O
Bem-amado e o museu de grandes novidades
Dedicado ao 8 de maio, dia da Vitória
dos Aliados contra o nazifascismo
Por Pablo
Spinelli
Entre o século passado
e o atual foi feito um esforço acadêmico e político em dissolver qualquer
possibilidade de síntese (ou “grande narrativa”) em defesa dos interesses
atomizados. O que começou na academia sob influência do pensamento de 1968
vicejou pela classe média, pela cultura e chegou à massa popular e às elites
econômicas. O bug do milênio (a “loira do banheiro” e a “baleia azul” de 1999) foi
o desemprego estrutural, o aumento do neopentecostalismo com um “cristianismo
de resultados”, o poder associativo dos anos 1970-80 como associação de
moradores e grêmios estudantis diluindo-se nos “eus soberanos”. Não há, como
escreveu o historiador Ciro Cardoso a “História” com maiúscula, mas as
“histórias de”. O fragmento, a valorização da diferença, o divisionismo, a
perspectiva de controle de fatias do mercado pela quantidade de melanina ou pelo
uso do pronome, programas que demonizavam a política, o discurso da meritocracia
e do empreendedorismo criaram, numa satânica combinação, uma montanha que pariu o capitão rato.
Caso tenha chegado até
aqui, bravx leitorx, o tema são os 50 anos da estreia da novela “O Bem-Amado”
na Rede Globo no horário das 22 horas, o que seria o equivalente à 1h da manhã
nos padrões atuais. Uma novela que só poderia ir ao ar a partir dessa hora para
não sofrer com a censura mais do que já era previsto. O seu autor, o baiano
Dias Gomes, readapta sua peça teatral para o meio da comunicação de massa em
1973. Um comunista trabalhando na maior emissora de comunicação do país. O
Bem-Amado foi a primeira novela em cores do país. E foi uma das mais perfeitas
sínteses do Brasil no século passado.
O prefeito Odorico
Paraguaçu (interpretação imortal de Paulo Gracindo) da fictícia cidade de
Sucupira estava obcecado em fazer algo vistoso em seu mandato. A sua iniciativa
empreendora foi criar um cemitério municipal. Porém, por motivos da Fortuna,
ninguém na cidade morria. Dias Gomes, em pleno Governo da Ditadura Militar,
usou e abusou do termo que a literatura de Jorge Amado e a sociologia de Vítor
Nunes Leal consagraram sobre as práticas políticas do mundo agrário: o coronel.
Ao mesmo tempo, estreando como ator na Globo, Lima Duarte viveu de forma tão
imortal o pistoleiro arrependido Zeca Diabo, cuja alcunha era como a do
cangaceiro Lampião: capitão. Pronto. Coronel e Capitão eram usados em
associação com autoritarismo, corrupção, imoralidade, lascívia, assassinato.
Demorou, mas a censura percebeu e mandou parar com os termos.
A trama apresenta o famoso trio das “Irmãs Cajazeiras” – mulheres de profunda religiosidade e defensoras da moralidade e da virtude que não conseguiam sucumbir ao licor de jenipapo e, sem saber, faziam um vanguardista poliamor com o Prefeito viúvo, a ponto de uma delas engravidar do coronel e a responsabilidade recair em um gago com orientação sexual fluída 50 anos antes de Fred Nicácio do BBB 23, o subserviente Dirceu Borboleta (Emiliano Queiróz, magistral), que será responsável por um crime passional similar ao que apareceu em Gabriela, de Jorge Amado. Era a crítica ao patriarcado feito por um homem.
Há que se destacar o
casal vivido por Milton Gonçalves e Ruth de Souza, pioneiros da presença negra
na teledramaturgia nacional. O Zelão das Asas de Milton era o homem simples,
pescador, que tinha que voar para pagar uma promessa – o voo era a metáfora
para a liberdade, para a democracia – e a Chiquinha do Parto representava a
sabedoria feminina tradicional, quem acudia o depressivo e revoltado Dr. Juarez
Leão, (Jardel Filho) o único que afrontava cinicamente o poder.
Não menos importante é
a oposição. O dentista Lulu Gouveia (Lutero Luiz) era o vereador da oposição a
Odorico. Bom no discurso, na defesa da ética, seu perfil era apoiado pelo
idealista intelectual periférico Neca Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella),
jornalista responsável pelo jornal da cidade. A família que se opunha aos
Paraguaçu-Cajazeiras, os Medrados, também eram da oposição ao Prefeito.
Destaca-se a mulher da casa que fazia o papel de delegada no lugar do marido,
Donana (Zilka Salaberry). Eis a questão: no que há de diverso entre patriarcado
e matriarcado?
Dentre os vocabulários
únicos criados para o Odorico, a novela apresentava a exploração da mão de obra
de pescadores num sistema de cooperativa sem CLT organizado pelo vil Jairo
Portela (Gracindo Jr.). Além do coronelismo, esse ponto, pouco explorado pelos
historiadores da cultura do período é importante ser lembrado em tempos de
uberização e sem revogação da reforma trabalhista. Tirando os maneirismos e
gírias da época, quais as grandes diferenças entre os jovens Telma (Sandra
Bréa) e Cecéu (João Paulo Adour) e os de hoje? A Igreja, na figura do Vigário
(que não tem nome), tenta equilibrar os antagonismos da cidade. Profeticamente,
Dias Gomes coloca um triste vaticínio para a massa popular: todos virarem o
Nezinho do Jegue (Wilson Aguiar) que, quando sóbrio gritava Viva Odorico! e,
quando embriagado, Abaixo Odorico!
O Bem-amado é uma
referência da cultura nacional-popular que atua como o anjo da história. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos,
o anjo vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e
as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas
asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o
amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de
individualismo pautado nos interesses. Parece revolução, mas é só
neoliberalismo.
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