Porém, não há atalhos no roteiro muito bem dirigido por Silvio Guindane. E, aqueles que conhecem um pouco de história da cultura pecebista irão reconhecer como a ascensão do “peixe preto” (referência ao apelido Mussum dado por Grande Otelo) esteve nas margens desse amplo arco de alianças que veio a formar depois a Frente Democrática nos anos 70/80.

As cenas do programa Os Trapalhões que foram reencenadas com o elenco do filme demonstram uma mensagem muito importante que é possível vencer a ignorância na política através do riso. Uma vez que fazer humor com militares em plena Ditadura Militar não é um gesto de alienação e as camadas populares riam de um Sargento autoritário que era zombado desde seu apelido de Pincel. O público testemunhou nomes como Maria Bethânia e Ney Matogrosso serem parodiados por esse programa. E, no filme, a canção Morena de Angola (1980) aparece como uma bela sinalização dessa postura de Frente. Aliás, Os Saltimbancos Trapalhões é de 1981 que tinha, entre os diversos roteiristas, Teresa Trautman[1], mas, se fosse nos dias atuais, os inquisidores das redes sociais comentariam sobre o passado do Diretor J. B. Tanko.

Logo, não podemos permitir que Mussum, o filmis seja “cancelado” por juízes da opinião sectários por não haver uma crítica incisiva ao nordestino Renato Aragão. Ou por achar irrelevante, a aparição de outro personagem do humor brasileiro com parentes “fichados” no DOPS, Chico Anísio. Observamos um potencial para fazer nesse filme a oportunidade de reencontrar a juventude atual com o ensinamento de que nada se faz pela via do individualismo.

O filme é uma oportunidade para fazer um segmento popular sorrir sem ser necessário que julguemos o sentido das piadas. Na verdade, aquilo que tentam sugerir que falta no filme poderíamos dizer que foi um acerto em não aparecer, pois o momento é de buscar “pontes” na sociedade de uma forma plural. E sentimos saudades da Elza Soares dos tempos do Presidente Trabalhista que assiste ao seu Show junto com os Originais do Samba. Saudades do Jorge Ben antes de acrescentar o Jor. Entretanto, não é um filme saudosista que assistimos no cinema. Digamos que é um humor refinado ao nível de Mikhail Bakhtin uma vez que rechaça a via de mão única das chamadas “narrativas” e a rigidez das reflexões biográficas. Reivindica a ambivalência, como um discurso carnavalesco. Uma ampliada frente de interpretações de muitos personagens envolvidos e dialógico.

Refundar um personagem contraditório foi o desafio muito bem feito na atuação do ator Aílton Graça. Depois de Majestade – personagem do filme Carandiru (2003) – essa é sua atuação mais marcante, pois parece ter o humor e o samba em seu “DNA artístico”. Seu amadurecimento acompanha também o de muitas forças que integram a frente democrática naquilo que o pensador Gramsci chamaria “revolução passiva”. Além disso, as classes subalternas nesse país deram voz aos negros tanto no samba quanto no humor. Não podemos deixar que essas possibilidades se perdessem. Nessa perspectiva o esse é um dos filmes mais ousados no cinema nacional desde Medida Provisória de Lázaro Ramos que tinha uma canção de Cartola (personagem que aparece em Mussum, o filmis).



[1] Com “Os homens que eu tive”, Trautman tornou-se a primeira diretora de cinema a filmar a partir de um ponto de vista estritamente feminino, abordando a liberação do corpo da mulher.

 


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