Estranhamento & Fraternidade
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Pensava-se, equivocadamente, anos atrás que o
processo de globalização nos levaria a uma sociedade da informação que
enfraqueceria a diversidade e geraria uma espécie de uniformidade global. Isso
não aconteceu, embora algumas características comuns tenham se espalhado,
especialmente onde o condão do mercado tocou e o seu modus vivendi no consumo se consolidou e as tendências identitárias
se aprofundaram em muitos contextos.
Como resultado, cresceram as reivindicações identitárias étnicas, de gêneros, orientações sexuais, culturais, linguísticas, de nacionalismos
imaginários e/ou reais, de crenças religiosas, sócio-políticas,
frutos de construções ideológicas como as que dividem sociedades entre figuras irredutivelmente
adversárias como acontece nessa triste hora mundial da casa comum, onde a
diplomacia é o terreno da esperança. O conjunto deles tende muitas vezes a
enfraquecer o "nós" que garante a existência do "eu" que se
plasmam em sociedades e Estados-Nacionais.
Essa miríade identitária, essa crescente demanda
por identidades não precisa ser necessariamente negativa, pelo contrário,
podemos enriquecer um novo “nós” mais complexo, inclusivo, fraterno e aberto ao
diálogo e a empatia como sempre abraçou Gilberto Freyre (1900-1987). Mas, para
isso, é fundamental que não se transforme em identidades "eu" estranhamente estranhas como apontou
Carlos Fino em
Portugal-Brasil: Raízes do Estranhamento (Lisboa: Lisbon Press, 2021),
que negam a possibilidade de miscigenação, a influência mútua entre diferentes
identidades, diminuindo assim a riqueza dos juntos e misturados entre etnias,
gêneros, religiões e línguas, que desaprovam o pertencimento múltiplo e tendem
a favorecer a atribuição a uma identidade repulsiva que se torna proprietária, impondo
um pertencimento exclusivo a um único modo de ser e uma lealdade obrigatória a
uma única comunidade e aos seus dirigentes.
O perigo das identidades enclausurantes, muitas
vezes fruto de uma construção ideológica e de tradições inventadas, é o
fanatismo, a defesa obsessiva de uma identidade, negando o que consideram
diferente, e com isso o espírito guerreiro que assumem diante da
heterogeneidade como se vê no Leste Europeu desde a década de 1990.
Se a identidade é entendida então como algo alheio
à mudança, como algo estático, invariável, que exige uma forma de convivência
exclusiva e excludente que aceita apenas a reiteração de uma singularidade
exacerbada, mais supostamente pura que sua própria história e que é considerada
moralmente superior, que abdica da diversidade em nome da diversidade e
constrói comunidades sem janelas nem ar fresco, seu destino inevitável é
relacionar-se com os outros por meio do confronto e, muitas vezes, do confronto
violento como se vê há décadas, como na dantesca tragédia da Guerra do Kosovo e
que agora recebeu uma versão literária pela Ilze Scamparini em Atirem direto no meu coração (Rio de Janeiro: Harper Collins, 2021).
Essa ideia de identidade inepta é incompatível com
o sistema democrático, com valores universais compartilhados pela Organização
das Nações Unidas (ONU), torna-se uma mania doentia que, ao afirmar tanto suas
raízes, deixa de lado os frutos e plantas que são essenciais para a convivência
humana, interrompendo a caminhada civilizatória.
Mas de toda essa complexa trajetória histórica
surge uma poderosa miscigenação, uma fratelli
tutti, um valioso movimento sincrético cultural, um “nós” com “eu”, que,
por mais que os adeptos de uma identidade obtusa o neguem, está presente no
cotidiano. E tudo isso também está presente na história do Brasil como tem
mostrado o embaixador Ronaldo Costa Filho no Conselho de Segurança da ONU
diante desse conflito entre Rússia e Ucrânia, pois sabe que não é uma história unívoca,
e sim como Janus e suas duas faces e ambas nos moldam numa face injusta e
conflitiva, outra mestiça e compartilhada.
Dai ele saber ser um erro profundo negar um dos
rostos, colocar o olhar em uma parte e não no todo, transformar a complexidade
em pura briga.
É uma história de 200 anos e também mais recente
que contém ao mesmo tempo injustiças, conflitos, integrações, vivências comuns,
e é nisso que consiste também a nossa miscigenação histórica.
Por isso que não podemos andar olhando para trás
por ser uma impossibilidade tanto quanto refazer o mapa-múndi sem que o mundo
exploda. Pessoas e instituições só podem ser apreciadas no contexto histórico
pelo qual passaram.
Trata-se, mais uma vez, de dialogar, mesmo que sem
as melhores condições, para se buscar uma saída na qual todos se encaixem, de
concordar em conviver com nossas identidades e pertencimentos, sem deixar de
construir um “nós” planetário.
1 de março de 2022
Excelente! Parabéns ao autor e ao blog! Fica como um presente ao aniversário da miscigenada cidade do Rio de Janeiro.
ResponderExcluirArtigo muito bom
ResponderExcluirExcelente!! Muito do que penso está aí!! Incrivelmente democrático, inteligente demais seu texto!! Explicação sutil e profunda ao mesmo tempo. Parabéns, parabéns!!
ResponderExcluirRepública do Brasil ⭐
ResponderExcluir